segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

Pacto de Natal

Alice acordou bem cedo no sábado para cumprir o que combinamos na noite anterior. Entrou no quarto e eu despertei com seus passinhos. Contornou a cama para me cutucar e sussurrar: Vamos, papai! Um pouco zonzo, olhei para ela e para o relógio: 7h52. Para não despertar a Nane, fiz sinais para que me esperasse na sala e fui ao banheiro. Troquei logo de roupa para não precisar voltar depois. Quando cheguei à sala, expliquei que era muito cedo, que as lojas ainda não estavam abertas. Tínhamos que fazer o tempo passar.

Fui para a cozinha, onde preparei o Toddy e tirei do cacho dez uvas verdes sem caroço. Deixei tudo sobre a bandeja no braço do sofá e abri a porta para pegar o jornal, como sempre, jogado sobre o capacho. Sentei-me ao lado de Alice, que me ofereceu as uvas. Peguei duas e agradeci. Separei o Globinho para ela ler; ou melhor, para ver os desenhos da última página e as idades das crianças que os fizeram. Depois, ela pediu para ver TV. Topei e foi boa distração enquanto eu lavava a louça.

Às 9h30 decidi sair: talvez as lojas já tivessem abertas por causa do Natal, que seria dali a uma semana. Ela se vestiu sozinha e colocou os chinelos. Do lado de fora, o dia estava lindo, o céu azul e a maior parte das portas ainda fechadas. Caminhamos então até a esquina, atravessamos duas ruas e fomos até a banca de jornal. Ali, ela me mostrou diversas revistas, e eu me distraí com outras. Deixei que ela escolhesse uma. Levou aquela que vinha com um brilho para os lábios de brinde e tinha na capa a personagem de um programa de TV chamada Vitória – a preferida da vez.

De lá, propus que fôssemos à lojinha de produtos naturais e ela não se opôs. No caminho paramos em frente a uma vitrine cheia de roupas infantis. Ela me mostrou todas as que gostaria de ganhar, enquanto procurava personagens nas estampas. Àquela altura, as lojas começavam a abrir: quis entrar, mas eu disse que não. Seguimos em frente, sem reclamações. Em nosso destino, sentamo-nos à mesa para tomar um suco, um mate e lermos juntos a revista comprada na banca. De tão comportada, Alice ganhou um doce para depois do almoço.

Na volta, encontramos enfim todas as portas abertas. Sem rodeios, entramos na loja combinada. A vendedora perguntou o que queríamos e eu disse que era com a menina. Mesmo se enrolando em minhas pernas, acometida por súbita vergonha, ela não hesitou. Em silêncio, mas com convicção, Alice levantou o dedo e escolheu o presente que daria para mãe. Eu cheguei a duvidar daquela certeza, a moça veio com alternativas, mas ela não mudou de ideia. Saiu de lá satisfeita com a compra e excitada com a parte seguinte do plano.

Quando entramos em casa, às 10h20, Nane já estava acordada. Alice tentou disfarçar fazendo gracinhas, dando risadas, fechando com as mãos os olhos da mãe, enquanto eu me dirigia para o quarto para esconder a sacola com o presente dentro do armário.

Por mais vontade que tenha, ela resiste à tentação de contar porque aprendeu a gostar do jogo. Por mais que eu conte, eu gosto também e manterei aqui o pacto firmado entre pai e filha: caberá somente à mãe revelar o presente de Alice.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

O Feitiço da Ilha

A lembrança do filme do pavão me veio na sexta-feira, enquanto esperávamos a balsa, depois de revezarmos ao volante durante tempo equivalente aos oito CDs que separamos pouco antes de sair de casa. Estávamos ali com Alice para uma rara reunião de família e um casamento na praia. Resultado do cansaço das horas de estrada e do tédio pela espera na fila, o jogo de associações inusitadas aconteceu assim mesmo: a ilha, o pavão, as drag queens, um filme, outro e histórias de amor.

A ilha nada tinha com João Ubaldo, até porque não havia feitiço por ali. Mas a Ilhabela, que era o nosso destino, me trouxe a tal lembrança: Alice pedindo para assistir ao filme do pavão. Naquele dia, em casa, gargalhei porque logo concluí que ela falava de Priscilla, a rainha do deserto. E o pavão só podia ser uma das drag queens.

Ela viu o filme pela primeira vez num dia de surto, daqueles que a mãe não sabe mais o que inventar para distrair a criança e ter um pouco de paz. A novidade funcionou: a menina vidrou os olhos na tela e sossegou. Depois, passou a cantar e repetir Mamma Mia vezes sem fim. Porém, eu tinha me esquecido que Alice costumava se referir à história de outra forma – simplesmente o filme dos meninos que se vestem de meninas. Tão óbvio quanto mais misterioso começou a me parecer o pavão. Ela se esforçou para caprichar na explicação: o filme tinha um menino, que gostava de uma menina, que virava... um falcão chamado Michelle Pfeiffer! Como se fosse um jogo de mímica, enfim matamos a charada: ela queria ver o Feitiço de Áquila.

Dentro do carro, com o ar desligado e as janelas abertas, consegui esboçar um sorriso ao completar o ciclo das associações inusitadas. A história de Isabeau e Etienne me trouxe de volta aos motivos da viagem, a fila andou e a balsa nos levou para a ilha.

Ali, no dia seguinte, os noivos contaram a sua própria história de amor. Escolheram uma celebração casual, com os pés na areia. Na praia, curiosos que estavam ali de bobeira, curtindo o sábado de sol, e alguns convidados que vinham de bem longe (de distâncias muito maiores que os nossos oito CDs) se juntaram para assistir à cerimônia. Sobrinhas e primas abriram o caminho para noivos: Alice era uma das flower girls e estava vestida a caráter, com flores brancas no cabelo, rosas e vermelhas na roupa. Pouco antes do pôr-do-sol, o irmão do noivo celebrou o casamento; a tia discursou para noiva; e Nane discursou para o primo (mesmo emocionada, ela não deixou de revelar os podres; mas ninguém se lembra disso, nem o noivo). A festa continuou no restaurante à beira-mar e só foi interrompida pelo sono das crianças.

No domingo, de novo na fila para barca, para passar o tempo, escrevi mentalmente frases aleatórias que me deram um rascunho de crônica. Tocava então o primeiro dos CDs...

Família ê! Família ah! Família!

E se nunca perdemos essa mania, os noivos vão concordar, não é por motivo de feitiço.

Enfeitiçado estou eu, enquanto escrevo.

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Fugaz

Voltei a frequentar o Maracanã naquele ano difícil, 2008. A oportunidade de ver o meu time disputar a Libertadores foi a frágil válvula de escape que encontrei. Desde o primeiro jogo, aqueles 6 a 0 perfeitos no Arsenal argentino, eu me entreguei à religião do futebol nos fins de noite das quartas tricolores, naquele absurdo horário da televisão. Mas partidas perfeitas como aquela não funcionam em texto porque se bastam em tela. Devem ser vistas, de preferência, sem o narrador ou torcida. Para mim, o gol de Dodô no segundo tempo, por exemplo, merece ser objeto de exposição e pintado quadro a quadro. Por isso e para cumprir uma promessa antiga a uma amiga, deixo esse jogo de lado e fico entre dois épicos e uma tragédia – todos terminados com o mesmo placar: a vitória do Fluminense por 3 a 1.

Escolho o primeiro dos épicos.

Cheguei cedo ao Maracanã com meu pai e logo nos separamos para nos misturarmos. Cada um procurou seu canto para assistir ao embate dos tricolores, carioca e paulista. Eu me dirigi para o lado esquerdo das cabines de rádio, no alto das cadeiras especiais, perto da lanchonete. Ele ficou perto dos elevadores, também lá em cima. Para lidar com o nervosismo e o vento frio que ronda o estádio, é um hábito comum ficarmos de pé.

Os outros torcedores preenchiam aos poucos os espaços vazios, trazendo as cores que jamais empalidecem, abusando da criatividade nos gritos de guerra e nos jogos de luzes. No embalo de uma só voz, já com o estádio lotado, o show começou e o time logo correspondeu: antes dos 15 minutos, Washington, chamado de Coração Valente, abriu o marcador. Faltava muito tempo e mais um gol para nos dar a diferença de que precisávamos para chegarmos à semifinal do torneio. A arquibancada não perdeu o ritmo da empolgação; mas o time, com o passar do tempo, sim.

O segundo tempo começou mais tenso, com o adversário mais presente, interrompendo a cantoria da torcida em alguns momentos. O empate veio aos 25 minutos, junto com um silêncio quase definitivo. No entanto, não houve tempo para abatimento: nosso anti-herói argentino, Conca, encontrou Dodô no minuto seguinte. Ele marcou e, no meio da euforia dos que estavam em volta, corri para encontrar meu pai. Descabelado, ele não estava comemorando. Estava aliviado: ainda bem, ainda bem, suspirava enquanto nos abraçávamos. Sabia que assim a esperança não seria abalada. Retornamos aos nossos cantos para viver intensamente os minutos que restavam. As minhas emoções voltaram então a se apoiar no guarda-corpo que insistia em marcar meus braços.

A ansiedade nos dominava. A torcida empurrava o time e tentava fazer parar o tempo. A bola rondava a área do São Paulo, ricocheteava na defesa deles, teimava em fazer a nossa vontade. No entanto, ninguém arredava o pé porque, em momentos como aquele, dentro de nossas mentes insanas, a certeza se confunde com a esperança. No fim, ou as duas acabam juntas ou a primeira engole a segunda. E aconteceu assim: na última chance, num escanteio aos 46 minutos, dos pés de Thiago Neves para a cabeça de Washington, uma catarse jamais vista. Meia hora passada e ninguém ousava arredar o pé, tamanha a vontade de que aquilo durasse para sempre. Quando reencontrei os olhos do meu pai, vi apenas as lágrimas da felicidade fugaz, a mesma que levei para o travesseiro e não me deixou dormir naquela madrugada.

domingo, 27 de novembro de 2011

Brechas

Saio para almoçar sozinho, olhando para o chão, procurando letras entre os meus passos. Nada, pois, além de asfalto, pedras portuguesas e alguma sujeira. Uma vez por semana almoço só. A mesa está sempre disponível naquele bistrô. Eles sorriem quando abrem a porta. Já sabem que não vou beber – perguntam quase pedindo desculpas. Informam a massa do dia, mas eu escolho um prato de picanha. Quero a carne preparada no sal grosso, tal qual descrito na lousa. Ela vem bem passada, com arroz soltinho, compactado com um traço de salsinha crespa no topo. Farofa de ovos e aipim frito ao lado. Feijão na tigela. Procuro, em vão, poesia entre garfadas.

Preciso estar sozinho para pensar. Ou esquecer. Quero distância dos pratos empilhados, das comidas perfiladas, dos braços atravessados e da balança. Prefiro um prato caseiro que chegue à mesa andando, como eu. Pago mais por isso, mas confiro elasticidade ao tempo e acabo pensando nas letras, quase esquecendo o estresse. Porém, existe algo de inevitável nos números: o trabalho ocupa tantas horas do meu dia, que não consigo deixar de impor à farofa um talude de 45 graus e fazer dela uma barragem de ovos que, por sua vez, contém o feijão que verte da minha colher. O garfo desconstrói a engenharia feita de grãos brancos de arroz que tombam sobre o caldo escuro. E quando cravo os dentes no minúsculo galho de erva, o paladar reclama.

Demoro com a carne para curtir o sabor. Mas separo a gordura, que resta ao fim da refeição com o excesso de farofa e os vestígios de feijão. Eles sabem também que não vou escolher um doce, que vou recusar o café – perguntam, de novo, quase pedindo desculpas. De repente, tenho pressa porque quero esticar ainda mais o tempo. Peço um par: a conta e a máquina (vou pagar com o cartão). Chegam quase juntos. Quando saio, os mesmos sorrisos se despedem e sigo procurando poesia, agora no horizonte. Não vejo nada além do movimento caótico de carros e pessoas, mas eu sei bem aonde vou. Compro um mate na esquina, com o camelô, antes de chegar ao meu destino: a livraria.

Lá procuro livros a esmo. Invento presentes, renovo desejos, revisito capas e sensações. Aumento as brechas da rotina esticando o tempo. Contudo, a reação é tão violenta quanto a minha vontade de ficar: o tempo elástico me devolve aos números. Sobre a mesa, as plantas, os relatórios, a máquina de calcular e a escala permanecem onde estavam. Com a lapiseira, desenho letras entre cotas e teclas. Eu ainda me divirto, fazendo cócegas nos números, até o meu corpo reagir ao grito da rotina: o primeiro toque do telefone me nocauteia.

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Entre Amigos

Pensei em você assim que acabei de ler o conto de Cortázar. Começa com uma briga. E eu achei que a sua vida recomeçaria assim, depois de uma briga. Você levou a pior, levou um soco covarde, por trás, não foi? Fomos todos para o hospital: amigos em quantidade – eram tantos que seu pai fez uma lista de presença. Guardo comigo a foto que tirei enquanto você dormia para eu não me esquecer das cores do seu rosto naquela noite, antes da operação.

Estavam todos lá, no hospital, inclusive aqueles com quem treina a arte de se defender. Para mim, um dos problemas esta aí: qualquer arte marcial inevitavelmente aproxima o lutador da violência. A combinação de todas elas não diminui o risco. O limite é tênue. Aprendi nas aulas de judô que fiz quando era criança que o equilíbrio é dado pela disciplina e pelo respeito: no início e no fim das aulas fechávamos os olhos por alguns segundos, fazíamos uma reverência ao professor e outra a uma fotografia imaginária do mestre Jigoro Kano.

E o seu mestre fez o que tinha de fazer: você se lembra do esporro?

Na história que li, Planck deixa o adversário no chão. Depois, suas mãos não param de crescer. Elas pesam como as suas, que ainda não sabem onde se segurar. As mãos deles pendem quase inertes, arrastam-se no chão. As suas também, mas permanecem fechadas como se ainda quisessem bater, tivessem contas a acertar. Com quem? Seus pais? Eles não merecem passar por isso. Seu algoz? Ele merece ser esquecido.

O protagonista do conto encontra enormes dificuldades para abrir portas e passar por elas. Resolve procurar um médico. Você deveria procurar ajuda também. Até bem pouco tempo, eu me achava capaz de resolver tudo sozinho (era pior, porque as minhas dificuldades não eram tão transparentes como o que acontece com as suas mãos). Perdi a minha vergonha na marra. Perca a sua: peça ajuda. Você é querido, tem amigos... não pode deixar que suas mãos fiquem maiores que o seu coração.

Acho às vezes que há medo no seu olhar, que a vista que você quase perdeu talvez não enxergue mais. Porque ela parece confundir as coisas. Não se deixe acabar como Planck: quando volta a si, não sei se ele se deixa confundir ou quer se enganar: conclui que apenas em sonho implorou para o médico arrancar as mãos que cresciam. Em seguida, quando quer brigar de novo, só lhe restam os cotocos.

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Por que Não Mais que Sete?

Entrei e o restaurante se transformou em máquina do tempo. A cada passo na escada, os anos retrocediam. Os degraus me levavam à escola (e a escola se chamava Degrau). Nane e Alice me acompanhavam para não me deixar perder o rumo da viagem: o presente me dava equilíbrio.

Quando cheguei ao terceiro andar, Peggia e Adriane já estavam sentadas à mesa como duas crianças comportadas, os olhares ansiosos. As fotos que Peggia se apressou em mostrar deram rumo à conversa: a primeira comunhão em 1982, o pátio do recreio ainda sem cobertura. Adriane lamentava a ausência da filha, também Alice. Com febre, tinha ficado em casa com pai. A coincidência dos nomes pode ser uma pista de um imaginário comum: livros e sonhos de criança.

Assim que chegou, Joaquim já se chamava Kiko de novo. Trouxe o presente com Solange, mas deixou as três crianças dormindo em casa. Aninha apareceu com Bruno, Bernardo e as mesmas bochechas das fotos. Kiko e Aninha são pedaços de infância a que me agarrei para sempre, mesmo depois que a turma se separou, no fim de 1988, quando tivemos seguir novos caminhos em outros colégios.

O álbum com fotos da formatura da oitava série que encontrei na casa de meus pais rodou a mesa. Naquelas fotos antigas, desconfortáveis em corpos adolescentes, estávamos lado a lado, encostados em uma das paredes brancas do pátio da escola, sorrindo ou experimentando poses. Estávamos também na Igreja Santa Cruz de Copacabana, bem arrumados e compenetrados. E no play da Rua Martins Ferreira, o mesmo das nossas festas com gel e brilhantina.

Responsável pela realização do encontro, que aconteceu apenas um mês depois da criação do grupo no Facebook, Renato chegou com Fernanda, suas novidades e a vontade de estar junto de novo. Marcelo quebrou o gelo, trouxe o Projac com ele, e o encontro se transformou numa animada zorra de flashes.

Ali, as lembranças mais inusitadas se misturavam aos estresses mais óbvios do nosso dia-a-dia; passado e presente conviviam como se nunca tivéssemos deixado de nos encontrar, como se o cinema Condor ainda existisse, e um hambúrguer com refrigerante no McDonald’s da rua Hilário de Gouveia nos satisfizesse. Éramos goonies transformados em hobbits: como Sean Astin, guardávamos as mesmas feições infantis.

Éramos apenas sete naquela noite. Engraçado, isso me faz lembrar que, em algum bimestre de um ano qualquer, lemos um livro para escola que se chamava assim: Por que não mais que sete? Se não questiono, desejo: por que não mais? Haverá outros encontros, tenho certeza. E alguns virão de bem longe para matar saudades de um tempo que não se perdeu.

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Livros Autografados

A caneta saiu da tampa em um saque. O blog era a bolinha e o tênis, a metáfora. Dois anos depois, Amarante ainda joga às terças e quintas, quando a chuva não encharca o saibro. E as bolinhas, que ele rebate na quadra para se livrar do estresse, se multiplicam aqui, em textos que têm frequencia quase semanal. Hoje, como no ano passado, comemoro escrevendo sobre o blog, minhas Leituras e Interconexões. Desta vez, os livros vêm autografados e alimentam ainda mais a minha vontade de teclar para registrar tudo o que Amarante me revela.

O roteiro começa com Sol e Lua embaixo de Chuva, livro de poesias de Alexandre Crof, cujo pai é personagem do texto mais acessado do blog: A Arca celebra o título brasileiro de futebol conquistado pelo Fluminense e faz uma homenagem a esse amigo, companheiro de Maracanã, que nos deixou no início de 2009. No livro que guardo com carinho, o Crof me oferece um pedaço de sua vida e sugere “que troquemos mais experiências literárias”.

As aventuras de Pedro e Marina se tornaram fonte de inspiração para a minha Carta para Alice, texto preferido dos leitores na votação que fiz há um ano. A partir dos textos de Flávio Salles, o Pai Crônico dessas crianças, as histórias da minha filha – começadas antes, com Mania de Peitão – tomaram conta do blog e tiraram de Amarante o título de personagem principal. Em fins de 2009, Flávio me dá força: “Mantenha essa caneta destampada, hein?”

O curso de Autoficção da Estação das Letras, prorrogado até o fim de novembro deste ano, ainda me faz comprar muitos livros. Dois deles ganharam autógrafos na sala de aula e permanecem na minha cabeceira. Marcos Eduardo Neves é aluno, como eu, e biógrafo. Nas primeiras páginas de Nunca Houve um Homem como Heleno, ele me apresenta à “trajetória épica e trágica de um mito” e também agradece pelo carinho. Já o livro das Meninas Inventadas pela professora Ana Letícia Leal é para ser compartilhado em casa: daqui a alguns anos, será a vez da Alice se divertir com “esse papo de menina”.

A Autoficção acabou se tornando crônica aqui no blog e o texto chegou aos Diários Bordados da professora (blogspot também). E é assim que Amarante dá alguns passos fora da tampa.

domingo, 23 de outubro de 2011

Frases para um Diário

Dia Zero: Prezado diário, lamento informar que é só a mamãe quem viaja. Você também fica, comigo e com a pequena, que continua radiante com a promessa de presentes. Aliás, ela fez questão de preparar a lista de desejos, pediu para escrever em pequenas folhas de bloco, daqueles que ficam perto do telefone. Todas as frases começavam assim: “Não esquecer...”. A mãe mesmo soletrou e garantiu muitas vezes que se lembra de tudo; a filha comemorou e os desejos foram para a mala. Toda sorridente, a criança disse para mim:

– Pai, agora eu sou sua mãe. (Gargalhei)

Dia Um: Diário ouvinte, ser pãe não é fácil. A corrida matinal contra o tempo é intensa: acordar, tomar café, preparar a mochila, vestir o uniforme, ir para a escola. E depois, não posso fugir do meu trabalho. Felizmente, para ajudar, a pequena está um doce, muito obediente. Mas acordou bastante dengosa. Quis escrever de novo nas folhinhas: “Saudades da mamãe” (com desenhos em volta). Resolvi confirmar se ela tomaria mesmo conta de mim, se eu me tornaria seu filho durante as férias da mãe. Entre muxoxos, ela respondeu assim:

– Não, você é meu papai. (Sorri)

Dia Dois: Rapaz, ela ligou duas vezes. Para mim, na hora do almoço; para a filhota, à noite. Acha que não? Também sinto saudades... Além de perguntar sobre a criança, foi isto que me contou: no primeiro dia, passeou e fez compras. Parece muito feliz. À noite, deixei a menina atender o telefone. Estava ansiosa para falar com a mamãezinha fofinha, tanto que demorou a perguntar sobre os presentes. Quando soube que os batons estavam comprados, abriu um enorme sorriso. Então, suspirou e se lembrou de dizer o seguinte:

– Mamãe, papai tá fazendo tudo certinho. (Chorei)

Dia Três: Sábado de muitos compromissos, cara! Aniversário ao meio-dia e também às cinco da tarde. A titia ficou encarregada de levar a criança para o segundo evento. De manhã arrumei a menina: banho e roupa. Surgiu aí a primeira crise: todas as minhas sugestões foram rechaçadas. Confesso não ter a menor paciência para essa coisa de demorar meia hora para escolher uma blusa. Pelo menos, ela não mudou de ideia depois que se vestiu. No entanto, deixou sua revolta vibrando no ar:

– Da próxima vez, você viaja e a mamãe fica. (Respirei fundo)

Dia Quatro: Pai e filha se divertiram sozinhos hoje. No fim da manhã, progressos importantes: ela aceitou a roupa que escolhi para irmos ao cinema. Almoçamos no shopping. Escolhi uma salada para deixar espaço para os restinhos habituais da criança. Como os pratos demoravam, pedi licença ao garçom para comprar os bilhetes. Voltamos, ela deixou os restinhos e comeu um pudim de sobremesa. Quando “Um gato em Paris” invadiu a tela, a menina não desgrudou os olhos. Reclamei do frio e ela colocou as minhas mãos sob o casaco lilás. No fim do filme, era o xixi que nos apertava... E ela não se importou com a opção do banheiro masculino:

– Eu finjo que sou homem, pai. (Relaxei)

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

A Sopa de Letrinhas

Alice me acaricia, despenteia meu cabelo, tenta ajeitar uma franjinha quase emo na minha testa. Diz que eu tenho que ficar igual ao Justin Bieber. Nane protesta, defende a mim e aos nossos ouvidos. A criança retruca como um raio: E Luan Santana, pode? Trocamos olhares inconsoláveis. Constatamos que o nosso meteoro da paixão precisa de mais rock, além do que ouve no carro e do que vê em alguns clipes de Glee no iPod da mãe.

Nane diz então que ela tem que conhecer Halford, Hetfield e Dio. Eu faço em silêncio uma ressalva: desde que conhecer se resuma a ouvir. E me corrijo: imagem não é problema para a pequena fã de Darth Vader. Nane explica que gosta de rock pesado, tipo “Die, Die, Die” O exemplo é quase perfeito: o refrão é fácil demais, pode parecer leve para quem ainda não fala inglês.

Se Alice não se lembra, temos a filmagem que registra a cena inesquecível da pequena headbanger para mostrar no computador e na Internet. Está no Youtube. Ali, o madrinho, o consorte da dindinha, exibe a qualidade da imagem da televisão nova com um show do Manowar. Ao menor sinal de interesse da menina, ele começa a balançar a cabeça e simular a guitarra. Com quase três anos, Alice o acompanha, canta o refrão, encontra o ritmo e dança com graça. Aos seis, ela diz que ainda se lembra daquele dia. Nane aproveita para dizer que papai também gosta de rock, mas prefere algo mais leve. Eu apenas sorrio. A menina nos olha sem expressão, incapaz de entender a diferença de peso.

Penso em alternativas e acabo encontrando os Titãs na estante. Melhor que seja em português, para criar identificação com letra; e que seja acústico, para darmos um passo de cada vez. Coloco o CD para tocar, mas o aparelho não coopera: pula as músicas até encontrar os Bichos Escrotos que a plateia canta – pesado demais, tanto que até as sobrancelhas de Platão ficam eriçadas. Com esforço, consigo enfim fazer a máquina começar pela primeira música.

Comida é água, quase uma sopa. Alice se distrai com uma revista, deixa tocar. E eu entendo a relação entre Arnaldo Antunes e Palavra Cantada: a sopa do neném tem letrinhas de música.

terça-feira, 4 de outubro de 2011

Sobre Letras e Lágrimas

Um texto de conteúdo autobiográfico, pequeno que seja o texto ou conteúdo, inevitavelmente leva o escritor às lágrimas. No mais solitário dos momentos, quando ele escreve, ninguém ouve o choro, e somente o papel é capaz de perceber o que se passa quando as emoções em estado líquido mancham as letras. A prova se torna ainda menos perceptível se a testemunha for o teclado: as gotas secam por baixo das letras. Entretanto, a tecnologia oferece uma alternativa à curiosidade, que pode ser utilizada com objetivos tanto científicos quanto literários: a filmagem das reações dos músculos do rosto com a câmera do laptop. É uma experiência que tem seus riscos: se o computador ficar no saguão do aeroporto, o autor pode acabar pelado na mídia, como a Scarlett Johanson. Seria diferente – melhor, dependendo do ponto de vista – se fosse com ela, caso que resultaria em conto erótico, perseguição dos paparazzi, ou ambos.

Voltando ao assunto principal, das lágrimas, e ainda dentro do contexto da exposição extrema, o escritor pode receber um convite para ler suas lembranças em voz alta. Nesta hipótese, a dificuldade é convencê-lo a aceitar. Se concordar e optar por um distanciamento do texto, a leitura tende a se tornar desinteressante para os ouvintes. No entanto, se o ambiente ajudar o escritor a se desfazer das amarras do autocontrole, ela vai emocionar, quanto mais trôpega e interrompida por suspiros for. A cena da voz do autor que mistura as lágrimas às suas próprias letras é especial, sem qualquer risco de ser associada ao ridículo. O momento tem tudo para ser libertador e, assim, agradecido ficará também aquele que escreve.

Meus olhos marejam no ônibus, a caminho do trabalho. Sentado no banco preferido (sobre a roda), eu me inspiro, escrevo parágrafos inteiros em pensamento, reescrevo frases já publicadas. Ali, o meu controlado mecanismo de defesa deixa as lágrimas represadas nos olhos, esperando o sentimento passar, a hora de descer do ônibus para reencontrar a realidade. Não deixo, porém, os fios se perderem: antes que o dia comece de fato à mesa do escritório, em arquivos com nome de rascunho (palavra que é sempre acompanhada por números escolhidos aleatoriamente), eu registro o pouco que o tempo permite e aguardo a noite chegar, minha filha dormir, para retomar os atalhos de onde parei. Ainda no trajeto inevitável da manhã, a música que me acompanha nas viagens imaginárias também revela memórias, detona um turbilhão de palavras, e me faz também descobrir personagens que estão à volta, sentados olhando para a janela ou em pé vendendo amendoim. No fim das contas, apenas o som que toca em meus ouvidos é capaz de abrir as comportas que contêm meu choro, fazendo meus lábios repetirem em silêncio: let it be, let it be, whisper words of wisdom, LET IT BE.

terça-feira, 27 de setembro de 2011

Reencontro

Durante o almoço, naquele dia que foi o que inaugurou as aulas da primeira série do curso primário, meu pai não parava de fazer perguntas. Ele queria que eu contasse todas as novidades da escola, especialmente sobre os novos colegas. Passados 30 anos, ele continua gargalhando ao se lembrar do que eu disse: minha nova amiguinha tinha bochechas maravilhosas. Tamanha qualidade era inesperada, mas se tornou tão marcante que virou sobrenome da menina já adulta.

Nas férias dos anos que se seguiram, eu e Aninha trocamos muitos livros. O intercâmbio tinha os mistérios da Agatha Christie e os livros da Série Vagalume. Desta, lemos quase todos, sendo alguns inesquecíveis, como aqueles dos jovens detetives do Marcos Rey e também O Escaravelho do Diabo. Depois, ela trouxe Stephen King em quatro estações, Outsiders, além de uma ou outra descoberta diferente.

As nossas famílias viveram aqueles anos como uma grande família, sempre presente em todos aniversários, juntos em alguns réveillons (inclusive no hospital, quando meu irmão quebrou o braço poucas horas antes do show de fogos começar). Tanto que nossos pais acabaram compadres quando nos crismamos; e minha irmã, afilhada da Bochecha.

O hábito da troca se perdeu quando acabamos em escolas diferentes no segundo grau. Depois, até as famílias se afastaram, mas jamais perdemos contato. No último ano do curso de engenharia, no trajeto do Fundão para o estágio, passei a deixar o carro na garagem do prédio dela (gentileza de padrinho) e passamos também a frequentar a gincana do Sebastian Bar nas noites de 5ª feira, onde eu conheci a Nane, outra apaixonada por livros. Aninha, claro, foi madrinha do nosso casamento.

Ela também casou, com Bruno, e voltamos a nos aproximar por causa dos programas infantis, das festas de aniversário dos filhos, das Chicas e do Harry Potter. Quando criei o blog, escolhi a dedo e timidamente alguns potenciais leitores. Do convite que fiz a ela para ler o que eu escrevia nasceu outro blog, dela, e uma nova troca de experiências literárias, com textos igualmente íntimos, embora de estilos bem diferentes, e que têm como personagens principais as duas crianças: Alice, na tampa da caneta, e Bernardo, com todo seu borogoblog.

A decisão recente que tomei de fazer um curso de literatura foi compartilhada com ela por e-mail. Esse curso me fez remexer ainda mais as memórias da infância e acabou me levando a procurar livros que li quando era criança. No último domingo, enquanto eu procurava A Volta ao Mundo em 80 Dias na casa da minha avó, meu irmão puxou de uma estante a versão de Alice no País das Maravilhas de uma série chamada Reencontro. Ao lado da minha Alice, descobri na primeira página que aquele livro não era meu. O nome completo sobre as manchas amareladas do tempo não deixa dúvidas: aquela era a Alice da Bochecha.

terça-feira, 20 de setembro de 2011

O Primeiro Setlist

Não fazia muito tempo que eu tinha trocado a companhia da Jovem Pan por aquela fita cassete em minhas viagens diárias ao Fundão. A opção pela rádio era circunstancial: eu não tinha um setlist, nem pretendia encontrar uma trilha sonora; eu procurava companhia, mesmo que fosse a de um bate-estaca. Quando havia amigos que pegavam carona, eu desligava o som e preferia uma boa conversa – assunto não faltava. Até então, a minha relação com a música era assim, quase de pouco caso, talvez porque em casa houvesse discos por toda parte menos na vitrola.

Durante 21 anos, a trilha sonora da minha vida foi incidental. Quando criança, esbarrava com o carimbador maluco ou a Emília na televisão. Gostava muito do Gonzaguinha na voz de um amigo peruano do meu pai. Aprendi a respeitar o hino nacional por causa da Marselhesa que fazia a minha avó parar o que estivesse fazendo, levar a mão peito e chorar. Quase adolescente, eu dizia que gostava de samba, mas não conhecia quase nada. No ônibus da escola, sempre tocava Legião. Nas festas que aconteciam em um play em Botafogo, celebrava com os amigos duas versões de Kátia Flávia.

A tal fita mudou meus hábitos: uma boa conversa passou a ter música de fundo; perdeu o sentido interromper uma boa música depois de estacionar o carro na faculdade. Não foi assim, de uma hora outra: precisei ouvir o pedido de um amigo para me tocar. Certo dia, ele protestou quando parei o carro e girei a chave antes corrermos para a sala de aula. Não havia motivo para pressa. Estávamos numa ilha superpovoada, éramos estudantes de engenharia, éramos “Dust in the Wind”.

Se um amor traz muita novidade, no meu caso, trouxe música também, e o primeiro setlist estava na capa da fita que ganhei da Nane quando completamos um mês de namoro. A fita não existe mais, mas a capa está aqui, servindo como amuleto de memória ou cola de prova. Na verdade, não precisava dela para lembrar a primeira música das 24 músicas, “Because the Night”, que já era uma das minhas preferidas. Mas a cola serviu para eu reencontrar uma cartinha no verso da capa: ela esperava que eu guardasse lembranças desse amor no futuro.

Essas lembranças se revelam hoje quando ouço “Wuthering Heights” terminar no rádio e fico aguardando que a música traga Pink Floyd com “Wish You Were Here”.

Ou quando fico procurando “Vincent” atrás das portas (“Touch Me”).

Essas lembranças podem fazer diferença agora: antes de dormir, vou reorganizar as músicas no MP3 para dividirmos os fones de ouvido na cama.

domingo, 11 de setembro de 2011

Antes o Chá

Eram 7 horas da manhã de algum dia de novembro de 2007 quando chegamos ao aeroporto de Sapezal. Esperáva-nos um Cheyenne. O avião, que um dos engenheiros que nos acompanhava insistia em chamar de ataúde voador, era pequeno, não comportava mais do que os cinco passageiros que voltavam da viagem a campo, mas o apelido não se justificava: longe de parecer um teco-teco, o pássaro era pressurizado. Colaboravam o horário e as condições meteorológicas. Assim, pousamos em Cuiabá menos de uma hora depois, sem turbulências.

Como o aeroporto de Cuiabá fica em Várzea Grande, distante do Centro, optamos por aguardar ali mesmo os voos cujas partidas estavam marcadas para horários bem próximos, todos em torno das 11 horas. Aqueles que partiam para Belo Horizonte e São Paulo embarcaram sem contratempos. Com um atraso tolerável, meia hora talvez, os dois que restávamos fomos chamados para a sala de embarque. A fila já estava formada quando um funcionário da Gol solicitou que os passageiros que tivessem o Rio de Janeiro como destino final se apresentassem no balcão. Lá nos informaram apenas que seríamos remanejados.

Os minutos seguintes foram tensos, com os passageiros preteridos cercando os funcionários do check-in em busca de respostas que não fossem evasivas. Demorou até que nos calassem com um voucher para o almoço e a promessa de que embarcaríamos em voo agendado para as 16h30. Contudo, a notícia completa era um pouco pior: trocaríamos uma escala em Brasília por outra em Campo Grande com destino a Guarulhos, onde trocaríamos de aeronave para, enfim, chegar ao Rio. Se tudo se resolvesse assim, como prometido, menos mal.

No entanto, o voo demorou a sair, o avião ficou mais tempo em solo que o previsto na escala pantaneira e chegamos a São Paulo após a última partida para o Rio, às 23 horas e alguns irritantes minutos. A paciência já tinha acabado e as respostas ainda eram imprecisas. Picolés da Häagen-Dazs nos ajudaram a relaxar, enquanto o suspense ainda durava e as alternativas ficavam entre passar a noite em hotel pago pela companhia aérea e embarcar em voo extra, o que, por fim, acabou acontecendo. Um avião velho, com assentos com cheiro de mofo e estofado puído, levou para o Rio uns 20 passageiros extenuados, além de alguns funcionários da própria empresa de aviação.

Para não dar mais chance ao azar, dispensamos o táxi comum quando chegamos ao Galeão. Ali nos despedimos, um do outro e os dois do quase interminável chá de cadeira com asas. Um pouco antes das 2 horas da madrugada, girei a chave de casa, louco por um banho e ainda pilhado demais para dormir.

No início de dezembro, soubemos que três semanas tinham nos separado de uma sopa de flechas: índios tinham acabado de invadir uma das hidrelétricas em construção que havíamos visitado. Meses depois, eles voltariam para botar fogo em tudo.

Antes o chá que a sopa queimando a garganta.

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Autoficção

Às segundas eu costumava sentar no sofá do consultório com os pés descalços e, fato raro, falar quase sem parar. Quando sobrava tempo para ouvir, o verbo se repetia: expandir. A cada vez que o assunto retornava, eu eliminava as possibilidades com a alegação mais sincera: falta de interesse. Acabei percebendo que apenas a minha satisfação pessoal seria capaz de trazer alternativas para a expansão. Por isso, terminava a sessão falando do blog, das ideias que tinha para divulgá-lo, do retorno que eu tinha dos amigos leitores, da surpresa que era escrever tanto e tão fácil. Foi assim que expandir se tornou sinônimo de escrever melhor.

A terapia já tinha passado a ser quinzenal quando me deparei com a ementa do curso de Autoficção da Estação das Letras. Reconheci ali boa parte dos meus textos em perguntas simples: “Ao lembrar, inventamos? Quem somos senão quem decidimos ser?” Percebi que a questão não era apenas escrever melhor, mas entender motivações e encontrar direções. Desde a primeira aula, o curso é uma extensão da terapia. Descobri que autoficção é um exercício de autoconhecimento, neste caso, feito em grupo formado por pessoas com a mesma vontade de transformar lembranças em histórias e de aprender a preencher os vazios de memória com letras.

A autoficção ocupa agora os instantes de inspiração ao longo da semana e as minhas noites de segunda. Por isso, a terapia temporariamente acontece em horário alternativo, em quintas alternadas. Lá continuamos a tratar de expansão, sem esconder a empolgação com o primeiro tiro: certeiro. Ela diz que eu encontrei a minha turma e eu não posso dizer que foi tarde: aos 37 anos, sou um dos mais novos aprendizes. Enquanto ela fica com uma boa quantidade dos marcadores de livro para divulgar o blog, eu fico imaginando quanta ficção preenche aquele consultório de releituras biográficas.

Não nego a ansiedade pela próxima aula, porque hoje, talvez pela primeira vez, a vontade supera a inibição: quero expor para depois reescrever. E para escrever melhor, preciso das críticas, quero ouvir o que dizem os colegas e a nossa orientadora, com mais esperança do que vergonha.

Aqui, alguma autocrítica me leva a questionar por que não vejo traço da ficção de que trata o curso e que promete o título. Só encontro uma explicação: se tudo o que escrevi é fato, os vazios foram preenchidos, também com letras, fora do texto.

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Brincando com Espelhos

Sem muita paciência para os jogos habituais, peguei uma folha de papel em branco. Com o lápis e duas linhas, dividi a folha em quatro retângulos quase iguais e, em cada um deles, desenhei um número que ela pintou de vermelho. A brincadeira que propus consistia em contar uma história em quatro partes com ilustrações. Fiz o desenho no retângulo que tinha o número um e Alice ditou a primeira frase. Nós revezamos os lápis de cor e eu traduzi em letras toda a imaginação dela. No fim tínhamos três histórias. A terceira tinha três partes e a folha dividida em triângulos; criação minha, ali um menino e um porco eram amigos e gostavam de futebol. A versão dela apareceu no dia seguinte, com trapézios definindo os espaços e celebrando a amizade de uma menina com uma vaquinha. Ela mesmo desenhou as figuras e as letras que eu soletrava. Entre um quadro e outro, aprendeu a copiar, no modo arcaico do ctrl-C, ctrl-V, com os olhos: menina é igual a menina, se já escrevi não preciso perguntar de novo; e vaca é V-A, va, C-A, ca. Simples assim.

Na estante de livros que fica no quarto dela, no meio de tantos, fica aquele que eu escrevi: em folhas dobradas e grampeadas, está a menina que comia livros, com textos e ilustrações do papai, tiragem de exemplar único, em edição exclusiva da filhinha. A menina do conto tem medo de monstros, come os livros mas não leva os malvados para o estômago. Eles ficam na cabeça dela a noite inteira. Com lápis e papel, o pai traz a solução: escrever uma história, que ele inicia e ela termina: comendo os monstros para ter belos sonhos. Na última página, o pai realiza seu sonho, escreve um livro. Agora, Alice repete a personagem, quer também ser corajosa como o pai (sic) e publicar o seu. O título é quase óbvio: a menina que gostava de comer canetas (ela é geniosa, um tanto nervosa; imagine o estado da tampa de caneta que sobrar em suas mãos). As dobraduras e os grampos se repetem; também a letra A, que vira um chapeuzinho para a protagonista na capa. Os sete quadrinhos da história se condensam em uma única página: ali chovem canetas, que a menina busca na geladeira; ali o pai proíbe e a mãe autoriza. Nas outras folhas, dois contos menores: um desejo de chuva e outro, de moedas. Contrariando a lógica, lê-se da direta para a esquerda, espelhado. E o fim de cada história ocupa, em letras graúdas, páginas inteiras.

A brincadeira dos espelhos não termina com Alice. Com eles, recrio versões das nossas versões, como imagens repetidas infinitamente. Aqui os espelhos são feitos de ideias, papel e ocupam a tela de computador. Não há espaço para figuras, mas as formas e as cores se encontram na imaginação de quem lê.

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Daniel no Buraco do Coelho

Daniel tem quarenta mil namoradas. Quem afirma é Alice, os olhinhos brilhando de orgulho. Eu faço careta, mamãe diz que é melhor escolher outro, porque as coisas não funcionam assim: namorado é um só. Quantas namoradas você acha que seu pai tem? Ela diz que duas e eu fico em maus lençóis. Ela ri e me salvo. Mas o Dani terminou com a Luiza, diz com sorriso inocente. É verdade, insiste, enquanto conto nos dedos as trinta e nove mil, novecentas e noventa e nove que sobraram. A minha pré-adolescente de seis anos sofre de amor. Dobra o papel em dois porque quer escrever um cartão para ele. Desenha flores de um lado, corações de outro e me pede para escrever com as letrinhas de mãos dadas. Eu não posso rir, adverte. E começa sua pequena fantasia com a Barbie no lugar de Alice. Daniel é o príncipe da Barbie. E, com tamanhos diversos, todas as outras frases começam com o mesmo sujeito composto: Daniel e Alice. Ela não percebe, mas são eles que estão com as mãos entrelaçadas por uma letra. Eu brinco com a ansiedade dela: enquanto escrevo que eles estão no baile, digo que foram para o lixo; faço dele uma borralheira e o príncipe logo vira um tampinha. Deixo a menina nervosa; mas, quando não há mais espaço de um lado da folha, eles são felizes para sempre. Do outro lado, porém, o ciúme aparece na primeira frase. Concluo que Rani, a concorrente, também tenha terminado com ele. E agora, quantas restaram, além da minha própria filha? Alice gosta da ideia que tive, a de passear no bosque, e eles partem para lá na frase seguinte. Eu revejo minha sugestão e trago o lobo para resolver o problema. Na história que conto, Daniel já era, enche uma barriga enorme junto com a vovozinha. Na narrativa dela, escrita de fato, eles retornam do bosque para dormir; acordam e vão ao museu. Eu me pergunto, então, se o rapaz consegue acompanhar a minha menina até o país das maravilhas, onde o queijo branco é o brie e o bacalhau não dá vez à sardinha. Exigente, no último espaço que resta, ela ainda leva o menino ao casamento da Giulia. (Ele sabe mesmo onde está se metendo? No buraco do coelho, tudo acontece muito, muito rápido; por isso, o orelhudo está sempre atrasado.) Deixo príncipe sapo e outros bichos de lado e, por fim, releio com Alice cada frase do cartão, sem desvios para quaisquer dos meus labirintos imaginários. Com letras de forma, ela desenha o fim. Agradece com os olhos ainda brilhando, e eu ganho mais um beijo no dia dos pais.

terça-feira, 9 de agosto de 2011

Cardápio de Memórias

Inspirado no desafio da final da segunda temporada de Top Chef Masters, escrevo aqui meu cardápio de memórias. Nele, a cronologia se sobrepõe ao convencional e a sobremesa intercala pratos quentes.

Se da expectativa pelo leite materno não tenho qualquer lembrança, começo pelos pesados almoços de domingo: rabada com agrião ou dobradinha com feijão branco. Eram artes de minha mãe, que ainda me fazem salivar e agora ignorar as entrelinhas para pedir, com toda a cara-de-pau que um filho pode ter, quatro conchas da dobradinha num pote de plástico da próxima vez, por favor. Neste caso, exclusivo porque sem concorrência. Soube disso quando, em princípio de namoro, usando como desculpa a ascendência dela, levei Nane ao restaurante A Polonesa em Copacabana. Muita coragem da minha parte não resistir à dobradinha ao curry, que os olhos dela fizeram questão de evitar durante toda a noite.

A minha ascendência francesa é, claro, responsável pelo despertar da minha curiosidade gastronômica. A minha vontade de cozinhar se confunde, às vezes, com necessidade de tentar reproduzir os sabores que a minha avó nos proporcionava, embora meu paladar tenha uma leve preferência oriental pelos temperos. Sem me esquecer do inesquecível patê de fígado, eu escolhi uma sobremesa para este parágrafo do cardápio. O Malakoff só dava o ar de sua graça no Natal. Era montado sobre uma fôrma cônica, coberta de biscoitos champagne que, encomendados especialmente para a ocasião, eram molhados no kirsch. Os biscoitos, colocados lado a lado, em diagonal, escondiam o recheio - um delicioso creme de amêndoas, que eram antes cuidadosamente descascadas em água quente. Depois de desenformada, a torta recebia cerejas e as amêndoas restantes para enfeitar.

Ao fogão, sou bagunceiro e vivo de improvisos. Daí a minha preferência por risotos – não aqueles de mamãe, feitos no dia seguinte ao banquete, mas os tradicionais italianos preparados com arroz arbóreo. Acompanhei toda a elaboração do prato pela primeira vez num jantar entre amigos: era um risoto de funghi. Decidi a partir daquele dia me aventurar e logo passei a trocar ingredientes ou me virar com o que restava na despensa e na geladeira. A cozinha se tornou de vez terapia, diversão com aqueles e outros amigos, função de marido e pai nos afazeres domésticos. Dos meus experimentos, prefiro o risoto catupirinha, onde troco o vinho por boa cachaça, uso limão (de preferência, o siciliano) e uma quantidade apenas suficiente catupiry. O prato pode fazer companhia a um salmão com molho teriyaki ou ser o centro das atenções quando repleto de camarões.

Considero o meu desafio cumprido em parte, porque preciso viabilizar o cardápio, dividindo-o em duas refeições: a dobradinha com feijão branco no almoço e o risoto catupirinha com camarões no jantar. Em ambas, ofereceremos salada verde à vontade, com molho de mostarda da Mami que também tentarei reproduzir. Como não sobrarão fatias do Malakoff para a noite, a Nane irá reservar seus imperdíveis cupcakes de cenoura com gotas de chocolate que estão no freezer e preparar o ganache. Falta apenas combinar o dia. Sugestão: meu aniversário se aproxima. Compromisso: para não correr risco de ser posto para fora de casa a vassouradas na manhã seguinte, será providenciada ajuda profissional para limpar a cozinha.

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Dominó em Braille

Hoje é segunda-feira. Papai chegou mais cedo que o normal e de cabelo cortado. A criança nem desconfiava. Mas, quando encontrou a avó no portão da escola, decidiu ir para casa sem fazer o tradicional pit-stop na vizinha, que mora dois andares abaixo. Do lado de dentro do apartamento, com certa apreensão, pai e mãe ouviram os gritinhos que se aproximavam no corredor, distribuindo ordens. Abra a porta, mamãe! Agora! O pai abriu e sorriu. Rá. A avó deu beijos de boa noite para cada um e logo se retirou. A menina ficou, achando graça das próprias piadas, pedindo por favor ao papaizinho e dizendo obrigado à mamãezinha. Que bicho a mordeu, não se sabe ainda.

Pediu para ver um filme, aceitou sem questionar o que já estava no aparelho desde a manhã de domingo e não reclamou sua cena favorita ou o trecho que o capricho do momento às vezes exige. Assistiu ao desenho animado sem fome ou sede, deixando a mãe trabalhar um tempo a mais em sua tradução e o pai atualizar a planilha das contas do mês no computador. Tanta surpresa merecia atenção e ele largou os números da economia doméstica para propor um jogo, como há algum tempo já não faziam. Sem titubear e mantendo o ritmo da boa vontade, ela desligou a televisão e foi ao quarto escolher o brinquedo da vez. Pacientemente, esperou o pai preparar o sanduíche de muzzarela com tomate e orégano, enquanto organizava as peças da Torre de Pisa no chão.

A tal da torre não rendeu e ela topou trocá-la pelo dominó. Espalharam as pedras barulhentas pelo chão e começaram a jogar. Mesmo quando ela não dispunha dos números para prosseguir, a carinha de insatisfação não trazia mau-humor. Era uma gargalhada a cada vez que o pai dizia: Ih! Acho que me dei mal. As mãozinhas buscaram tantas peças que o dono do jogo venceu a primeira partida. A segunda veio com uma novidade. A menina ditou uma nova regra: Não pode ver, papai! Ele só entendeu a ideia quando os dedos minúsculos deslizaram sobre uma das pedras e contaram cada uma das cavidades que se traduziam em números. A mãe, aparentemente concentrada no trabalho, vibrou com a variante criada pela filha, e o pai propôs que colocassem vendas nos olhos numa próxima vez.

Na metade da segunda partida o jogo voltou à sua regra normal e ela venceu sem dificuldades. Iniciaram a negra logo que a mãe anunciou faltarem 10 minutos para a hora de dormir. O tempo era curto. Para evitar argumentações típicas pré-cama, a anarquia correu solta e ela virou o jogo depois de reduzir à metade as peças compradas: 2x1. Mais surpresas vieram em seguida, quando o pai teve que ficar com os olhos fechados para que ela guardasse o jogo no armário da sala e cumprisse toda a rotina da noite apenas com a ajuda da mãe, repetindo infinitas vezes: Não pode ainda, Não pode, Ainda não pode... Quando ele abriu os olhos, ela estava sorrindo, esparramada no chão, com umas das pernas para cima. Pronta para dormir.

Mas irrepreensível é uma palavra rara: uma hora e meia depois, o pai terminou de escrever a história e ela ainda não dormiu. Já levantou três vezes sem assuntos para inventar e agora tagarela sozinha no quarto.

segunda-feira, 25 de julho de 2011

Marca d’Água

As luzes do escritório foram se apagando aos poucos. Agora restava apenas a do corredor dos elevadores e a da sala onde ele ainda trabalhava. Eram 2 horas da madrugada. Do lado de fora, ouviam-se apenas os raros passos do segurança que cumpria a rotina de rondas a cada hora. Desde o fim do expediente ele teclava sem parar para atender à solicitação de antecipação do prazo contratual. Conforme combinado com seu chefe, o relatório deveria estar na caixa de entrada de e-mails do cliente antes das 8 da manhã. Após a entrega da pizza, encomendada por telefone, tinha desligado o celular. Com os pés encostados na parede, o corpo bem fundo na cadeira, os punhos doloridos apoiados na mesa, ele estava absolutamente focado nas letras que saltavam na tela e no sentido que tinha que dar ao texto.

Levantou-se então para buscar um copo d’água e aliviar a desagradável sensação de boca seca. Quando voltou ao seu posto, jogou o copo vazio no lixo e resolveu abrir um portal de notícias em busca dos resultados das partidas de futebol que tinha perdido naquela noite. Tentou assistir aos vídeos com os gols da rodada, mas o acesso estava bloqueado. Pela última vez, decidido a recomeçar o relatório, seus olhos acompanharam as outras notícias trazidas pelo movimento da barra de rolagem. Ao lado da foto da modelo eleita musa do campeonato, uma propaganda chamou sua atenção. Dizia: IMPRIMA AQUI A SUA MARCA. E, em letras menores: como deixar sua assinatura em apresentações e relatórios.

Deixou a curiosidade de lado, na janela minimizada no canto da tela, e voltou à tarefa que o absorvia. Àquela hora já não rendia como antes, as frases truncavam e os parágrafos eram reticentes. Faltava a conclusão, talvez o único capítulo que o cliente se daria ao trabalho de ler. Irritado, varreu a mesa de trabalho com o braço fazendo interromper o silêncio da madrugada com o tilintar das canetas e o baque do grampeador contra o chão. Em queda mais lenta, as páginas do relatório já impressas se misturavam em torno da cadeira, trazendo a mixórdia da tela para o escritório. Estava disposto a desistir quando se lembrou da promessa encontrada no site de notícias esportivas.

A primeira janela se abriu sobre a conclusão inacabada, escondendo-a. Ansioso, ele clicou na propaganda apostando suas fichas numa solução improvável. Outra janela se abriu: era um céu de estrelas. Com o mouse, ele procurou links na página em cada uma delas. Notou enfim que o movimento da seta sobre a imagem modificava a sua cor: o céu clareava, como se o sol estivesse nascendo por trás do monitor. Hipnotizado, percebeu que as ideias também se conformavam na sua mente e as conclusões combinavam com o óbvio. Com o arquivo de texto ainda atrás do céu avermelhado que preenchia a tela, voltou a teclar sem parar até o sol nascer de fato no horizonte e o sono derrotá-lo.

Seus olhos se abriram lentamente quando percebeu algum movimento. Era a faxineira que, muito nervosa, tentava colocar o mouse de volta no lugar e, ao mesmo tempo, tirava o telefone da base. Sobre a mesa, o teclado virado de cabeça para baixo o intrigava. A moça ainda tagarelava ao telefone, num idioma incompreensível, quando seus olhares se encontraram. Ela emudeceu, depois gritou e saiu correndo em direção à porta. Ele pode ver então o corpo inerte de um homem sem rosto sentado à sua frente. Antes de seus olhos se fecharem novamente, ele observou pela janela o céu carregado de nuvens escuras. Só teve tempo de piscar: era o seu chefe, com os olhos esbugalhados e a mão sobre o mouse. Do lado de fora começava a chover.

segunda-feira, 18 de julho de 2011

Amargos, Doces e Maduros

Cheguei às 18h30, ela ainda estava na aula de dança. Aguardei do lado de fora, com o ombro apoiado no muro, pensando em nada, apenas respirando o meu próprio cansaço. A recepção foi mal-humorada, de cara emburrada, com um você interrogativo e decepcionado. Ela esperava a avó, queria a mãe, queria pipoca. Dei um ombro para cada mochila: a dela pesava mais que minha. Pediu para esperar a amiga, que não vinha, demorava. O nervosismo passou dos olhos às mãos quando eu disse que tínhamos que ir e os dedinhos apertaram meu braço. A minha irritação superou o nervosismo dela, falei grosso e ela começou a chorar. Estava instaurada a crise, da forma mais desagradável – na rua, na frente da escola, ao lado do pipoqueiro. Não cedi, nem à pipoca, e os dedinhos se fecharam. Os socos encontraram os meus braços e as mochilas caídas. Contei até dez, tirei a televisão por duas noites e puxando-a pelo braço dei a ordem final. Ela resistiu, fincou os pés no chão. Eu parti sem olhar para trás, com um tchau seco. Ela chorou ainda mais alto e desistiu de ficar. Passou a me seguir, balbuciando papai cem vezes e deixando lágrimas pelo caminho. Encontrou a minha mão, que já esperava a dela. Não a deixei falar. Despejei minha insatisfação: eu não posso buscar você todos os dias; quando eu venho, eu fico muito feliz, porque vou encontrar minha filha, porque vou ganhar um beijo dela; e você me recebe assim, com raiva, fazendo escândalo, chorando.

Por que você faz isso? Não sei falar disso, pai. Percorremos o resto de caminho em silêncio.

Cheguei às 18h30, ela já tinha saído da aula de dança. Carregava a mochila pesada sorrindo. Largou-a no caminho para fazer um V com os dedos, na direção dos olhos dela e depois dos meus, sem deixar de mostrar os dentes que tem e os que não tem mais. Beijou-me com um abraço do tamanho do mundo e a mochila esquecida chegou pelas mãos de outra menina. Andamos de mãos dadas o tempo todo. Ela procurava desviar das tampas dos bueiros aos saltos e pedia que eu a imitasse. Foi cantando pelo caminho em inglês embromado até passarmos pela sorveteria, quando observou o quanto estava boazinha naquele dia. Completou a frase pedindo confirmação, com olhinhos pidões. Ela mereceu o sorvete e cantou o abecedário no resto de caminho. Abri a porta de casa para ela dizer o quanto amava a mãe e também a Rapunzel. Deitou de bruços no sofá, com o rosto virado para o lado da televisão. Ficou assim, quietinha, hipnotizada. Antes da hora, que ela já reconhece quando o ponteiro maior chega ao número 6 depois das oito da noite, ela admitiu a derrota para o cansaço. Aquela foi uma das raras vezes em que pediu para dormir.

Você está cansada, filha? Tô muito cansada, pai. É porque estou fazendo trabalhinhos muito difíceis na escola. Eu sei, são as letrinhas que começam a se juntar.

terça-feira, 12 de julho de 2011

Os Carros Eram Solteiros

Em priscas eras, os motores roncavam: qual é a boa de hoje?

O Escort vermelho tinha teto solar. Fazia o tipo romântico, gostava de um barzinho, um banquinho e um violão. Podia demorar até duas horas entre sair de casa e chegar ao destino escolhido. Sem limitações mecânicas ou defeitos de qualquer tipo, a demora era explicada pela distância percorrida: ele tinha o estranho hábito de esquentar os motores na Ponte Rio-Niterói. Às vezes, ficávamos todos por lá. Quase sempre acabávamos a noite num posto da Gávea para abastecer. Ele, vestido em três cores, cantando o hino do Fluminense.

A tenda árabe era o segredo do sucesso do velho Santana: o forro rasgado do teto tornava seu charme irresistível. As opções de música ambiente eram infinitas: as fitas cassete se escondiam por baixo dos bancos e até no porta-malas, junto com livros do curso de Direito, uma bola de futebol murcha para a pelada de sábado em Ilha de Guaratiba e outras desarrumações. Era o líder, nosso rei, o mais animado da turma. Dava festas memoráveis no seu cafofo de nome francês. E ele não precisava tomar chope para duvidarem de seu senso de direção.

Velho mesmo era o Belina. Vinho tinto e cabeludo, usava aneis nas quatro rodas e curtia um rock pesado. Muito educado, sempre pedia licença para colocar Pantera nos alto-falantes. Trafegava sempre na mais perfeita paz, dizem, a não mais que 30 km/h. Preferia os porões, as vagas menos óbvias perto das boates fora de moda; mas não trocava nada por um sossegado bate-papo. Hoje, seus pneus estão carecas.

Eu era um Gol azul metálico da primeira geração. O meu som era aquele que tocava no rádio: pura preguiça de gravar uma fita. Minha prioridade era o roteiro diário que unia Copacabana ao Fundão. Às vezes, revezava com um Fusca mostarda, que partia das Laranjeiras e era companhia frequente nos estacionamentos da faculdade e dos cinemas. Ele fazia tanto sucesso na ilha que virou time de futebol.

Em tempos modernos, eu seria ainda mais requisitado no turno da noite – a boa seria terminá-la sóbrio, sem risco de ser apreendido na blitz da lei seca. E nosso roteiro daria inveja ao Relâmpago McQueen.

terça-feira, 5 de julho de 2011

Desapego e Cura

Dia de limpeza. Às vésperas do aniversário de 6 anos de Alice, chega o momento de praticar o desapego e reinventar espaços no quarto entulhado para as novidades que virão em breve. Deixamos as escolhas nas mãos dela, embora seja inevitável interferir às vezes – nós queremos nos livrar das tralhas e eu tenho alguma dificuldade de me separar de objetos que contam alguma história. A maior parte dos brinquedos e livros será doada, mas algumas coisas permanecerão guardadas no armário da despensa para os primos que ainda não vieram.

Para não me separar das histórias, decido registrá-las.

Dessa vez, partem Beto e Sandra. Boneco de pernas cumpridas, ele foi o primeiro brinquedo tricolor a que Alice deu atenção e vida. Herdou o nome da namorada de cabelos azuis, chamada Beta (homenagem a melhor amiga adulta que a menina tem), e que agora fica sozinha. Não sabemos de onde veio a inspiração para o nome, mas Sandra fazia parte desse trio, até hoje, inseparável. Ficavam juntos no canto da cama enquanto Alice estava na creche; saíam da cama para dormir no sofá da sala, onde eram cuidadosamente perfilados de bruços. Nos últimos meses, já um tanto esquecidos, eles habitavam a estante.

Quando entro no quarto e faço beiço, ela não hesita: papai está triste. E conclui: é o Beto.

Com eles, parte também a porca rosa que carrega os filhos ainda pernetas na barriga fechada com zíper. Presente da avó, será oferecida à própria antes de ganhar outro rumo. Alice vibra com a ideia.

Nane conta a história da cegonha que veio da Alsácia como presente de sorte, por causa de um beijo que Alice deu na barriga da madrinha. Também para sensibilizá-la, explica que, nas histórias que as pessoas contam, a ave leva os bebês para as suas mamães. Com todo esse apelo, ela é escolhida para ficar, claro. Também fica o macaco – meu primeiro presente, comprado no dia em que soubemos que teríamos uma menina. Quando anuncia a decisão, Alice levanta as sobrancelhas antes de sorrir para mim.

Falta ainda a caixa que guarda cadernos, livros de colorir, canetas e lápis. Faltam ainda os livros, que podem carregar histórias dentro de histórias, além de pontos de vista diversos para um mesmo conto.

Encontrei a cura. Vou sempre aguardar as escolhas para contar o que eu não quiser esquecer e, assim, fazer de recordações uma carta de despedida.

segunda-feira, 27 de junho de 2011

Pinball de Madrugada

A sem-vergonha vai comigo pra cama. Brinca de pinball com meus pensamentos e não me deixa dormir. E ela tem cúmplices. Quando precisa, chama o esquadrão de mosquitos. Os mais educados sobem pelo elevador; os sorrateiros preferem chegar pela ventilação do banheiro que fica no corredor. Eles são implacáveis: como eu sempre me deito com um lençol cobrindo o corpo até o pescoço, eles zumbem nos ouvidos e atacam os dedos. Se eu estiver apenas adormecendo, algo entre os estágios alfa e beta do sono, o zumbido é suficiente, e a famigerada se aproveita para recomeçar o jogo irritante da madrugada. Os calombos coçam pelo menos por meia-hora, o que me faz levantar e ligar a televisão da sala – sem som para não acordar quem não tem culpa de nada. Serve como calmante. Quando os mosquitos não estão disponíveis, ela apela para um velho amigo da minha avó: Monsieur Le Vent. Ele utiliza o caminho preferencial formado pela sequencia de vilas em frente a minha varanda para chegar fazendo barulho. A saia do toldo, um tanto rasgada e pendente, bate palmas para receber o nobre amigo. As barras de alumínio que prendem o toldo ao guarda-corpo da varanda fazem um esforço enorme para não o deixarem voar. Depois do vento, vem a chuva. Se intensa, entra pelas tubulações fazendo arruaça que as paredes finas não fazem questão de amenizar. A chuva parece pingar dentro de casa e me faz lembrar os primeiros anos, quando a água infiltrava pelo terraço e formava uma goteira sobre a mesa de cabeceira. Naqueles tempos, acordávamos para buscar o balde e levar o colchão para sala. No dia seguinte, ligávamos para Construtora esperando sempre resolver o problema de uma vez por todas. Demorou muito a acontecer; por isso, ainda é tortura pura. Se não chove e o vento insiste, levantamos da cama para subir o toldo em cinco intermináveis partes. A essa altura, o sono do casal já era.

A insônia raramente me acorda no meio da noite, quando meu sono é profundo, ou mesmo no início da manhã, antecipando-se ao despertador. Ela gosta mesmo de varar a madrugada jogando vídeo-game com minhas angústias. Ontem eu pensava sobre hoje, como seria longo e corrido o dia. Compromisso na hora do almoço, que acabou não acontecendo; no meio da tarde, que me tiraria mais cedo do trabalho para levar Alice ao médico; e à noite, que era o mesmo de toda segunda-feira. Centro, Barra, Jardim Botânico e a insônia se agarrou à minha filha: recordei todos os passos em busca das respostas para a obstrução do canal lacrimal dela e, depois, o quanto curtimos o cinema em casa de domingo, quando ela viu ET pela primeira vez e chorou como nós choramos há quase trinta anos; e também, com o pensamento em ré, que compramos o filme depois do almoço na Cobal; e ainda que na prateleira de promoções tive vontade de aumentar uma pequena videoteca com os filmes preferidos. Oportunista, a insônia me levou para o cinema: A Vida é Bela estava na prateleira – um bom filme para incluir na lista, apesar de minhas implicâncias com o tanque americano e o fato de Begnini ter levado o Oscar em vez de Edward Norton, de A Outra História Americana, outra aquisição obrigatória. A chuva apertou e fui para sala. Liguei a TV e, no meio de algumas opções de peitos saltitantes que não me ajudariam com a megera, fiquei com um episódio começado de The Good Wife. Voltei anestesiado para cama, achando que era hora, apesar do vento que retornava após a chuva, mas um deslocamento de tábua e copos na pia me fez pular da cama e ainda acordou a Nane. Ganhei um carinho quando voltamos da cozinha, respondi que não sabia exatamente o que me incomodava e lamentei que, nesse aspecto do sono, Alice tivesse puxado ao pai.

Ainda fiquei rolando na cama, refletindo sobre este texto que surgiu durante o jogo da insônia. Resisti também à ideia de ligar o computador e começar a teclar. Eram mais de 3 da manhã quando, pensando em uma doce e proveitosa vingança (como esta aqui), deixei a insônia jogando sozinha na madrugada de segunda-feira.

terça-feira, 21 de junho de 2011

A Semana do Noivo

As férias de Amarante começaram na semana do leilão. Sem pendências, deixou apenas instruções escritas em folhas de um caderno da empresa para os que ficariam em seu lugar. Durante a primeira semana, teria disponibilidade ao telefone para esclarecimentos eventuais. Depois, em viagem de lua-de-mel rumo a Cusco, ficaria incomunicável. Faltava energia e o racionamento, que trazia oportunidades no trabalho, poderia se tornar um problema no apartamento em que iam morar. Para evitar que tivessem que conviver com uma limitação de 100 kWh de consumo, a primeira tarefa da semana foi preparar a documentação para provar que a casa estava desabitada e solicitar um limite maior à distribuidora. Em visitas diárias ao novo lar, Amarante fez a mudança: todas as roupas, os livros mais queridos e os que ainda não tinha lido, além de alguns objetos de estimação, inclusive a caixa de isopor com os botões preferidos. Não podia faltar também a papelada: contos, velhas poesias e rascunhos literários. Guardadas também em caixa, estavam todas as cartas dos anos de namoro, as fitas-cassete com músicas selecionadas por ela e o rolha do vinho da primeira noite de amor. Se os pedaços do romance já ocupavam seu lugar, aos poucos, ele descobriria os vazios que ainda tinham que ser preenchidos. Seria uma surpresa a cada dia. Se não houvesse cola, voltaria da papelaria no dia seguinte com o kit completo: fita adesiva e crepe, cola branca e em bastão. Para os dias de mudança e arrumação, faltava um banco escada que decidiu comprar imediatamente. Aproveitou a ida às compras para escolher alguns CDs para os amigos que os receberiam em Lima dali a uma semana: as novidades de Legião (com show de 1994 do antigo Metropolitan), Marisa Monte e, claro, Roberto Carlos. De lá saiu com um autopresente: Reveal era o mais novo lançamento do REM, uma das afinidades musicais do casal, para ser tocado no som portátil que foi, durante algum tempo, o único objeto da casa. Na livraria ao lado comprou um dos livros comemorativos dos 50 anos do Maracanã para levar o estádio ao amigo que não deu sorte de conhecê-lo nas duas vezes que tinha visitado o Rio. Voltou ao apartamento para almoçar: sozinho, usou a porção banco da escada recém-adquirida, levantou a mesa instalada na parede da cozinha e assobiou Imitation of Life entre garfadas. No dia do casamento, acordou cedo para buscar as roupas de pinguim alugadas para o evento da noite, “like a Friday fashion show”. Levou com ele, o tio da futura esposa que a levaria até o altar. À tarde foi ao shopping para aparar o corte feito semanas antes e, pela primeira vez, oferecer o rosto à navalha. Não precisou pagar: foi presente do amigo que cortava seu cabelo havia muitos anos. Fora da tampa por uma noite, o noivo Amarante estava pronto. Restava esperar que o trânsito colaborasse, os padrinhos não se atrasassem e que a pontual princesa branquinha entrasse sorrindo na igreja.

terça-feira, 14 de junho de 2011

Quatre-vingt-dix-sept

Ela passa boa parte do dia sentada na espaçosa poltrona que lhe dá uma visão meio torta da televisão refletindo a imagem do hotel e da praia. Sobre o assento, o colchão d’água lhe oferece conforto; sobre o colo, a manta aquece seu corpo, mesmo que a temperatura a dispense. Às suas costas, fica a varanda, de onde vem a luz, o cheiro de maresia e as ilusões térmicas. Dali, cada vez mais silenciosa, ela comanda seu pequeno reino. Aliás, entre olhares fulminantes de reprovação ou de amor, o silêncio sempre foi o porto seguro da Bastilha que criou em torno de si mesma. A poltrona é seu trono há mais de três anos, quando deixou de andar. A partir dessa perda, ainda lúcida, teve que aceitar o fim de sua autossuficiência, confiar em desconhecidos braços fortes e entregar seu corpo para o asseio – uma dura prova de humildade para a responsável pela fortaleza erguida em Copacabana.

Ao longo desses três anos, a lucidez vem sofrendo uma lenta e constante redução de disponibilidade, cada vez mais restrita às horas de maior insolação. Os olhos acompanham esse ritmo e o sono vem mais cedo, vai mais tarde. A miudeza do tempo que sobra desperta nela uma criança, que prefere os grunhidos para chamar a atenção, embora não tenha perdido a capacidade de falar. Ao contrário, as ordens não cessaram; também não as perguntas sobre quem saiu, aonde foi e a que horas volta. Muitas vezes, a nobre fidalga prefere o francês que a acompanhante se acostumou a entender. Os caprichos vão além: procura renovar a infância em travesseiros ou pinguins de pelúcia. Só outra criança, a bisneta, parece trazer equilíbrio à desordem. A visita dela justifica a persistência da lucidez, encanta a ponto de prolongar as horas miúdas. A menina transforma o minuto em doce.

A complexidade do título que revela a sua idade (em francês, quatro vezes vinte mais dezessete) é a mesma das relações que ela mantém dentro seu território, cercado por fortes laços de família. Aos noventa e sete anos, ela resiste de fato porque ainda tem o controle sobre as vidas ao seu redor. Embora não tenha mais noção dos dias, muito menos se lembre de que hoje é seu aniversário, ali vale o calendário ditado por ela. As decisões tomadas jamais ignoram sua agenda de remédios e desejos. Assim, o mundo continua girando à sua feição. Absolutamente consciente do respeito que merece, faz valer sua força de chefe de estado e mantém o reino em suas mãos. Também por amor, ninguém ousa desafiá-la. E a rainha Mami sobre-vive.

quarta-feira, 8 de junho de 2011

O Mistério das Nuvens

Alice tem um livro chamado Histórias de Arrepiar, todas com personagens da Disney. Num desses contos, Mickey está no sótão procurando uma fantasia para o Halloween. Esperei o fim da leitura para explicar o significado de sótão. Na mesa de cabeceira dela, escolhi um dos enfeites trazidos de festa de aniversário que é uma caixinha em forma de casa. Nela, o telhado é a tampa. Nele, havia uma janela. Perfeito! Recortei um pedaço de folha de papel e, no meio, fiz um alçapão. Depois, coloquei o papel entre a caixa e a tampa. Pronto: pela janela, ela viu o sótão, matéria concreta sobre laje de papel. Com o dedo, ainda abri e fechei o alçapão. Para completar, faltou apenas encontrar uma escada de Playmobil. Assim, o sótão deixou de ser um mistério.

O mistério do título teve início nos intervalos de iCarly, que é legal, e Sonha Comigo, cuja música me dá arrepios, por motivos diferentes dos aqui tratados. Nesses intervalos, o canal anuncia insistentemente a estreia da nova atração: o Mistério de Anúbis. Ou das nuvens, como Alice prefere. O clima do trailer faz jus ao título, faz a menina tampar os olhos com as mãos ou esconder o rosto atrás das almofadas. Primeiro, ela diz que não quer assistir porque vai sonhar, igual ao filme dos anéis. Depois, coragem súbita, muda de ideia. Somos nós então que proibimos porque, afinal, ela mal chegou aos 6 anos. Mais tarde e na manhã seguinte, dias depois e na outra semana, ela não desiste: quer desvendar o mistério da nova palavra.

Mistério é uma pessoa? Não, é uma coisa que a gente não sabe explicar.

Mistério é um fantasma? Não. Vou dar um exemplo. Você está com vontade de brincar com uma Barbie e, depois de procurar muito, não acha a boneca no seu quarto. O que aconteceu com ela é um mistério.

Parênteses: se realmente não está lá, ou Barbie foi selecionada para doação na última limpeza às vésperas do Natal ou o Beleléu a levou depois de alguma malcriação. Não é uma boa entrar em detalhes. Suponha que Alice se lembre de uma boneca que teve esse fim. A conversa pode durar um dia inteiro e vai se tornar discussão, com choro, pirraça... Por isso, os parênteses (agora fechados).

Quando tem um barulho na cozinha também é o mistério, né? Isso. Muito bem!

Outro dia, aquela voz na casa da iCarly também era o mistério.

E aquele que eles pensavam que era um monstro? Era só um gatinho.

Aposto explicativo: trata-se de um lento exercício de compreensão do significado da palavra, ainda um mistério a ser desvendado; fica evidente quando, entre um e outro exemplo, observamos nela um olhar perdido de reflexão. Também um olhar de mistério.

Alice não tem dormido bem.

quinta-feira, 2 de junho de 2011

Pedro, o Garotomóvel

O pai lê um livro no sofá com as pernas acomodadas no assento. Ao lado, a mãe alimenta o bebê com leite morno. Faz frio, mas Pedro parece não ligar para a temperatura. Aparece na sala de cueca e camiseta, pende a cabeça para frente, autoriza sua própria largada e dispara. Dá voltas na mesa de centro desenhando traçados para um monótono circuito oval. Assim ele esquenta os motores. O sobrenome dele é McQueen, pele vermelha da tribo dos loucos por rodas. Faz o pit-stop entre as pernas do pai, que agora tem os pés no chão. O garotomóvel tem pressa, sempre, mas respira e aguarda seu mecânico particular terminar de trocar os pneus e encher o tanque de combustível. A simulação começa abaixo dos tornozelos, com movimentos rosqueados da mão direita, e termina com o dedo anelar numa das axilas. A corrida insólita continua após a breve troca de risadas. Parece não ter fim.

Os olhos do pai voltam para o livro quando Pedro se cansa. A mãe parece não acreditar, mas acontece. Ele troca a tresloucada correria pelo chão repleto de carros, ônibus e outros móveis, decorados também por caminhões e uma jamanta. A mãe sai da sala para embalar o irmão antes de colocá-lo no berço. Mais uma vez, o pai abandona o livro: de mecânico se torna sonoplasta, como o filho, enquanto liga a TV. Os efeitos sonoros dão graça às batidas, que se repetem na tela em meio às risadinhas que acompanham as tramoias de um vigarista. De repente, Pedro entra em transe e seus olhos, antes dispersos, não desgrudam mais do desenho animado. O carro de polícia com a sirene ligada continua em suas mãos, pendente, em inércia passageira. O pai aproveita para pegar o livro de volta. Espera o silêncio da sirene para continuar de onde parou, anos luz distante daqui.

Dividido, ele reveza o olhar entre o parágrafo e a criança. Imagina o filho nas mesmas naves espaciais em que ele viajou e acaba levando Pedro para dentro do livro. Ali, ele vira personagem, ganha nome estelar.

Termina a corrida, que Penélope vence, e Pedro está com fome. O pai dá a mão ao menino, leva-o até a cozinha e o abastece de fato. Agora Pedro está com sono. O pai põe a criança na cama e começa a contar a história de um garoto apaixonado por carros, que anseia por pernas compridas para alcançar os pedais. De olhos fechados, Pedro não surpreende o pai com o que diz em seguida. Ele quer asas além das rodas.

quinta-feira, 26 de maio de 2011

A Calça de Vovô Congo

É fato e aconteceu assim. R e P dividiram o mesmo quarto de um hotel em Búzios durante um congresso de mecânica dos solos. R teve que voltar ao Rio mais cedo e acabou deixando uma de suas calças para trás. Quando percebeu, R ligou para P que prometeu guardá-la e devolvê-la assim que voltassem a se encontrar. A calça ficou esquecida em casa até que, em curso da PUC, P encontrou B, que trabalha na mesma empresa que R. Como ficou combinado, no dia seguinte, P levou a calça para B que a colocou na mochila e não mais a tirou de lá. Dias depois, a calça foi encontrada e posta para lavar. Quando B chegou do trabalho e a viu pendurada no varal, não a reconheceu. Tendo verificado o número da calça, B conseguiu imaginar apenas duas hipóteses: ou sua esposa tinha um amante, que certamente era maior do que ele, ou a babá de seu filho namorava às escondidas dentro de seu apartamento. Dúvida esclarecida e esposa inocentada, sobrou para a babá, que passou a ser vigiada. Enquanto a prova filmada contra a transgressora não era produzida, B foi convocado para uma viagem a uma obra no interior de Minas. Para que sua mulher não ficasse sozinha com a criança, a sogra veio para passar alguns dias e tirar uma casquinha do neto. Assim que soube da história e das suspeitas contra a colaboradora doméstica, deveras preocupada, prometeu à filha que daria um jeito. Levou então a calça para o terreiro de Vovô Congo. Ele faria um trabalho para afastar o namorado da babá da casa de B, bem com as más influências dos tais encontros libidinosos. Nesse ínterim, P encontrou R e perguntou se B tinha devolvido a calça. Assim que B voltou de viagem, R o procurou para saber da calça. Houve testemunhas quando a lampadinha acendeu no cérebro de B e seus olhos brilharam. Em casa, contou para esposa que o mistério da calça estava desfeito: R era o dono da calça. Ela retrucou com a notícia que voltou a tirar o brilho dos olhos do marido: a calça não estava mais lá. B ficou sabendo que, de limpeza em limpeza, tinha sido levada para doação. R sofre agora com as brincadeiras dos colegas sobre os possíveis efeitos do trabalho de Vovô Congo. Contudo, não dá ponto sem nó: ainda cobra de B seu caríssimo modelo Armani. B ainda se diverte com o acontecido e se esquiva enquanto pode.

sábado, 21 de maio de 2011

X e Y

Sentávamos em torno da mesa redonda, de costas para a janela que dava para o mar, ao lado de um espelho enorme que ocupava quase toda a parede da sala de jantar na casa da minha avó. A diferença de idade não era tão grande, mas eu era o professor – particular, de matemática. Professor ainda estudante. A aluna vestia de preto sua adolescência, seus motivos e mistérios. Tinha olhos de quem pouco dormia. Era uma menina muito compenetrada, prestava uma atenção enorme àquilo que eu dizia, exercitava as fórmulas da 6ª ou 7ª série sem reclamar. Vinha sempre acompanhada pela avó, uma senhora alta, muito bem vestida, que permanecia sentada na poltrona da sala de estar durante toda aquela hora de números e variáveis. A avó passava o tempo lendo, um livro que depois me deu de presente. E não foi o único: ganhei também outro livro, um de receitas de coquetéis, que deve estar guardado ainda no quarto ao lado da mesma sala espelhada que abrigava a mesa redonda.

Foram alguns meses de insistente silêncio até que resolvi provocar. Eu queria vê-la reagir, contar alguma coisa. Para conseguir o que queria, levei à mesa alguns de meus poemas. Interrompi a aula para mostrar um deles. Se por respeito apenas, eu não sabia ainda, mas ela mostrou interesse. Talvez tenha lido mais de um e, dando-me certeza, falou de si pela primeira vez: ela também escrevia poemas. Ela os trouxe na aula seguinte. Os temas eram da cor que ela vestia. Lembro que havia uma aranha no meio dos versos.

Não foi a única vez que intrometi poesia durante uma aula de matemática. O outro aluno era ainda mais silencioso (ao contrário dela, o silêncio dele começava nos olhos, os mesmos que se recusavam a me encarar). Entre nós, ele impunha uma distância quase cínica. Certa vez, com a aula chegando ao fim, ele quase cantou: vou-me embora, vou-me embora... Antes que me derrubasse com as evidências de uma aula entediante, perguntei se ele iria para Pasárgada. Pela primeira vez, ele sorriu também com os olhos. Voltei a perguntar: você é amigo do rei? Veio então outro sorriso, ainda maior que o primeiro: eu sou o rei. A partir daquele dia, as aulas passaram a ser realmente divertidas, até para mim, o bobo da corte. Ele foi meu aluno em sala de aula também, época em que li o livro que ele mesmo escreveu.

Há poucos anos, encontrei o rei de Pasárgada no Orkut. Contrariando as minhas expectativas, ele estudava Física. Dela, ficou apenas a recordação da avaliação que fez da minha aula e a maior recompensa que tive como professor particular em qualquer tempo: se me faltava experiência, aquela era uma hora de paz.

domingo, 15 de maio de 2011

Sem Folga, Mãe

A baixinha acorda mal-humorada. Beijinho discreto na mãe, senta-se no sofá, estica o braço para receber o Toddy, que sempre fica pronto antes que ela se levante, e pede: Quero ver televisão. Não tem por favor, é uma ordem. E não quer saber de mim. Focada na tela, não se mexe quando lembro que temos um presente para dar e um show para apresentar. Demora um tempo ainda, espera pelo fim do programa para buscar a sacolinha de papel escondida no meu armário. Com as mãos para trás, faz mistério com sorriso sapeca. Está acordando, parece. O pingente em forma de coração faz a mãe sorrir. Acordou de vez: pirraças contínuas fazem a mãe fechar a cara. Hora do show, então. Ainda com a calça do pijama, para contrariar. Cumprimos o combinado no sábado. O CD toca Doce Mel e seguimos a coreografia que ela inventou, com algum improviso, claro. Depois, o show continua com Zélia Duncan, que nos ajuda a dizer que mamãe será feliz e todos... serão também! Mamãe sorri de novo, das nossas maluquices, e ganha um beijo duplo no final. Agora, a pequena quer ensaiar no dia de se apresentar. Troca o CD da infância da mãe, e de outras mães, por Glee. Diante de alguma hesitação minha (estou cansado; com preguiça para qualquer atividade física que não tenha sido prevista), mais pirraça. Resmunga, faz beiço, contorce o rosto... Será que criança não se toca? Não é assim que se consegue as coisas. A ladainha se repete e a mãe se aborrece, de novo. Eu topo encarar o ensaio, mas sem choro. Ela quer uma música que tenha um menino e uma menina cantando. Eu danço, sempre, e ela canta em seu dialeto preferido: o inglês embromado.

Vamos então almoçar com a minha sogra, mãe da mãe da baixinha. As outras mães ainda dominam a programação. A mãe da baixinha se pergunta, com razão, quando será a vez dela. Quando for avó? Por outro lado (o meu), a solução foi dada antes: um café da manhã no sábado, cuidadosamente marcado, para compensar a falta do almoço, para o horário não ficar apertado para a festa às quatro da tarde, de um amigo da escola – imperdível, então. O domingo não é diferente, com programação intensa: temos o aniversário de uma amiga da mãe, mãe também, no início da noite.

Quando o fim de semana termina, formulo algumas conclusões...

Ser mãe é não se esquecer das outras mães – as suas, as agregadas e as periféricas.

Ser mãe é aguentar a falta de tempo dos filhos maiores e a insolência dos filhos menores (insolente é termo de avó, que é mãe do pai ou da mãe, que é mãe ao quadrado).

Ser mãe é ter que contar com um marido tonto (euzinho), meio perdido no meio de tantas mulheres, oferecendo uma massagem à tarde, entre o almoço que passou e o jantar que virá.

O dia das mães não é como o dia do trabalhador. Porque ser mãe é ser mãe até no dia das mães. Sem folga.

domingo, 8 de maio de 2011

Os Suspeitos

Antes do filme, os beijos. Durante, os beijos perderam a vez – o filme era muito bom. Saíram do shopping em Botafogo e estacionaram o carro na rua onde ela morava, com duas rodas sobre a calçada ao lado do tapume que escondia as obras do prédio que começava a subir. Trocaram mais beijos, antes do papo ficar sério. Convicta, ela disse que não gostava de jogar. Ótimo, porque parecia óbvio e só faltava mesmo oficializar. Estão agora namorando há exatos quinze anos.

A decisão foi tomada depois de um bilhete, dela para ele, e de umas poucas saídas, suficientes para descobrirem afinidades nos livros e no coração. O bilhete se transformou em inúmeras cartas, as dela mais longas que as dele, que nunca exercitou tanto expressar o que sentia. A fase de novidades e deslumbre esconde os defeitos que só a convivência revela, mas foi tateando surpresas maravilhosas que eles fizeram as escolhas que os trouxeram juntos até aqui, aos 8 de maio de 2011.

Sempre um passo a frente, ela encontrou trabalho nas salas de aula de inglês, enquanto ele andou em círculos durante tempo suficiente para ela desistir. O amor resistiu até ele se estabelecer e ela então procurou pelo apartamento que eles podiam pagar. Quando encontraram, decidiram se casar. Mas nada foi assim tão rápido quanto as frases sugerem. Tiveram tempo para se acostumarem, para comprarem os móveis, para os aborrecimentos com a lista de convidados e os pequenos detalhes que fizeram questão de terceirizar. O casamento aconteceu numa igreja daquela mesma rua insuspeita, pouco mais de cinco anos depois daquela conversa.

Os anos fortaleceram a parceria a ponto de planejarem um filho depois de uma longa viagem, apesar das muitas inseguranças que cercam a opção. A criança é o melhor resultado dessa parceria e a espera por ela talvez seja a etapa mais bonita desse amor. Ela chegou em 2005 ocupando espaços físicos e emocionais, reinventando antigos namorados, agora chamados de pai e de mãe. Com o tempo e o peso das responsabilidades mal divididas, mal conversadas, eles encontraram pessoas diferentes em seus pares. Tiveram que reavaliar os objetivos pessoais e rever as afinidades (a professora virou tradutora, o engenheiro voltou a escrever). E, ainda hoje, eles têm que reaprender a encontrar seus minutos além das horas que dedicam à criança.

Eles continuam juntos depois de quinze anos. Brigam quase nunca, mas se estranham às vezes. E quando isso acontece, ele se lembra mais uma vez daquele dia, em que eram suspeitos dentro de um carro mal estacionado numa rua escura, onde perambulava um sujeito manco que os seguia desde o cinema. Ali, os suspeitos transformaram casos de mistério em uma história de amor.

sábado, 30 de abril de 2011

Lanterna sem Pilhas

Há alguns anos virei as minhas costas para tudo o que diz respeito à política. A minha leitura sobre o assunto nos jornais se restringe às manchetes. Em época de eleições, não assisto ao horário político obrigatório nem a debates. Sair de casa para votar é uma tortura e votar em branco, minha opção preferida. Antes de tratar da minha aversão, que já não é tão recente assim, é interessante contextualizar a minha formação política.

Nasci em 1974. Vivi meus primeiros anos de estudo na década de 80 – anos de anistia e redemocratização, de mobilização pelo voto direto, da formação de uma nova assembleia constituinte. No ambiente escolar, política e futebol me traziam o mesmo sentimento: solidão. Era o único tricolor da turma e o único com influências políticas à direita e contra o fluxo da opinião comum da época. As influências eram paternas, de formação conservadora, de militância intensa na juventude, de experiências de censura e perseguição quando fazia oposição aos governos de Getúlio e JK.

Na escola fiz o meu melhor amigo. E a amizade de duas crianças fez o impossível: reuniu numa mesma mesa o Clube da Lanterna e o PTB. A relação de respeito logo se transformou em amizade: Paiva foi um dos poucos convidados no jantar de aniversário de 50 anos do meu pai. De repente, a política começava a fazer sentido para mim e, na sala de aula, eu aprendia uma palavra que também fazia sentido: bem-comum.

Naqueles tempos, o sangue de meu pai fervia quando a nossa professora de história passava trabalhos que provocassem o debate político. Mesmo que tivesse razão ao criticar, por exemplo, um trabalho sobre os CIEPs às vésperas de uma eleição, ele exagerava na crença da conspiração. Antes de tudo, os trabalhos despertavam o senso crítico, formavam cidadãos e eu não me sentia tão sozinho assim.

Os anos foram passando e também a sensação de que eu (ou meu pai, num primeiro momento) estivesse errado em minhas (suas) convicções políticas. Aos poucos, fui colocando cores diferentes nos meus votos e prestando atenção em outros discursos. Contudo, a sopa insossa de letras partidárias aqui no Brasil fez com que eu buscasse referências políticas nos indivíduos e não em causas traduzidas por siglas, que perderam força com o tempo. Indivíduos que, no fim das contas, se revelavam muito parecidos entre si.

Houve ainda outro episódio de alento envolvendo Amaral Netto, que era amigo de meu pai, e uma figura intocável na mídia, com posição política absolutamente adversa. Depois de uma aproximação difícil, com grosserias de parte a parte, houve consenso que o projeto social proposto merecia alguma atenção. Ainda assim, foi pouco e o distanciamento se tornou aversão.

Em Verão, de J. M. Coetzee, na resposta de uma entrevistada ao suposto biógrafo do escritor sul-africano, encontrei uma boa definição para minha relação com a política. Sobre Coetzee, ela diz: “Não, não apolítico; melhor dizer antipolítico. Ele pensava que a política despertava o que havia de pior nas pessoas. Despertava o que havia de pior nas pessoas e também trazia à tona as piores figuras da sociedade. Ele preferia não ter nada a ver com isso.”

Em outro momento, ela diz também que “Na visão de Coetzee, nós seres humanos nunca abandonaremos a política porque a política é tão conveniente e tão atraente quanto um teatro em que damos vez às nossas emoções mais vis. Emoções mais vis significando ódio, rancor, despeito, inveja, sede de sangue e assim por diante.” Eu complemento dizendo que ainda estamos longe do dia em que os homens entenderão política como serviço absolutamente desinteressado, baseado em sentimentos de amor, respeito e tolerância.

terça-feira, 26 de abril de 2011

Horas de Estrada

Rob Halford e Troy Bolton batem boca. A disputa acontece entre a música que toca no painel do carro e o filme que distrai a criança no banco de trás. Embora a distração não a impeça de perguntar se estamos perto de casa e de ensaiar um drama quando a resposta é negativa, devo reconhecer a sorte que temos. Meus pais tinham que reinventar passatempos. Com o DVD, nós podemos nos concentrar na água que bate forte no vidro, na frequência do limpador de para-brisa, nos carros que vão e vêm. E quando estes levantam água do chão e obstruem a visibilidade... Que legal! Sharpay acha um barato.

Obras a 27 quilômetros: a chuva dá uma trégua na violência, mas a lentidão do trânsito aumenta pouco antes da serra. O carro hesita, a embreagem trabalha como nunca e nós precisamos fazer xixi.

Nos intervalos de tensão, penso nos pardais. Parece poesia, mas é a indústria da multa que me irrita. Conto os carros que trafegam impunes pelo acostamento e não vejo vantagem na fiscalização pontual de velocidade. Pardal podia ser qualquer um assobiando, com capa de chuva e bloquinho na mão, anotando as placas dos malandros que pegam o atalho proibido ou costuram sem se preocupar com a vida. Não precisaria de mais de uma hora para o fiscal atingir a meta do dia.

Penso de novo na sorte. Quando criança, era uma Brasília bege que nos levava por aí sem ar condicionado. Nela, conheci as capitais do mundo, de Tóquio a Tegucigalpa, em viagens longas até Porto Alegre ou Salvador. Aprendi outras coisas também com os passatempos do meu pai, quase sempre um jogo sem tabuleiro, que preparava meu futuro nas gincanas do Sebastian Bar. De repente, acho que Alice pode estar perdendo uma boa oportunidade de jogar adedanha. Mas se Grease dá lugar aos Wildcats que dá lugar a Tim Burton, tenho certeza de que ela está se divertindo. Enquanto Alice, a outra, toma chá com o chapeleiro e se esconde no bule, a minha Alice inventa uma história.

Lea se junta ao Luke Rapidinho para enfrentar o inimigo Ráuli Devagar (ou Hauly, não sei). Ela diz que foi George Lucas que inventou o novo conto estelar e Chewbacca é o coelho. Lembra então que ele escondeu os ovinhos em casa, que está anoitecendo e não vai dar tempo de procurá-los. Não vai dar tempo também de lavar os cabelos. Drama, de novo.

Nane aumenta o volume: Bono discute com a Rainha de Copas.

domingo, 10 de abril de 2011

A Presidente

Era uma vez uma formiguinha. Nasceu de um poema que escrevi há mais de quinze anos. Era assim diminuta e trabalhadeira. Não parava quieta. Era mãe dos nossos tempos de criança, um tanto dona-de-casa, outro tanto professora; casada com um homem dezessete anos mais velho, de tempos ainda mais remotos. Parou de trabalhar no Banco quando eu nasci, o mesmo em que ela conheceu meu pai (ela caixa, ele cliente). Voltou mais tarde, nas salas de aula. Além dos três que tinha em casa, era assim mãe de outros filhos também. Faltava o diploma, contudo. O sonho tinha sido adiado muitas vezes. Porque ser mãe é abdicar de sonhos íntimos para compartilhar realizações. E ser gente é perder para ganhar. Mas perder não é necessariamente para sempre.

O poema que escrevi foi lido em um dos discursos de sua posse. Poderia ter sido relido no discurso de formatura, se fosse um evento de uma só pessoa. A presidente veio antes da pedagoga, porque a formiguinha trabalhou muito antes de voltar a sonhar. Ela e meu pai sempre tiveram vida social intensa. Começaram com Encontro de Casais e continuaram como leões. Agora repito: minha mãe é dos nossos tempos de criança. Quando ajudaram a fundar o Lions Clube Glória, só os homens participavam das reuniões. Eles eram companheiros leões e as mulheres, gentilmente chamadas de domadoras. Transição completa, elas se tornaram companheiras leão. Mamãe foi a primeira mulher presidente do seu clube.

Alice estava na barriga quando a futura vovó pegou o canudo. Os anos de estudo não foram fáceis. Muito curiosa foi a inversão de papéis: Neidinha ligava pra mim depois das dez (ela nunca dormiu tão tarde como nos tempos de faculdade), reclamava da rigidez de um certo professor ou da prova ruim que tinha feito (da mesma prova ruim em que ela tinha tirado oito e meio). Cabia a nós, filhos, ouvirmos e incentivarmos. E a dissertação de final de curso foi então uma novela mexicana, em que o meu pai era o galã à moda antiga... eu ajudo, eu reviso, eu resolvo.

Neida é a formiga que já foi presidente, estilo doce e dedicada, e é pedagoga, estilo mãe de muitos filhos, do tipo preciso respirar. Os meus versos diziam, e se repetem hoje, assim:

FORMIGA-MÃE

Sabe a formiguinha?
Que nasceu faz pouco tempo
Que andou em pouco tempo,
Continua andando...
Muito brava e corajosa,
Continua buscando...
E tanto andou
Tanto buscou
Que acabou crescendo:
Virou formigona.

Sabe a formigona?
Que nasceu ainda agora
Que perdeu-se há dois minutos,
Continua perdida...
Hesitante e cheia de dúvidas,
Continua buscando...
E tanto tentou
Tanto aceitou
Que acabou recompensada:
Hoje é rainha.

Sabe a rainha?
Que tanto compreende
Que tanto sofretorce,
Ela é mãe!
(De tanto sobreviver,
Por tanto lutar)
E cria várias formiguinhas,
Que nascem felizes
Mas vivem tristes
Iguaizinhas àquela
Que começou esta história.

segunda-feira, 4 de abril de 2011

Maratona e Treinamento Jedi

Ao ver o pórtico de entrada do estacionamento, caiu a ficha. Vibraram os gritinhos e as palmas da Alice. O parque estava muito cheio. Não chegava a estar calor, mas o sol queimava o cocuruto. Os minutos de espera ficavam próximos ou além da hora. Enfrentamos as filas daquele dia para tirar fotos. Jasmine e o abraço apertado do Tigrão foram um belo começo. Encontrar o titio Pooh (meu irmão camarada), melhor ainda. Se Rapunzel tinha um cantinho só para ela, as outras princesas ficaram para o fim da tarde, na maior das esperas daquele dia e quando a bateria da câmera já tinha acabado. Fotos no celular, então; ou, no site da Disney, onde o download custa exatos... esquece! Felizmente lá estava Ariel, a preferida. Mas a nossa Alice queria mesmo encontrar a outra Alice – essa foi a solitária frustração da menina em toda a viagem.

Chegamos perto das 10h e saímos 12h depois. Desafio para profissional, para Jedi maratonista. Nossos pés latejavam, a batata da perna reclamava, o cangote nem se fala. Eram 20h30 e, sempre de pé, estávamos em frente ao castelo da Aurora assistindo ao show de fogos, num dos momentos preferidos da Alice: Sininho voando nos céus de Anaheim. Sobre os meus ombros ela continuou na apresentação seguinte, perto da ilha de Tom Sawyer. Revezamos. Pra cá, pra lá, e a doce filhota compensava o nosso esforço narrando o que não conseguíamos ver: chegou o Mickey; a bruxa; agora o barco, com aqueles dois do filme da Alice... aliás, uma das diversões do dia foi remar, dar a volta na ilha dentro de uma canoa. Haja braço também!

O treinamento Jedi aconteceu no início da tarde. Nane e Alice se sentaram no chão junto com as outras crianças. Depois de muito alvoroço, algumas foram selecionadas para aprender a lutar com o sabre de luz. A aula só foi interrompida com a aparição da turma do lado negro da força: Darth Vader (Alice adora) e Darth Mau (assim mesmo, como o lobo). O primeiro desafiou os aprendizes e o segundo optou por distribuir caretas para os espectadores. O olhar compenetrado daqueles que enfrentavam o homem de preto só não era mais impressionante que a diferença de altura entre ele e os pequeninos. Fiquei procurando, mas o Yoda apareceu apenas disfarçado de mochila nas costas de algumas pessoas.

Intervalo para descanso no sábado de comprinhas e reencontro. Alice parecia um zumbi até ganhar um tênis rosa reluzente e, no Farmer’s Market, elegeu Fernanda sua nova melhor amiga.

Mas a maratona continuou no domingo. Em Buena Park, para nós, e em Los Angeles, para os que têm fôlego.

quinta-feira, 31 de março de 2011

A Vendedora de Queijos

Fazia parte dos meus sonhos refazer a viagem pelo litoral da California com um pouco mais de calma. Com as melhores companhias do mundo, realizei em três noites: a primeira, em Carmel, em seguida à visita ao Aquário de Monterey; a segunda, em Solvang, depois de muitas horas de inesquecíveis paisagens abençoadas pelo sol, intercaladas por momentos de alguma neblina; a terceira em Santa Barbara, após uma indisposição que acabou prejudicando o dia.

Em Monterey, repetimos a visita feita sete anos antes, agora com Alice, que se apaixonou pelas lontras e, com alguma hesitação, colocou o dedinho em pepinos e estrelas-do-mar. Chegamos anoitecendo a Carmel para conhecê-la na manhã seguinte. Começamos pela loja de queijos, muito bem recomendada. Provamos de tudo um pouco, compramos alguma coisa para comer no resto da viagem ou trazer para casa. Alice se deliciava com as lâminas que a atendente oferecia. Tanto que o dono, muito simpático, convidou-a para voltar de avental quando completasse dezesseis anos. Na loja ao lado, escolhemos alguns apetrechos de cozinha. Seguimos pela praia, parando para fotos, até a Missão de Carmel.

Já enfrentávamos as curvas da estrada de Big Sur, quando a fome nos obrigou a improvisar. Paramos o carro, abrimos o Brillat Savarin (dentre os queijos comprados, o mais parecido com o preferido da Alice: aquele branquinho...), um pacote de biscoitos e estreamos a faca nova. Mais tarde, a pequena dormiu e, quando acordou, passou a reclamar da demora e do balanço. Riu um pouco com a cidade Gorda e, depois de uma parada estratégica em Ragged Point, aceitou a troca do sonhado DS, comprado em San Luis Obispo, por mais uma hora de viagem até Solvang – um simpático cantinho dinamarquês, que acabou conhecido como a cidade fofinha.

No dia seguinte, a caminho de Santa Barbara, as curvas combinadas com mais alguma coisa me fizeram mal. Do píer fomos para o hotel, onde fiquei sozinho assistindo a episódios de um reality show de maquiadores, que criavam monstros e alienígenas, enquanto as meninas passeavam.

Melhorei durante a noite e acordamos, de novo, com o pé na estrada. Dali para Anaheim era um passo, mais algumas horas de trânsito em torno de Los Angeles. O país das maravilhas se aproximava. E, no caminho, Alice nos confessava que gostaria de ser cantora ou vendedora de queijos! Planos para 2021...