segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

O Último Degrau

Para refazer o caminho da escola, fui para a casa de meus pais bem cedo. Optei pelo transporte menos frequente e mais marcante. Às 6h30, eu e meu irmão – pequeno ainda, menor do que minha filha é hoje – entramos no ônibus. A rádio tocava Eduardo e Mônica, e seu Zé, o motorista, estava visivelmente irritado por causa de alguma balbúrdia na parte de trás. Mas logo abriu um sorriso pra nos desejar um bom dia. Quando chegamos à escola, respirei fundo e, diante do muro amarelo, disse a mim mesmo que saudade tem cura – devemos apenas ter coragem para cometer um crime: matá-la. Subimos a rampa de mãos dadas, até ele encontrar todas as outras crianças vestidas com jardineiras azuis, deles, ou amarelas, delas.

Sozinho, entrei pela porta da frente da casa, olhei de soslaio para a secretaria, e também assim, como quem não quer nada, Dona Dulce apenas levantou os olhos para me cumprimentar. Ali eu me reencontrei com o jardim de infância, que tinha o carinhoso nome de Nenequita. O piso cor de telha dos degraus da escada me levou ao andar de cima da casa, onde ficavam as salas de aula das crianças. Passando pelos banheiros e pelo pátio coberto, alcancei as salas dos fundos, onde aprendemos a ler e escrever, onde nasceram amizades que ainda permanecem.

A casa virou prédio com a gente. Subimos juntos e fizemos parte da segunda turma a levar o Nenequita à Escola Degrau. Passamos da tarde para manhã ocupando, a cada novo ano, uma das quatro salas do andar de cima, onde às 7h começavam as aulas e, ver por outra, o mesmo sermão. Olhei o relógio e, sem dar bola para o inspetor MacGyver, subi as escadas correndo para ver se chegava a tempo. O colégio não era religioso, mas ensinava o catolicismo para quem não se recusasse. Quem professava os discursos era Dona Célia. Por um breve instante, vi minhas pernas encolherem, os círculos se encontrarem no meu peito e uma cruz vestir a interseção. E lá estava ela, dando a bronca da manhã para acordar os alunos e contar todas aquelas histórias de seu tempo de juventude.

Na hora do recreio, quando cheguei ao pátio que ficava no último andar, dei de cara com a minha mãe. Qual é? Você aqui também? Estávamos quase nos formando na 8ª série e deixando a escola. Ela foi convidada a trabalhar lá para nos vigiar, eu e minha irmã (a brincadeira é irresistível). Ficamos apenas seis meses juntos – a minha segunda casa passou a ser a da minha mãe. E, de lá, eu e meus amigos fomos para o mundo, com a companhia do Santo Agostinho, da Princesa Isabel, do sagrado coração de Maria...

Bem mais novo, anos depois, o meu irmão viveu a aventura do 2º grau, apertado num espaço físico que não podia mais crescer. Nessa época, ainda sem rumo depois da faculdade, deram-me a chance de ser professor de trigonometria e, durante um ano, respirei aquele ar de saudades agudas e tangentes suaves.

O tempo passou.

Tia Célia se foi. O Coronel também.

Há algum tempo, Mariinha, a filha deles, cuja imagem também se confunde com a da escola, não comanda mais a casa. Vinte e dois anos depois de nossa formatura, os passos de minha mãe e outros professores antigos seguem novos caminhos. Assim parece que chegamos ao último degrau. Sentado no pátio com a lancheira aberta, comendo um sanduíche de queijo e tomando suco de caju com lágrimas, ouvi pela última vez as nossas risadas em meio à gritaria.

Seguidas por um severo pedido de silêncio.

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Círculos

Caminhamos por túneis estreitos há horas. Deixamos o último ônibus no Nível 7, quando Fausto já havia assumido a direção. Os passageiros, aquelas pessoas de olheiras profundas, não sobreviveram, tenho certeza. Ela tem um passo rápido, difícil de acompanhar. Eu a estou seguindo desde o Nível 4, quando nossos olhos se cruzaram no espelho do estojo de maquiagem que ela ainda guarda no bolso. Se é uma obsessão minha, ela parece não se importar. Passamos por diversos níveis sem trocar uma palavra. No máximo, novos olhares espelhados e alguns sorrisos. É tentação, ainda acho. Para mim, ela é Kátia Flávia, escondida aqui por motivos que desconheço, por ora. Pergunto pela primeira vez aonde vamos. Ela olha paro o lado e sorri. É sempre o mesmo meio sorriso, e eu ignoro o que acontece com a segunda metade dos lábios.

Chegamos a uma praça, ainda dentro de uma caverna, onde as luzes são débeis e o ar rarefeito. Ali vários túneis desembocam. Eu conto nove. Há um caminho de brita que a contorna e, no centro, bancos espalhados a esmo. Do lado oposto ao que chegam os túneis há uma porta. Ela se abre, um anão aparece, estica o braço para fazer o sinal que nos contém. Escolhemos um banco para sentar: virado para porta, junto ao caminho de brita. O anão ganha a companhia de uma mulher barbada. Eu estou no circo... Não seguro a gargalhada que Kátia reprova com o olhar. Enquanto tento me desculpar com a mulher, pessoas chegam pelos túneis; em sua maioria, crianças. A mulher pede que eu me afaste. Ela organiza uma fila. As crianças estão todas enlameadas, com as vestes rasgadas, com os olhares tristes. Assim que volto a me sentar, ouço latidos. Os cães chegam pelos mesmos túneis, também sujos de lama, cabisbaixos. Cada criança ganha um companheiro. Os adultos ficam no fim da fila e fazem companhia uns aos outros.

Kátia volta a sorrir e me dá o prazer de sua voz: Eles são todos inocentes. E daí? Vamos para o céu. Desta vez, nossos olhares se encontram sem desvios. Eu vejo o sorriso inteiro e acabo sorrindo também. Enquanto a fila caminha em direção à porta, eu desenho com o dedo na brita. Apago com o pé quando o anão nos chama.

A porta dá para um corredor comprido que tem luzes no chão. Há assentos de um lado e de outro. Demoro a entender que entramos em um avião onde se aceita que os cães se misturem às pessoas. Ali eles recebem coleiras e nomes. Sentamos lado a lado nos lugares que restam. Kátia me pergunta o que levo comigo. Eu ainda guardo uma das canetas que comprei no Nível 1. O que você quer fazer agora? Dormir. E depois? Tudo o que ainda não fiz. Kátia insiste, quer saber o que eu deixei de fazer. Eu quero escrever uma história. Nossa conversa é interrompida quando a decolagem é autorizada. O comandante dá boas vindas, e eu reconheço a voz do anão. Em seguida, é a mulher barbada que traz o serviço de bordo, inclusive para os cães. Lá fora, é sempre noite. Estamos no céu, mas eu tenho a nítida sensação de que voamos em círculos.

Para retomar a conversa, é minha vez de perguntar o que ela quer fazer. Ela diz que também quer dormir. Depois, pretende chegar a algum lugar. Eu pergunto se posso ir com ela. Ela sorri. Leve sua caneta, encontraremos papel. Qual o seu nome, afinal? É Esperança, Amarante.

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

O Eixo de Amarante

Toco a campainha e a porta não demora a abrir. Cumprimentamo-nos. Entro na sala de espera e não preciso me sentar. A porta interna, que dá para o consultório, está aberta. Sinal de que já vamos começar. Como sempre, deixo os sapatos antes da porta e largo a mochila no chão ao lado do sofá, antes de ir ao banheiro. Quando retorno, ao me sentar, coloco as pernas de lado, com os pés sobre a almofada. Falo da viagem próxima, das passagens enfim compradas, das expectativas e da nossa animação. E só. Ela propõe então um exercício. Eu aceito a idéia: fecho os olhos, ponho os pés no chão. Minhas costas se ajeitam no encosto e, em posição tão ereta quanto possível, começo a respirar lentamente, com foco na coluna: do sacro à cervical e vice-versa. A respiração é pesada, ofegante, tão difícil quanto o distanciamento. Expiro tanto quanto suspiro. Concentro-me nos incômodos físicos: a coluna reclama, as mãos procuram descanso no assento, no colo; os dedos de uma e outra se misturam. Os pensamentos viajam ao Tao, que está sobre a mesa de cabeceira, intocado, foi presente de Natal e quer me revelar alguma coisa. A viagem é curta. A coluna volta a me incomodar, ainda mais ouço a respiração do que sinto. Resolvo dar o segundo passo e escrevo o meu nome na coluna. Escolho o nome completo, duplo, que parece rimar com o movimento respiratório, ainda um tanto ansioso, impreciso. O corpo se acomoda, encontra alguma posição. O exercício se estabiliza em ritmo imperfeito. Levo assim o foco para o coração – é a última etapa da experiência. Vêm então as idéias transformadas em textos que ainda não foram escritos. Lembro-me daquele que está pronto para ser lido e outros tantos criados em pensamento (mais tarde, este relato passa a frente dos que já tinham sido imaginados). A imagem de minha mulher surge no fim. De repente, os raciocínios não se desenvolvem mais. Apenas respiro e quero acordar. O exercício termina. Abro os olhos e mantenho a posição. Bem relaxado, descrevo ali o que está registrado agora. A interpretação dela é imediata, segura. A minha continua se desenhando. Decido dividir o que experimentei. A coluna é o eixo. A sua interpretação é livre. Por favor, comente.

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

Do Café au Lait ao Pão com Patê

Aos domingos, o café da manhã era no apartamento ao lado. A louça era especial e o meu prato já estava pronto quando eu me sentava à mesa. O pão francês era cortado a mão em quadradinhos que levavam geleia por cima. A bebida que era servida na xícara combinava o frio com o quente, o branco com o preto: café au lait. A mesa era redonda e os pés não se esbarravam por baixo dela, mas podiam acabar tocando a campainha que ficava no chão. Servia para nada, porque ali, apesar da pompa do ambiente, não havia serviçais.

A pompa tinha ares franceses. Naqueles tempos, minha avó ainda nos dava o privilégio de suas aventuras culinárias e meu pai, apesar do momento de vacas magras, não perdia a chance de encomendar alguma iguaria aos viajantes que passavam pelo Free Shop ou de correr para a Feira da Providência atrás de um maravilhoso queijo fedorento. Assim, desde cedo, meu paladar se acostumou a provar de tudo um pouco; e meu olhar, a acompanhar a movimentação de Mami na cozinha. Por isso, nunca tive pena dos coelhos: dos miúdos que restavam, assoprar o pulmãozinho deles era diversão garantida. E jamais senti nojo das lesmas: os escargots me foram apresentados comme il faut – servidos com pinças e retirados com cuidado das conchas.

Naqueles tempos, as vacas eram tão magras que quase não havia carne nas refeições. Os frangos se revezavam com suas próprias moelas, ou as dobradinhas dos ruminantes. A canja trazia patas de galinha e pedaços de fígado cozidos. Eu passava do improvável ao óbvio sem tampar o nariz ou virar os olhos. Toda rejeição era, no máximo, uma bela pirraça. A francesa, ao contrário, sempre foi menos tolerante: incapaz de comer farofa, porque tinha a sensação de areia na boca; ou de misturar feijão ao arroz, por causa da cor e do aspecto.

Hoje é um prazer ter a companhia de Alice na cozinha. Com todo o cuidado, tento desfazer os mistérios e os preconceitos: os ovos são mexidos, a faca de criança corta com dificuldade o pepino, o que ela rejeita agora pode acabar aceito daqui a algum tempo (os cogumelos da pizza são uma conquista recente; a cebola, a maior das dificuldades). A minha ajudante diz orgulhosa que sabe fazer ovos no micro-ondas. E ela não se contém ao ver o brie: Oba! É o queijo branquinho que eu adoro. Quando passa o dia na casa da minha mãe, não precisa pedir: o queijo está lá esperando por ela. Se eles perguntam o que quer de almoço, ela não hesita: bacalhau, arroz, feijão e farofa. Se vocês pensam que criamos um monstro para os futuros pretendentes, nem tanto assim: o prato preferido dela é mesmo a farofa.

Lamento que não houve tempo para Alice provar o patê de fígado da Mami. No jantar de noivado do papai e da mamãe, nem a Fibi resistiu. A língua da cachorrinha no patê foi quase um sacrilégio. Mas, pensando bem, lamentaria por quê? Parece que o desafio culinário agora é tentar reproduzi-lo. Se minha avó não pode mais fazê-lo, e certamente não é capaz de reescrever a receita, ela pode ainda provar e, quem sabe, aprovar.

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Cozinha e Companhia

Em férias quase obrigatórias, desliguei: não escrevi, não pensei. Férias coletivas no fim do ano aliviam a correria dos compromissos natalinos, mas a temporada é alta e as possibilidades de viagens ambiciosas são reduzidas. A melhor solução é caseira, improvisada, desde que não seja para a Região dos Lagos ou outro lugar qualquer aonde a viagem de carro se torne um suplício. Preferimos e optamos pelo sossego e a boa companhia disposta a compartilhar dos mesmos gostos, mais especificamente dividindo a mesma cozinha.

Minha relação com a cozinha é curiosa. Ali exercito minha criatividade a partir de características que não se revelam em outra situação: sou bagunceiro, não sigo regras (por isso, não me arrisco com os doces). Sou quase irresponsável, mas costumo acertar. E ali, no meio das festas, fiz a ave turbinada do Natal com molho de damascos e amêndoas. Depois, em São Paulo, acompanhei a série gastronômica de nossos amigos como sous-chef: paleta de cordeiro, coxa e sobrecoxa de pato, bife de chorizo, ojo de bife, risotto de pera com brie, fettucine alfredo e carbonara. Pratos acompanhados por vinho e muita água na boca.

O sossego que desejamos passa longe da praia de Copacabana, a mesma onde passei os 20 primeiros anos da minha vida assistindo de camarote aos fogos da virada, com a casa cheia e a mesa farta. Não tenho saudades daquela confusão; por isso, o show programado este ano pela prefeitura para a noite do dia 25 de dezembro chegou a me dar arrepios. Felizmente, ninguém teve a idéia de proibir as pessoas de saírem de carro do bairro depois das 15 horas.

Não tenho mesmo saudades da confusão, mas me entristece telefonar para os meus pais e ouvir a festa reduzida a três, sem convidados. Lembro-me do cheiro daquela comida dos anos passados, da alegria sem fim e do choro da esperança, que a sensação de recomeço traz, vertido sobre o champanhe. E, logo, do formigueiro na rua, dos restos de fogos que, certa vez, queimaram a cortina e, de leve, o joelho de minha irmã. E, ainda, de um réveillon com temporal em que desistimos de uma festa na madrugada porque as formigas se protegeram nas marquises do prédio e não tive coragem de abrir a porta para sair. Eu tinha certeza de que elas entrariam.

Daí preferir as tentativas de ver um filme, mesmo que interrompido pelos eventuais conflitos entre as crianças ou pelos desejos delas. Daí jogar conversa fora, sobre os filmes que queríamos rever, sobre o prato que ainda não fizemos. Com ou sem brócolis. E, por que não é brócoli? Pelo mesmo motivo que não existe lápi. Mas por que essas palavras não se libertam da letra esse no final? Porque nunca vêm sozinhas. É o caso dos lápis e dos ônibus, sempre em quantidade. E o púbis? Tem a metade da direita e a da esquerda. E o pênis? Para gargalhar e diferenciar do penne.

Daí preferir passar os últimos dias do ano na cozinha, tomando vinho.