Nunca mais comprei bertalha. Ela fazia parte do variado cardápio das
papinhas, feitas com legumes e verduras cozidos, depois triturados à manivela.
Naqueles tempos, talvez os únicos de uma Alice fofinha, de poucas costelas, a
minha ida solitária ao mercado de hortifrutis era obrigatória – sempre aos
sábados, pela manhã, procurava comprar os mais variados ingredientes.
A primeira carninha é inesquecível, para quem experimenta e para os pais que
limpam as fraldas. No alto do cadeirão, Alice pedia “aínha” mastigando as
letras e enrugando o nariz. Lambuzava-se ali, colorindo as bochechas de
beterraba.
Nas primeiras refeições à mesa, ela ficava sentada sobre um assento que a
colocava mais próxima do prato. Já sabia dizer não, fazer cara de nojo, pedir para
separarmos os verdinhos na borda do prato. Sabia também que preferia degustar a
deglutir. Por isso, as costelinhas salientes. O cardápio da creche, onde comia bem
melhor, era preparado por nutricionista e nos deixava mais sossegados. O
pediatra, por sua vez, apenas aconselhava um reforço de azeite e castanhas ao
longo do dia.
Eu me esforçava. Tentava misturar tudo: cenoura ralada, o arroz feito na
panela elétrica, o feijão da vovó, o frango em cubos que eu temperava com limão
e a farofa. Mas sempre havia o rejeitado da vez. Tentava outra vez, separando então
os itens da refeição em diversas tigelas para um jogo de múltipla escolha: o
milho aqui, o pepino lá, o arroz reforçado com cereais direto no prato. Porém,
o resultado era pior: Alice tendia sempre para a alternativa “d” – nenhuma das
acima.
A pior fase passou; aliás, não merecia tanto espaço porque foi sempre
entremeada por descobertas surpreendentes: o bacalhau (não só o bolinho), o meu queijo brie (que vovozão comprava
para esperar a visita da neta), o patê de fígado (que trouxe uma das reações
mais marcantes, do tipo: Quero mais! Já acabou? Quem comeu? Foi o papai, né?).
Hoje ela come sem parar, ainda cisma com a berinjela (e, insisto, não sabe o
que está perdendo) e também com a cebola, mas apenas quando percebe a sua
presença. Ela já não nos espera oferecer, começa a pedir para experimentar. Foi assim há alguns dias, para meu orgulho e das nossas companhias
gastronômicas.
No restaurante Primeira Pá, chinês de verdade, enquanto nos divertíamos com
as barreiras do idioma, Alice brincava de gilar
o tampo de vidro atrás do shoyo para encharcar o gyoza. Fez cara feia para os
mexilhões e o toucinho, mas continuava se sentindo desafiada por aquele ovo
estranho, de clara que parecia uma gelatina marrom e gema acinzentada. Destemida,
quis provar.
O ovo milenar faz parte agora do cardápio de
descobertas da Alice.
quarta-feira, 28 de março de 2012
domingo, 18 de março de 2012
Um Cenário por Semana
Sábado passado, com Nane em curso, levei Alice para passarmos
o dia com meus pais. Assim que chegamos, pedi a escada para reencontrar meus
velhos brinquedos no apartamento da minha avó, que divide o andar com o deles. As
caixas azuis permaneciam amontoadas no alto do armário do quarto onde fica o
computador da família.
Eram muitas caixas de Playmobil para escolher. Sugeri as de naves
espaciais, e ela aprovou. Desci com as duas naves que tinha: a maior delas, em forma
de octógono; e a mais interessante, parecida com um ônibus espacial. Ao
contrário de outros conjuntos em que já havia mexido há uns dois anos, aqueles estavam
completos e preservados, apesar de algumas peças amareladas, adesivos perdendo
a cola e as borrachas dos pneus bastante suadas.
Espalhamos os bonecos no chão do quarto e inventamos juntos
algumas histórias. Ela ficou fascinada quando desmontei o ônibus espacial,
transformei a parte central em escritório lunar e acoplei um módulo menor a
ele. Toda vez que eu me desligava ou ameaçava parar, ela insistia: E agora,
pai? Vai, brinca!
Quando ficou à vontade para criar seus próprios roteiros, eu
me vi criança brincando no chão de tacos. Tirei uma foto, que rendeu muitos
comentários no Facebook – meus amigos também se viram crianças, brincando com
os mesmos bonecos ou desejando aquelas aventuras espaciais. Meu pai se empolgou
com a cena, queria levá-la no dia seguinte à exposição de Playmobil no Museu
Militar Conde de Linhares, em São Cristóvão, mas acabamos deixando o programa para
o outro fim de semana.
Enquanto Alice se divertia sozinha, fomos para a biblioteca,
no quarto ao lado, para procurar vestígios da livraria da minha avó. Meu pai me
mostrou os carimbos que havia separado, acabamos encontrando um diário de
viagem de meu avô e muitas fotos nas gavetas, mais do que eu poderia imaginar.
Ali, ele se viu criança, apontando para a vitrine da loja; na companhia de
amiguinhas francesas de quem ele lembrava os nomes e sobrenomes; fazendo pose ao
lado do carro do pai; ou em casa, também sozinho, brincando no chão da sala com
o trem elétrico.
Ontem, na exposição, três gerações sonhavam com uma casa
onde houvesse um quarto de brinquedos que só precisassem ser guardados para as
mudanças de cenários: o forte apache atacado por índios, o castelo da princesa
protegido por arqueiros... um para cada semana.
quarta-feira, 7 de março de 2012
As Etiquetas da Livraria Sauret
Não queríamos saber de carnaval. Por isso, a geladeira
cheia, os filmes alugados e os livros espalhados na sala. Uma festa no sábado
era o único compromisso. Assim, sobrava tempo para eu preparar uma guacamole na
sexta à noite e fazer um salmão para o almoço de quarta. Também para terminar
os livros que permaneciam há algum tempo na cabeceira; e para vermos juntos
filmes quase esquecidos – como o Pequeno
Nicolau, programa família da tarde de segunda.
Na terça-feira, deixamos Alice passar o dia no clube com uma
amiga e optamos por almoçar fora. Quando voltamos, ligamos o ar condicionado da
sala e os respectivos notebooks. Sobre a estante, restava apenas Meia-Noite em Paris para assistirmos. Decidimos
esperar, já que a devolução estava marcada para quinta, e aproveitar o tempo
para planejar as férias, sonhar um pouco e comprar as passagens.
Abri os sites das companhias aéreas para pesquisar preços e
destinos que satisfizessem nossos planos, desta vez, exclusivamente franceses –
por isso também, o filme podia esperar, para ser bem saboreado depois das
decisões tomadas. Enquanto eu tentava descobrir as melhores opções para a
viagem, checava também os acessos ao meu blog. Confesso que a página de
estatísticas vicia, e as origens de tráfego que ela registra sempre me deixam
curioso. Naquele dia, identifiquei uma busca feita pelo Google que me
surpreendeu.
Alguém procurava pela Livraria Sauret, que pertencia à minha
avó e havia ocupado por mais de trinta anos, entre as décadas de 1940 e 1970, a loja 5 do Copacabana
Palace, de frente para a praia.
Eu dividi a surpresa com meu pai ao telefone e, ao mesmo
tempo, repeti a pesquisa do leitor desconhecido. Com o nome da loja entre
aspas, não eram muitos os resultados do site: primeiro, levavam a um livro chamado
A Etiqueta de Livros no Brasil, de
Ubiratan Machado; depois, a dois textos do meu blog; mais adiante, a páginas do
Diário Oficial. Logo que terminei a conversa com papai, comprei o livro em
promoção na Internet.
Minutos depois, o leitor se identificou, quando comentou um
de meus textos. Ali, percebi que a viagem ao passado não teria volta. Mandei um
e-mail para ele, liguei de novo para meu pai, deixando o sonho da viagem futura
congelado em outros sites e a Nane esperando por algum tempo.
A Livraria Sauret traz boas lembranças para Claude. Nas
mensagens que trocamos, ele conta dos tempos em que saía com a revistinha do
Mickey quando seu pai ia comprar o Paris-Match; da época em que iam até uma das
lojas vizinhas, da Western Telegraph,
para entrarem contato com a família na França em datas especiais.
Infelizmente eu não conheci a livraria, tinha menos de dois
anos quando fechou. Para mim, a livraria era apenas um quarto transformado em
biblioteca. Agora, uma fonte de ideias – e meu pai promete remexer as gavetas
em busca das etiquetas originais, carimbos, notícias de jornal. Enquanto elas
não amadurecem, procuro um lugar para guardar o livro encomendado. Na página
240, as etiquetas com a Cruz de Lorena parecem pedir para voltar para casa – um cantinho francês, uma
livraria em Copacabana, uma biblioteca dentro de um quarto.
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