domingo, 28 de novembro de 2010

Bom Tempo

Aconteceu há quase oito anos. Nane estava em São Paulo com a mãe no enterro do tio. Aproveitei o domingo vazio para almoçar com meus pais, em Copacabana, e ficar por lá até chegar a hora de buscá-las no Santos Dumont. Antes de sair, liguei para minha cunhada para saber se queria me acompanhar. Ela topou.

Estacionei o meu carro por volta das 17h na rua Álvaro Ramos, em Botafogo, para esperá-la. Mal notei o outro carro, que parou uns 50 metros atrás do meu e de onde saíram dois homens. Olhei para portaria quando ela chegou. Virei os olhos para o retrovisor e os sujeitos andavam pela rua em direção ao meu carro. Eu a vi passando pela frente para chegar até a porta, antes de voltar ao retrovisor e a ficha cair. Cada um dos meliantes escolheu um lado: o da esquerda bateu a pistola de leve no vidro, o da direita segurou um dos braços dela. Apenas destravei a porta e deixei que o ladrão daqui a terminasse de abrir. Também apenas cumpri as ordens: deixei a carteira no carro, entreguei todas as chaves depois que saí. Troquei olhares com ela, já livre do comparsa dali, que entrou no carro por fim. Eu não me mexi até que o Pálio azul marinho de placa... qual era mesmo? O carro era novo, o estado de letargia tão grande, que eu sequer me lembrava da placa ao telefone com a polícia.

Chegar ao aeroporto com o Fusca da minha mãe, onde mal cabiam as malas; ir duas vezes à delegacia; correr atrás do seguro e sustar duas folhas de cheque; tirar segunda via da carteira de motorista... tudo muito chato, mas fácil diante do resto. E o resto é o que as nossas mentes criam, ou recriam, depois de uma experiência assim. Agora as fechaduras têm que ser trocadas, então precisamos de uma luz externa para acender antes de sairmos de nossa própria casa, jamais compraremos um carro tão visado. O sono não é o mesmo durante um tempo e, sem uma boa conversa para distrair, dirigir sozinho se torna apenas tensão entre os espelhos e o que vem à frente. A mente rebobina o filme, percorre a história de formas diferentes – escolha a versão: (1) Não liguei para minha cunhada e fui direto ao aeroporto; (2) Entendi as intenções por trás da movimentação suspeita e acelerei antes de ela descer; (3) Reagi e morri. Você decide, mas só conhece os finais quando os vive. E os sentimentos são confusos quando a raiva se alia ao medo. É difícil aceitar uma história que você não escreveu, onde você é a vítima. Contudo, hoje sei que esta é a melhor crônica que posso contar.

Os documentos foram devolvidos em uma agência dos Correios, uns dez dias depois. O carro jamais apareceu, a vida seguiu e a cidade piorou. Apesar de tudo, Alice nasceu. Um dia depois de uma bomba explodir em Londres, é verdade... Nós continuamos aqui, em terras de calor insuportável e inundações, cercados de territórios sitiados onde pessoas de bem gritam por socorro e pedem paz. Mas Chico me garantiu o que um marinheiro lhe contou: com o sopro da boa brisa, vem aí bom tempo.

domingo, 21 de novembro de 2010

O Cupido

Descobri o seguinte: é Ureadin 3 que o cupido passa na ponta da flecha. Pelo menos, lá em casa é assim, quando Alice pega o creme hidratante e começa a passar no braço da mãe, ao mesmo tempo em que pergunta: Posso? Um pouquinho é o que Nane permite. Mais um pouco é onde Alice insiste. Para que, afinal, se é loção infantil para a pele seca da pequena? Para deixar a mamãe cheirosa. E por que fazer se ninguém vai cheirá-la? Papai vai (portanto, eu vou). Ela não desiste de mais um pouquinho porque falta o outro braço. É para namorar, garante. Mas a que horas ela pensa que vamos namorar? Depois. Ela larga o creme e mostra, uma das mãos no rosto da Nane e a outra no meu: dá um beijo agora. Nós nos beijamos de leve, incentivados pelas mãozinhas ainda coladas em nossas bochechas. Ela ainda quer um beijo. Damos outro. Não serve. Ela quer outro tipo de beijo, deste jeito: entorta a boca e revira os olhos para explicar. Beijamo-nos de novo, ainda de leve, tipo selinho amassado, tipo sorriso molhado, abraçados a ela.

De manhã cedo, ela acorda antes da hora habitual. Seus passinhos são pequenos despertadores, daqueles que destroem os sagrados minutos finais do sono. Vai para nossa cama e, como sempre, escolhe o lado da mãe para se aconchegar. Deita, mas se sente apertada. E como reclama a danada! Ainda é hora de dormir, está cedo e Alice não para de tagarelar. Depois, ainda incomodada (não menos que a mãe), aceita a sugestão e vem para o meu lado, onde descobre espaço. Eu continuo dormindo, mal percebo a movimentação, só registro frases soltas, mas sei agora a conclusão: é prato feito para a esposa que tem seu canto invadido pelo marido folgado. Está vendo? Nane reclama seu território com Alice, prova que o pai não deixa espaço, que ele espreme, que eu agarro... O cupido pega a flecha de volta, sente ainda o cheiro da loção e atira de novo: é porque ele gosta de você, mamãe.

Alice dorme com o arco ao alcance da mão. Nós, com a raquete de fritar mosquitos.

domingo, 14 de novembro de 2010

Entre Pitadas de Vargas Llosa e Gonzaguinha

Se existe um tratado de amizade entre Brasil e Peru, meus pais assinaram no início da década de 80. Meu irmão ainda não era um acaso, nem sonhava nascer, quando meu pai passou dois meses em São Paulo fazendo um curso. Voltava ao Rio todo fim de semana, de ônibus, para nos ver. Lá, não era tão ruim assim... fez logo um grupo de amigos com um colombiano e Enrique, o peruano. Depois do curso, Enrique esteve aqui com a esposa, Esther, e filhos. Depois, meu irmão com menos de um ano, estivemos todos em Lima. Desde então, todos os amigos de Enrique, ou amigos dos amigos, vinham ao Rio com a referência de meu pai. E, assim, fizeram-se outras amizades.

German e Betty não pareciam turistas. Enquanto estavam lá em casa, eram parte da família. Se um casal pode escolher outro como casal irmão, era precisamente o caso deles com meus pais. German ia comprar o pão antes do café da manhã; saía para comprar queijo e presunto para o lanche do fim de tarde. O casal passeava sozinho na orla, acompanhava a família nos passeios. Num Fluminense e Vasco inesquecível de 89, pelo campeonato do ano anterior, ele e meu pai foram ao jogo. Minha mãe foi dormir, enquanto a saudosa Betty ficou esperando o marido e eu roendo as unhas até os minutos finais da prorrogação. German estava no Rio a trabalho quando minha irmã fez 15 anos. Veio com Emilio, outro que faz parte do tratado. E no dia da festa, chegaram as esposas Betty e Blanca, bem tarde porque o voo atrasou, mas ainda em tempo de curtirem o fim da comemoração.

Quando descobriu meu gosto por livros, Emilio me deu de presente um de Vargas Llosa, chamado a Guerra do Fim do Mundo, que trata de um dos episódios mais fascinantes da história do Brasil – Canudos. Não foi o único presente que ele me deu. Depois de passar o réveillon do ano 2000 com toda a família na casa de meus pais, seu presente foi Cusco em minha viagem de lua-de-mel no ano seguinte; mais que a viagem, a hospedagem, a programação e o carinho. De certa forma, Emilio, o pai, foi também responsável pela continuidade do tratado na segunda geração. Emilio, o filho, é apaixonado por futebol, criamos juntos uma hinchada internacional, em que la U ganhou um torcedor carioca e o Fluminense arrebatou um tricolor limenho. Durante a Libertadores de 2008, ele era companhia certa na Internet depois dos jogos, quando a adrenalina ainda se recusava a baixar e o computador era o meu refúgio na noite insone.

Aliás, grande colaboradora de Emilio pai foi a Internet e suas redes sociais. Hoje estamos todos conectados: eu e filhos de cada um dos que foram citados aqui. Mas há tempos não nos vemos em carne e osso (a terceira geração nem se conhece). O último a aparecer foi Enrique, há mais de seis anos, meses antes de falecer. Na próxima terça-feira, chega Esther, trazendo consigo o tratado de amizade em papel amarelado para que seja revalidado, apenas para cumprir protocolos burocráticos. Com ela, vem uma das grandes lembranças da minha infância: o sorriso aberto de Enrique, já adoçado pelo açúcar da caipirinha, repetindo os versos de Gonzaguinha, quase contando as sílabas. E meu pai, fazendo coro.

E a vida o que é? Diga lá, mi hermano.

É bonita! É bonita! E é bonita!

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Caçadas de Zezinho

Há onças e jaguatiricas por toda parte. Elas sobreviveram e se multiplicaram. Por isso, nós vivemos no abrigo. Era um cinema, dizem os mais velhos. Aqui existem quatro salas: a primeira e a segunda servem de dormitório; na terceira, fazemos as refeições e os adultos se reúnem; a última é a sala de livros, que o guardião chama de biblioteca. Eu conheço o guardião. Às vezes ele me deixa entrar para ver os livros, às vezes ele me conta o que dizem os livros. Além dele, apenas Mãe Dalva sabe ler. Foi naquela sala que, um dia, eu encontrei os cartazes de alguns filmes que passavam nessas telas enormes que hoje não servem de nada. Fiquei com um deles, guardei debaixo do meu colchão. Nele, em primeiro plano, há um homem sentado, e no fundo, um mundo parecido com o que vemos do lado de fora. O nome do homem é Denzel. Gosto dele. Por isso, as outras crianças me chamam de Zéu, Zé ou Zezinho.

Outro dia eu perguntei para o guardião sobre as onças. Para sair do abrigo, precisamos conhecê-las muito bem. Ele disse que tinha um livro interessante para me mostrar, mas só depois que todo mundo fosse dormir. Porque os livros estão proibidos desde que Mãe Dalva adoeceu e Paizinho morreu. Ele sabia o que fazer com os livros. Mãezinha diz também que o guardião é um tonto, não sabe interpretar o que lê. Ainda assim, dele eu também gosto. Ele me mostrou as “Caçadas de Pedrinho” há uma semana. De lá tiramos muitas informações sobre como as crianças podem matar as onças. Crianças e bonecas que falam. Nunca vi uma dessas, as bonecas daqui não falam. Eu contei os meus planos para ele: de sair do abrigo e descobrir o que havia lá fora, ir mais longe que qualquer adulto já tenha ido. Ele me preveniu também sobre os homens brancos, disse que no livro nós éramos tratados como negrinhos de estimação por eles. Contei essa parte para Mãe Dalva e quase me arrependi, tantas foram as perguntas que ela me fez. Quase no fim do sermão ela se lembrou de um dos textos que Paizinho tinha guardado. Peguei para ela.

O texto dizia: “Era talvez meu hábito “profissional” de colocar-me no lugar, ou na pele, dos outros. Isso não significa que sempre justifico esses outros, mas que tenho a capacidade de enxergar seus pontos de vista.” Logo abaixo, Paizinho tinha anotado o nome do autor: Amós Oz. Ela disse que ele era israelense e isso não me disse nada. Ela falou de guerras e tolerância, de economia e religião. Eu comecei a entender, mas não muito. Por fim, informou que podíamos reabrir a biblioteca, mas antes precisávamos encontrar um professor. Ela estava muito velha, não podia mais andar para procurá-lo e a voz dela, enfraquecida, não servia mais para ensinar. E o guardião era um ignorante, apenas conhecia as letras e sabia juntar as sílabas para formar palavras. Como se já conhecesse meus planos, ela me desejou sorte mais de uma vez.

Por enquanto, somos quatro. Sabemos o que fazer com as onças: pólvora nos olhos costuma ser infalível. Mãe Dalva nos advertiu sobre maltratar os bichos, mas reconhece que precisamos de facões e todas as armas de fogo que encontrarmos. E ela não precisa saber, mas o guardião vai continuar nos ajudando. Ontem ele me trouxe outro livro, que ele chamou de livro de guerra para crianças, chamado “Senhor das Moscas”. Vamos nos pintar antes de partir. Não temos medo da natureza selvagem das outras crianças que encontraremos por aí, não temos medo de nada, só da nossa própria ignorância. Ah! Mãezinha vai ficar orgulhosa. E sabemos o que procuramos: um professor. Estamos no fim da primeira reunião... Como é nome daquele filme do pôster dos meninos que estão agarrados uns aos outros, como uma corda no precipício? Isso!... da primeira reunião dos Goonies!

terça-feira, 2 de novembro de 2010

Um Braço Quebrado

Eram oito da noite, poucas horas antes do Bateau Mouche naufragar na baía de Guanabara. Eu estava assistindo à TV, aparelho de segunda mão trocado por outras carcaças eletrônicas pré-históricas, deitado no chão de tacos quase soltos da sala de estar. Com o dedão do pé direito, zapeava pelos canais disponíveis, que não passavam de uma meia dúzia naqueles tempos, esperando pela São Silvestre que em 1988 ainda acontecia à noite. Era o único dia do ano que me fazia desejar morar em outro lugar que Copacabana. Aquela espera pela virada, aquela multidão formigando pelas ruas, aquele treinamento forçado de renovação das esperanças, tudo aquilo me incomodava. Eu tentava me entreter com as poucas opções na televisão e com a perspectiva de ver o nascer do sol da varanda depois de passar a noite jogando Gemini ou lendo um bom livro. Naquele ano, a situação ficou ainda mais complicada pela falta convidados ou convidandos habituais. A casa costumava ficar lotada de gente, e a mesa, cheia da comida, que eu e meus irmãos passávamos a noite beliscando. A lotação ia para a praia pouco antes da meia-noite e nós, a família, ficávamos sozinhos por alguns minutos, enquanto os fogos explodiam, para nos abraçarmos e brindarmos com champanhe. Eu não entendia muito bem a emoção contida dos adultos naquela comemoração pelo novo ano, não via motivo para olhos tão marejados. Mas era assim e, naquele ano especialmente, os minutos da família se transformaram em horas ainda mais longas depois do que aconteceu.

Eram oito da noite, eu estava deitado com as costas no chão frio trocando os canais da TV com o ajuste grosso do meu dedão do pé. Eu falava e repetia, mas hoje sei que as crianças têm séria deficiência auditiva quando o assunto não interessa ou as contraria. Minha mãe reforçava: não pula, não pula... ou para de pular, para variar. Meu irmão tinha quatro anos, idade de não dar ouvidos. Teimoso também, eu não abandonei a posição esdrúxula em que me encontrava e tornei-me o obstáculo do treinamento para corrida de 10 metros com uma única barreira que ele fazia consigo mesmo. Você vai se machucar era outra frase sem efeito. E, na enésima tentativa, ele fracassou. Tropeçou no lado direito da minha barriga e caiu com os braços protegendo o rosto, com todo o peso do seu corpo sobre o cotovelo esquerdo. Não me lembro dele chorar, lembro-me apenas da minha mãe segurando o bracinho ao telefone, falando com Maurício. Pouco depois das oito, foram os três para Jacarepaguá – mãe, pai e irmão – encontrá-lo na clínica tirar radiografia. Ficamos eu, minha irmã e avó esperando, sem saber como seria a meia-noite daquele réveillon. De volta, eles entraram em casa às 23h58, com o braço do Tito enfaixado, pronto para operar às 13h do dia primeiro de janeiro de 1989. Felizmente, eles encontraram um guarda compreensivo na entrada do Túnel Velho e conseguiram passar pela multidão com as luzes internas do carro acesas. Encontrei meu pai chorando no quarto. Acho que ali o vi chorar de verdade pela primeira vez.

O ano novo estreava com uma tragédia na baía, e nós esparramados em colchonetes no mesmo chão da sala, paparicando a criança com uma fatura completa no braço, que insistia em não chorar. Ganhamos a companhia da noviça rebelde na madrugada. Eu assisti ao filme ao lado dele, mas não vi o sol nascer. Adormeci tentando entender o meu mundo de forma diferente.