segunda-feira, 30 de abril de 2012

O Vento

Era um domingo quando minha avó morreu. A professora de geografia morreu no dia das crianças. Foi enterrada no dia seguinte e, por isso, eu não fui trabalhar naquela segunda-feira. Acordei cedo mesmo assim e encontrei minha mãe e minha tia em uma das capelas do cemitério São João Batista. Estavam sozinhas, cansadas e quase felizes, porque toda a dor tinha passado, todos os meses de sofrimento eram página virada. Ali restava apenas saudade.

Sentei entre as duas para contar que tinha escrito um texto para Esbelta. Pedi que lessem. Se não se opusessem, eu colocaria o papel na entrada da capela, ao lado do nome dela. E fiz assim. Minha avó tinha uma história que merecia ser contada, que eu resumi em poucas linhas em uma noite de insônia, meses antes, quando ela ainda estava em coma e eu não imaginava mais que pudesse voltar a sorrir ou suportar tanta dor.

O título era Esbelta e o Globo Terrestre.

O texto falava de seus olhinhos meio puxados e de uma viagem ao Japão (era China, esclareceu um primo). Citava o conhecimento que tinha sobre as ramificações de sua árvore genealógica e o sobrenome alemão: Sommer. Trazia recordações das manhãs em que estudávamos juntos para as provas de geografia e do maior presente que dela ganhei: o globo. Descrevia seu corpo franzino como um desenho de criança, como se minha filha tivesse feito a bisavó com alguns tracinhos. Relacionava as quantidades de bisnetas (eram quatro), netos (dez) e filhos (três, mais um série incontável de alunos). E a história de Esbelta, quase toda passada na cidade do Rio de Janeiro, terminava em uma aventura perto das estrelas.

Hoje também é domingo, mas não há motivo especial na data para que eu volte a escrever sobre ela. Pode ser a saudade restou no primeiro parágrafo e que às vezes chega a mim nos olhares da minha mãe e da minha tia. E, se agora não estou com elas, deve ser a ventania insistente – que bate as portas, derruba as coisas, brinca de embaralhar o tempo e as minhas lembranças.

Esbelta tinha muito medo de que o vento a levasse. Hoje ele a trouxe de volta.

segunda-feira, 23 de abril de 2012

Sábado

A menina desfila pelos corredores de saia lilás e blusa branca. Caminha ao lado dos pais, mas segue independente. Segura a bolsinha com o braço direito, que permanece firme, deixando a mãozinha pendente. Ela está numa feira de livros infanto-juvenis e carrega consigo um caderno de anotações aleatórias, onde escreve as palavras que aprendeu na escola. Procura livros cheios de letrinhas pelo caminho. Recusa folhear inclusive aqueles que parecem mais apropriados à sua idade, com ilustrações e frases mais curtas. Quer ser adolescente antes mesmo de terminar a alfabetização.

Ela entra em casa cheia de livros novos, de todos os tipos e tamanhos. Vai para o quarto com a mãe selecionar para doação os livros de bebê que ainda restam. Volta para sala para curtir as novidades, procurar palavras, ler ao lado do pai. E, de repente, todos se lembram de que ela tem dever de casa para fazer. É o navio que passa, a neve que cai, o ninho que está vazio, o novo que deixou de ser, o número da vez, o não para a televisão. Ela copia as palavras, preenche as lacunas. Aprende o que é um novelo. E hesita apenas na leitura das sílabas do mês de novembro, ainda distante e complicado.

A menina termina a tarefa e procura por outro caderninho, que trouxe da escola: uma agenda telefônica feita à mão, onde cada página é dedicada a um amigo, também às auxiliares e à professora. Em cada uma delas, um nome, um desenho e um número. Acostumada com conversas em viva-voz com as avós e as tias, redescobre o telefone: encaixa a orelha para ouvir melhor, entender as diferenças entre os sinais de linha e de ocupado, perceber que as vozes podem mudar à distância.

Ela transforma mais essa novidade em obsessão. Tecla números sem parar até encontrar alguém que atenda ao chamado. Depois que consegue, ela e o amigo intercalam ligações, para falar do tempo de hoje e da festa de domingo, para tentar encontrar outros colegas e dividir as proezas. Assim que percebe a curiosidade dos pais, esconde-se no quarto, atrás de privacidade, para contar segredos, para exercitar o dom especial de falar sem parar.

Os pais da menina se divertem com a novidade que traz recordações. A mãe garante que nunca foi chegada a um papo ao telefone. O pai lembra que monopolizava o aparelho nas noites de domingo, depois das partidas de futebol. Tempos em que ainda discavam os números, usavam fichas, desenrolavam o fio e colocavam o fone no gancho. E assistiam com enorme curiosidade às vídeo-conferências da família Jetson.

Eles se divertem até o ponto da obsessão. E diante da impossibilidade de controlar o momento de excitação, aproveitam para rever com a filha as regras de comunicação, para fixar as aulas de boa educação. Antes que ela perca o costume de dizer por favor, engula palavras ao falar e desapareça com as letras ao teclar. Antes que ela peça uma extensão no quarto, um celular no bolso, ou um tablet.

A menina agora pede os controles. Quer ver televisão antes que o sábado termine.

domingo, 15 de abril de 2012

Vitrines da Livraria Sauret

Havia muitas fotos naquela gaveta da escrivaninha da minha avó. Levei todas comigo, depois devolvi. Estão agora digitalizadas e gravadas numa pasta do meu computador a que dei o nome óbvio de Livraria Sauret. São fotos em preto e branco da vitrine da loja no início da década de quarenta.

Curioso, analiso uma a uma. A porta de entrada envidraçada da livraria fica à esquerda, tem revistas e jornais pendurados do lado de dentro. Naquele canto recuado, meu pai e meu avô aparecem abraçados em duas fotos. Quando a foto não mostra a porta, concentro-me na vitrine, procuro por detalhes e acabo descobrindo uma silhueta sobre o vidro quando aproximo a imagem na tela. Deve ser coincidência, mas aquela sombra, que inclui a câmera, é visível apenas na ausência do meu avô.

Eu me pego investigando a fundo quando separo as fotos em dois conjuntos. São as roupas que meu pai veste que orientam a distribuição. Encontro no ombro de meu avô uma referência da passagem do tempo: entre as duas fotos em que eles aparecem lado a lado, é evidente que o menino cresceu. E não tenho dúvida de que os conjuntos marcam datas muito importantes; por isso, busco indícios na arrumação da vitrine que possam me ajudar a precisá-las.

No primeiro conjunto, meu pai está vestido com calças compridas escuras e camisa branca, enfeitada com uma enorme gravata borboleta também escura. Ele não sorri, mas é sapeca: em uma das fotos, esconde-se atrás da vitrine. Em outra, está do lado esquerdo, perto da porta, apontando para o quadro que fica logo abaixo do letreiro. Ali se vê o herói da minha avó: o General De Gaulle. Em torno, apesar do reflexo sobre o vidro, identifico vestígios da guerra: à direita, um pano quadrado de seda com o rosto do general centralizado sobre o mapa da França; mais abaixo, ladeado por quatro figuras simétricas sem nitidez, outro retrato me mostra soldados carregando um pavilhão. Entre este quadro e o do general, há uma flâmula triangular com a Cruz de Lorena – com suas duas barras horizontais, ela é o símbolo da Resistência Francesa.

Brinco de adivinhar as cores: o pano de seda e a flâmula são predominantemente vermelhos. Tenho vontade também de descobrir que livros são aqueles distribuídos no chão – sobre um deles, repousa uma cruz de madeira, outra Cruz de Lorena. Os livros em exposição também contornam a vitrine pelo lado direito até a altura do pano. A disposição das peças naquele espaço é quase uma obra de arte, cheia de detalhes trabalhados pelas mãos francesas da minha avó. Continuo a brincadeira de adivinhação: estamos em 1941, em plena guerra, no dia da inauguração da livraria.

No segundo conjunto, meu pai usa roupas menos formais: além de calças compridas, veste um pulôver de listras verticais que esconde uma camisa clara, da qual se vê apenas o colarinho. O visual da vitrine é mais sóbrio, também arrumada em detalhes por mãos apaixonadas. Desta vez, não há livros no chão ou em lugar algum. De Gaulle permanece no alto e uma fita tricolor envolve o mesmo quadro dos soldados patriotas, que permanece logo abaixo. De cada lado desse quadro, destacam-se duas delicadas pinturas: há flores de um lado e uma bailarina de outro. Não se vê mais a toalha, nem a flâmula. A ausência da cruz confirma que aquele não é mais um acampamento resistente, nem esconde mais a casamata dos franceses em Copacabana.

Insisto ainda em adivinhar as cores: abaixo do letreiro, por trás da foto do herói, o bandô cuidadosamente dobrado em semicírculos é azul, a cor preferida da minha avó. Elegante em todas as fotos, ela mantém o semblante sereno. Meu pai é o único que sorri. O dia especial se revela tanto na alegria dele quanto na falta de livros para vender. A vitrine posa orgulhosa para a foto porque estamos em 1944, Paris foi libertada e a guerra chegou ao fim.

sexta-feira, 6 de abril de 2012

Oz e Otolina

Na hora de dormir, é difícil vencer as opções ilimitadas de seriados pré-adolescentes que passam na televisão. Os episódios se repetem muito, mas Alice não se importa, sempre pede mais um, mesmo sabendo que não abrimos exceção – durante a semana, ela vai se deitar sempre às 20h30. Dependendo da reação que ela tenha ao cumprimento da regra e da velocidade do longo processo que a leva para cama, prometemos a recompensa da leitura.

No último dia das crianças, tive uma vontade enorme de comprar um presente para Alice. Pode parecer estranho, eu sei. Mas ela é uma criança que ganha tudo, de todos, porque é única na família. Eu precisava de um presente com selo, um presente do papai. Como o interesse dela pelas letrinhas vinha crescendo e o ano da alfabetização se aproximava, resolvi comprar um livro diferente daqueles que costumávamos ler antes de dormir. Escolhi O Mágico de Oz, em uma edição de poucos desenhos e muitas letras.

Acreditei nas vantagens de Alice conhecer o filme e ter visto uma peça encenada pela prima americana. No meio de tantas letras, talvez se tornasse interessante tentar reconhecer aquelas imagens na minha narrativa. Ela logo aprendeu que o livro era dividido em capítulos, que faríamos a pausa entre um e outro, que podíamos usar o marcador de livros do Harry Potter para não nos esquecermos de onde paramos. Foi divertido, mas confesso que o silêncio dela me incomodava um pouco.

Eu tinha dúvidas de que ela estivesse mesmo prestando a atenção; por isso, com as luzes já apagadas, eu fazia perguntas sobre a história, e ela respondia a todas elas. Ainda assim, não tinha certeza de que ela gostava mesmo do livro – às vezes, fazia pouco caso, não queria ler, preferia a televisão. A leitura durou quase quatro meses e, mesmo nos últimos capítulos, jamais assisti àquela manifestação de ansiedade típica de quem quer saber o que vai acontecer. Culpa do livro, talvez (menos leve que o filme); de Oz (que engana as pessoas, e engana por quê, pai?); ou da minha escolha por um livro com final conhecido.

Depois de Dorothy e Totó, sem qualquer selo do papai, veio Otolina e a Gata Amarela. A identificação de Alice com a protagonista foi imediata: Otolina faz planos em seus cadernos e se interessa por resolver mistérios. O livro intercala textos e figuras repletas de detalhes, desperta a curiosidade entre capítulos, não dá vontade de largar. Estamos no fim do segundo livro, Otolina na Escola. Hoje, ainda suado, recém chegado da aula de tênis, contrariando a regra das terças, eu ofereci a leitura do capítulo nove. Não foi suficiente: ela implorou para ler duas páginas do último capítulo. E ainda ousou dizer que a página do título não contava.

Cedi em parte: li as duas páginas que ela queria; porém, sem dar margem a embromações – que são coisas de Oz, o charlatão. Cedi porque estamos nos divertindo muito e, dessa forma, a recompensa da leitura é compartilhada. E não precisamos mesmo obedecer a todas as regras. Afinal, qual o motivo de parar no fim do capítulo, se temos o marcador do Harry Potter?