domingo, 19 de dezembro de 2010

Vestidos de Cortina

A apresentação de fim de ano da Alice trouxe lembranças da minha infância.

Pela manhã do mesmo sábado, para uma espécie de aquecimento, demos a ela o DVD de presente. Assistir às sete crianças cantando com a noviça foi útil também para controlar a ansiedade e descobrirmos que alguns trechos do filme ela já sabia de cor. Mais tarde, no palco, de mão dada com um dos amiguinhos, ela estava vestida de cortina, lindinha, cantando Dó, Re, Mi. A professora de musicalidade cantava junto, tocando o violão. A cada nota musical, as minhas lembranças foram sendo reveladas: o pátio construído com madeira pintada de azul nos fundos da escola era o nosso palco. A professora de inglês, chamada Giovana, era a responsável pelas apresentações e nós cantávamos na língua original. Tentávamos ao menos reproduzir os sons, com a fita K7 ajudando a guiar nossa cantoria.

Da mesma forma, em outro pátio, bem mais espaçoso, as carteiras escolares foram espalhadas mais de uma vez para vivermos bons momentos com brilhantina nos cabelos e dublarmos uma das músicas de “Grease 2”. É muito engraçado hoje ler a letra de “Reproduction” e imaginar os meninos pré-adolescentes mostrando os bíceps para cumprir com a coreografia combinada. Eu era um deles, não fazia questão nenhuma de aparecer, mas gostava de participar da bagunça.

Outra apresentação inesquecível, que também se repetiu em datas diferentes (dia das mães ou dos pais e também no fim do ano), foi “We are the World”, que dava chance para todas as crianças serem protagonistas por alguns segundos. Não me lembro o trecho da música que eu cantava. Tímido, mesmo que talvez quisesse ser Bruce, preferi me esconder por trás de algum daqueles cantores que não fazíamos idéia de quem era. Michael Jackson era encarnado por seu maior fã, que participava de concursos de dança e colecionava réplicas de jaquetas do ídolo. Ele também era responsável pela versão fonética da letra que facilitava bastante o nosso exercício de caras e bocas. Outra recordação óbvia é de que Cindy Lauper tinha bochechas.

Houve também, anos mais tarde, a peça sobre a independência do Brasil. Esta foi organizada por nossa professora de história, responsável por diversas atividades ecléticas, de maquetes de engenho a mapas sem fronteiras. Na peça, eu fazia parte da corte, era nobre figurante. A minha timidez se confundia com o medo de errar, o que não era problema para D. Pedro. Em um dos ensaios, antes do aguardado momento romântico com a Marquesa de Santos, ele trocou as falas, mas não hesitou: diga que estou ocupado, não posso atendê-la agora. Ainda ouço as gargalhadas sem fim daqueles bons tempos.

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

A Arca

Faz tempo que não conversamos, meu amigo. A última vez em que nos vimos e nos abraçamos foi na missa de sétimo dia da minha avó. Nossa última troca de mensagens pelo Orkut ocorreu graças às estripulias de um goleiro, que sofreu um pênalti nos minutos finais de uma partida. Lembro-me melhor, no entanto, daquela noite de vitória e derrota no Maracanã lotado. Você usava uma camisa branca, de mangas cumpridas até o punho. O estádio se vestia das três cores de que mais gostamos. As luzes que desenhavam o nome de nosso time davam a volta na arquibancada e nossos olhos acompanhavam as letras como uma ola desenhada por eles. Noite aquela de êxtase e decepção.

Hoje estou em casa, escondendo o nervosismo por trás dessas linhas. Se não temos mais o Maracanã, a coisa acontece no Engenhão e o craque é aquele que você fazia questão de exaltar: protegendo a bola como poucos, fazendo a bola rolar. Ele conquistou a torcida com silêncio e trabalho. É uma espécie de anti-herói do futebol, combina com a fidalguia tricolor. Não tem nada a ver com aquele craque, de mãos nas cadeiras, que você passava os jogos denunciando. Ou outro, lateral-direito, que dava as costas para o goleiro que tinha posse da bola. Aliás, este campeonato teve um personagem que você identificou muito antes do nosso técnico. Apenas um jovem coadjuvante, mas que joga com a cabeça em pé, do jeito que você sempre pediu.

A torcida aprendeu com as derrotas, e por isso mesmo segue desconfiada. Não falta fôlego, é apenas a ansiedade da espera pelo título. A torcida se renovou, amadureceu. Diria um hermano, que não joga bola e não é tricolor: olha lá, quem sempre quer vitória e perde a glória de chorar. O nosso caso é inverso. A derrota faz parte da nossa história recente, assim como a redenção. Já choramos em glória apoteótica, estamos prontos para vencer. Meu pai que o diga. Depois de quatro mandatos, sempre fazendo sua parte no cotidiano do clube, esbravejando contra opositores e, sobretudo, entre quatro paredes, ele está do lado derrotado. Conselheiro, se estivesse aqui, você também não mais o seria.

É goooooooooooool. Ouviu? Os gritos vêm pela janela. A informação se atualiza aqui na Internet, no jogo que corre on line: um gol do tamanho da distância que nos separa, um gol que nos reaproxima. Futebol é matéria de amigos, que querem se abraçar, que querem brincar de se engalfinhar. Há os que querem se matar de fato, mas esses desconhecem a essência da brincadeira. Lembro de você por isso: o futebol era a brincadeira que nos unia, inclusive no tédio das reuniões do conselho. Meu pai leva a sério demais. Ele deve estar lá, com meu irmão, ou sem ele, torcendo, sem a noção exata do que está acontecendo, perguntando quem fez o gol, porque teve um apagão e só tem certeza de que a bola entrou porque estamos todos pulando de alegria, dentro e fora do estádio, em terra firme e no céu. A camisa dele é 75; a identidade, Vovozão.

Acabou. Permito-me reescrever o que já estava escrito: o Fluminense é o campeão brasileiro de 2010. Vamos comemorar e você será nosso convidado especial.

Cai um dilúvio agora. A arca tricolor está pronta.

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Defeito de Fabricação

Muitos bebês nascem com o mesmo defeitinho: o canal lacrimal obstruído. O local é perfeito para a proliferação de bactérias. Quando acordam, podem estar com um pouco de remela no canto dos olhos ou, em dias piores, com o olhinho grudado. Uma cuidadosa massagem diária costuma resolver o problema. Depois os bebês crescem e as partes daquele corpo minúsculo também, abrindo caminho para a solução.

Alice se livrou do defeito em apenas um dos olhos. Aos sete meses, o oftalmologista que consultamos recomendou uma sondagem. Ela fez. Saiu com o olho roxo, daqueles inchados de briga. A melhora foi passageira. Consultamos outro médico especialista e, poucos meses depois, resolvemos fazer de novo. O mesmo hospital, mais um olho roxo e algum sofrimento – como o procedimento foi mais demorado, o fiozinho de náilon ficou lá futucando o canal por mais tempo, a sedação foi mais forte. E não é nada fácil ver uma criança de pouco mais de um ano acordar grogue, meio bêbada.

Não melhorou. Demos um tempo.

Ela cresceu, acostumou-se a acordar com o olho grudado e nós com o algodão molhado na mão. Limpeza diária, massagem também e, quando o olhinho começava a ficar vermelho, Tobrex (mais tarde substituído por Biamotil).

Um dia ela acordou e chegou ao nosso quarto dizendo: mamãe, eu sou um pirata! Outro dia, um menino da escola disse que o olho dela era nojento porque tinha remela. Voltamos às consultas: nada o que fazer, ou esperar a criança crescer para quebrar o nariz, ou fazer uma dacriocistografia. O palavrão é um exame feito com contraste – para tentar descobrir exatamente o que há com o canal lacrimal da pequena (se obstruído de fato ou danificado por uma das sondagens). Difícil achar uma clínica que o faça em crianças porque têm que ser sedadas. Mesmo para as maiores, há restrições: não podem ser agitadas (!?).

Nenhuma opção no Rio. São Paulo, Curitiba... demos outro tempo.

Agora Alice faz a limpeza sozinha, mas mostra mais irritação quando acorda com o olho grudado. Por isso e porque também não aguentamos mais, marcamos nova consulta. E, hoje, ela veio com esta... O papo era sobre o presente do Papai Noel. Sem maiores explicações, ela trocou o Ryan por patins. Nane argumentou que não tem patins para os pezinhos dela e disse que conversaria com o velhinho. Ele conversa com você, mãe? Sim, ele conversa com as mães. Então pede pra ele falar com o Cristian pro meu olhinho ficar bom. O outro pedido foi para ele ficar com luz colorida de novo. Ela gosta do Cristo com a luz azul.

domingo, 28 de novembro de 2010

Bom Tempo

Aconteceu há quase oito anos. Nane estava em São Paulo com a mãe no enterro do tio. Aproveitei o domingo vazio para almoçar com meus pais, em Copacabana, e ficar por lá até chegar a hora de buscá-las no Santos Dumont. Antes de sair, liguei para minha cunhada para saber se queria me acompanhar. Ela topou.

Estacionei o meu carro por volta das 17h na rua Álvaro Ramos, em Botafogo, para esperá-la. Mal notei o outro carro, que parou uns 50 metros atrás do meu e de onde saíram dois homens. Olhei para portaria quando ela chegou. Virei os olhos para o retrovisor e os sujeitos andavam pela rua em direção ao meu carro. Eu a vi passando pela frente para chegar até a porta, antes de voltar ao retrovisor e a ficha cair. Cada um dos meliantes escolheu um lado: o da esquerda bateu a pistola de leve no vidro, o da direita segurou um dos braços dela. Apenas destravei a porta e deixei que o ladrão daqui a terminasse de abrir. Também apenas cumpri as ordens: deixei a carteira no carro, entreguei todas as chaves depois que saí. Troquei olhares com ela, já livre do comparsa dali, que entrou no carro por fim. Eu não me mexi até que o Pálio azul marinho de placa... qual era mesmo? O carro era novo, o estado de letargia tão grande, que eu sequer me lembrava da placa ao telefone com a polícia.

Chegar ao aeroporto com o Fusca da minha mãe, onde mal cabiam as malas; ir duas vezes à delegacia; correr atrás do seguro e sustar duas folhas de cheque; tirar segunda via da carteira de motorista... tudo muito chato, mas fácil diante do resto. E o resto é o que as nossas mentes criam, ou recriam, depois de uma experiência assim. Agora as fechaduras têm que ser trocadas, então precisamos de uma luz externa para acender antes de sairmos de nossa própria casa, jamais compraremos um carro tão visado. O sono não é o mesmo durante um tempo e, sem uma boa conversa para distrair, dirigir sozinho se torna apenas tensão entre os espelhos e o que vem à frente. A mente rebobina o filme, percorre a história de formas diferentes – escolha a versão: (1) Não liguei para minha cunhada e fui direto ao aeroporto; (2) Entendi as intenções por trás da movimentação suspeita e acelerei antes de ela descer; (3) Reagi e morri. Você decide, mas só conhece os finais quando os vive. E os sentimentos são confusos quando a raiva se alia ao medo. É difícil aceitar uma história que você não escreveu, onde você é a vítima. Contudo, hoje sei que esta é a melhor crônica que posso contar.

Os documentos foram devolvidos em uma agência dos Correios, uns dez dias depois. O carro jamais apareceu, a vida seguiu e a cidade piorou. Apesar de tudo, Alice nasceu. Um dia depois de uma bomba explodir em Londres, é verdade... Nós continuamos aqui, em terras de calor insuportável e inundações, cercados de territórios sitiados onde pessoas de bem gritam por socorro e pedem paz. Mas Chico me garantiu o que um marinheiro lhe contou: com o sopro da boa brisa, vem aí bom tempo.

domingo, 21 de novembro de 2010

O Cupido

Descobri o seguinte: é Ureadin 3 que o cupido passa na ponta da flecha. Pelo menos, lá em casa é assim, quando Alice pega o creme hidratante e começa a passar no braço da mãe, ao mesmo tempo em que pergunta: Posso? Um pouquinho é o que Nane permite. Mais um pouco é onde Alice insiste. Para que, afinal, se é loção infantil para a pele seca da pequena? Para deixar a mamãe cheirosa. E por que fazer se ninguém vai cheirá-la? Papai vai (portanto, eu vou). Ela não desiste de mais um pouquinho porque falta o outro braço. É para namorar, garante. Mas a que horas ela pensa que vamos namorar? Depois. Ela larga o creme e mostra, uma das mãos no rosto da Nane e a outra no meu: dá um beijo agora. Nós nos beijamos de leve, incentivados pelas mãozinhas ainda coladas em nossas bochechas. Ela ainda quer um beijo. Damos outro. Não serve. Ela quer outro tipo de beijo, deste jeito: entorta a boca e revira os olhos para explicar. Beijamo-nos de novo, ainda de leve, tipo selinho amassado, tipo sorriso molhado, abraçados a ela.

De manhã cedo, ela acorda antes da hora habitual. Seus passinhos são pequenos despertadores, daqueles que destroem os sagrados minutos finais do sono. Vai para nossa cama e, como sempre, escolhe o lado da mãe para se aconchegar. Deita, mas se sente apertada. E como reclama a danada! Ainda é hora de dormir, está cedo e Alice não para de tagarelar. Depois, ainda incomodada (não menos que a mãe), aceita a sugestão e vem para o meu lado, onde descobre espaço. Eu continuo dormindo, mal percebo a movimentação, só registro frases soltas, mas sei agora a conclusão: é prato feito para a esposa que tem seu canto invadido pelo marido folgado. Está vendo? Nane reclama seu território com Alice, prova que o pai não deixa espaço, que ele espreme, que eu agarro... O cupido pega a flecha de volta, sente ainda o cheiro da loção e atira de novo: é porque ele gosta de você, mamãe.

Alice dorme com o arco ao alcance da mão. Nós, com a raquete de fritar mosquitos.

domingo, 14 de novembro de 2010

Entre Pitadas de Vargas Llosa e Gonzaguinha

Se existe um tratado de amizade entre Brasil e Peru, meus pais assinaram no início da década de 80. Meu irmão ainda não era um acaso, nem sonhava nascer, quando meu pai passou dois meses em São Paulo fazendo um curso. Voltava ao Rio todo fim de semana, de ônibus, para nos ver. Lá, não era tão ruim assim... fez logo um grupo de amigos com um colombiano e Enrique, o peruano. Depois do curso, Enrique esteve aqui com a esposa, Esther, e filhos. Depois, meu irmão com menos de um ano, estivemos todos em Lima. Desde então, todos os amigos de Enrique, ou amigos dos amigos, vinham ao Rio com a referência de meu pai. E, assim, fizeram-se outras amizades.

German e Betty não pareciam turistas. Enquanto estavam lá em casa, eram parte da família. Se um casal pode escolher outro como casal irmão, era precisamente o caso deles com meus pais. German ia comprar o pão antes do café da manhã; saía para comprar queijo e presunto para o lanche do fim de tarde. O casal passeava sozinho na orla, acompanhava a família nos passeios. Num Fluminense e Vasco inesquecível de 89, pelo campeonato do ano anterior, ele e meu pai foram ao jogo. Minha mãe foi dormir, enquanto a saudosa Betty ficou esperando o marido e eu roendo as unhas até os minutos finais da prorrogação. German estava no Rio a trabalho quando minha irmã fez 15 anos. Veio com Emilio, outro que faz parte do tratado. E no dia da festa, chegaram as esposas Betty e Blanca, bem tarde porque o voo atrasou, mas ainda em tempo de curtirem o fim da comemoração.

Quando descobriu meu gosto por livros, Emilio me deu de presente um de Vargas Llosa, chamado a Guerra do Fim do Mundo, que trata de um dos episódios mais fascinantes da história do Brasil – Canudos. Não foi o único presente que ele me deu. Depois de passar o réveillon do ano 2000 com toda a família na casa de meus pais, seu presente foi Cusco em minha viagem de lua-de-mel no ano seguinte; mais que a viagem, a hospedagem, a programação e o carinho. De certa forma, Emilio, o pai, foi também responsável pela continuidade do tratado na segunda geração. Emilio, o filho, é apaixonado por futebol, criamos juntos uma hinchada internacional, em que la U ganhou um torcedor carioca e o Fluminense arrebatou um tricolor limenho. Durante a Libertadores de 2008, ele era companhia certa na Internet depois dos jogos, quando a adrenalina ainda se recusava a baixar e o computador era o meu refúgio na noite insone.

Aliás, grande colaboradora de Emilio pai foi a Internet e suas redes sociais. Hoje estamos todos conectados: eu e filhos de cada um dos que foram citados aqui. Mas há tempos não nos vemos em carne e osso (a terceira geração nem se conhece). O último a aparecer foi Enrique, há mais de seis anos, meses antes de falecer. Na próxima terça-feira, chega Esther, trazendo consigo o tratado de amizade em papel amarelado para que seja revalidado, apenas para cumprir protocolos burocráticos. Com ela, vem uma das grandes lembranças da minha infância: o sorriso aberto de Enrique, já adoçado pelo açúcar da caipirinha, repetindo os versos de Gonzaguinha, quase contando as sílabas. E meu pai, fazendo coro.

E a vida o que é? Diga lá, mi hermano.

É bonita! É bonita! E é bonita!

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Caçadas de Zezinho

Há onças e jaguatiricas por toda parte. Elas sobreviveram e se multiplicaram. Por isso, nós vivemos no abrigo. Era um cinema, dizem os mais velhos. Aqui existem quatro salas: a primeira e a segunda servem de dormitório; na terceira, fazemos as refeições e os adultos se reúnem; a última é a sala de livros, que o guardião chama de biblioteca. Eu conheço o guardião. Às vezes ele me deixa entrar para ver os livros, às vezes ele me conta o que dizem os livros. Além dele, apenas Mãe Dalva sabe ler. Foi naquela sala que, um dia, eu encontrei os cartazes de alguns filmes que passavam nessas telas enormes que hoje não servem de nada. Fiquei com um deles, guardei debaixo do meu colchão. Nele, em primeiro plano, há um homem sentado, e no fundo, um mundo parecido com o que vemos do lado de fora. O nome do homem é Denzel. Gosto dele. Por isso, as outras crianças me chamam de Zéu, Zé ou Zezinho.

Outro dia eu perguntei para o guardião sobre as onças. Para sair do abrigo, precisamos conhecê-las muito bem. Ele disse que tinha um livro interessante para me mostrar, mas só depois que todo mundo fosse dormir. Porque os livros estão proibidos desde que Mãe Dalva adoeceu e Paizinho morreu. Ele sabia o que fazer com os livros. Mãezinha diz também que o guardião é um tonto, não sabe interpretar o que lê. Ainda assim, dele eu também gosto. Ele me mostrou as “Caçadas de Pedrinho” há uma semana. De lá tiramos muitas informações sobre como as crianças podem matar as onças. Crianças e bonecas que falam. Nunca vi uma dessas, as bonecas daqui não falam. Eu contei os meus planos para ele: de sair do abrigo e descobrir o que havia lá fora, ir mais longe que qualquer adulto já tenha ido. Ele me preveniu também sobre os homens brancos, disse que no livro nós éramos tratados como negrinhos de estimação por eles. Contei essa parte para Mãe Dalva e quase me arrependi, tantas foram as perguntas que ela me fez. Quase no fim do sermão ela se lembrou de um dos textos que Paizinho tinha guardado. Peguei para ela.

O texto dizia: “Era talvez meu hábito “profissional” de colocar-me no lugar, ou na pele, dos outros. Isso não significa que sempre justifico esses outros, mas que tenho a capacidade de enxergar seus pontos de vista.” Logo abaixo, Paizinho tinha anotado o nome do autor: Amós Oz. Ela disse que ele era israelense e isso não me disse nada. Ela falou de guerras e tolerância, de economia e religião. Eu comecei a entender, mas não muito. Por fim, informou que podíamos reabrir a biblioteca, mas antes precisávamos encontrar um professor. Ela estava muito velha, não podia mais andar para procurá-lo e a voz dela, enfraquecida, não servia mais para ensinar. E o guardião era um ignorante, apenas conhecia as letras e sabia juntar as sílabas para formar palavras. Como se já conhecesse meus planos, ela me desejou sorte mais de uma vez.

Por enquanto, somos quatro. Sabemos o que fazer com as onças: pólvora nos olhos costuma ser infalível. Mãe Dalva nos advertiu sobre maltratar os bichos, mas reconhece que precisamos de facões e todas as armas de fogo que encontrarmos. E ela não precisa saber, mas o guardião vai continuar nos ajudando. Ontem ele me trouxe outro livro, que ele chamou de livro de guerra para crianças, chamado “Senhor das Moscas”. Vamos nos pintar antes de partir. Não temos medo da natureza selvagem das outras crianças que encontraremos por aí, não temos medo de nada, só da nossa própria ignorância. Ah! Mãezinha vai ficar orgulhosa. E sabemos o que procuramos: um professor. Estamos no fim da primeira reunião... Como é nome daquele filme do pôster dos meninos que estão agarrados uns aos outros, como uma corda no precipício? Isso!... da primeira reunião dos Goonies!

terça-feira, 2 de novembro de 2010

Um Braço Quebrado

Eram oito da noite, poucas horas antes do Bateau Mouche naufragar na baía de Guanabara. Eu estava assistindo à TV, aparelho de segunda mão trocado por outras carcaças eletrônicas pré-históricas, deitado no chão de tacos quase soltos da sala de estar. Com o dedão do pé direito, zapeava pelos canais disponíveis, que não passavam de uma meia dúzia naqueles tempos, esperando pela São Silvestre que em 1988 ainda acontecia à noite. Era o único dia do ano que me fazia desejar morar em outro lugar que Copacabana. Aquela espera pela virada, aquela multidão formigando pelas ruas, aquele treinamento forçado de renovação das esperanças, tudo aquilo me incomodava. Eu tentava me entreter com as poucas opções na televisão e com a perspectiva de ver o nascer do sol da varanda depois de passar a noite jogando Gemini ou lendo um bom livro. Naquele ano, a situação ficou ainda mais complicada pela falta convidados ou convidandos habituais. A casa costumava ficar lotada de gente, e a mesa, cheia da comida, que eu e meus irmãos passávamos a noite beliscando. A lotação ia para a praia pouco antes da meia-noite e nós, a família, ficávamos sozinhos por alguns minutos, enquanto os fogos explodiam, para nos abraçarmos e brindarmos com champanhe. Eu não entendia muito bem a emoção contida dos adultos naquela comemoração pelo novo ano, não via motivo para olhos tão marejados. Mas era assim e, naquele ano especialmente, os minutos da família se transformaram em horas ainda mais longas depois do que aconteceu.

Eram oito da noite, eu estava deitado com as costas no chão frio trocando os canais da TV com o ajuste grosso do meu dedão do pé. Eu falava e repetia, mas hoje sei que as crianças têm séria deficiência auditiva quando o assunto não interessa ou as contraria. Minha mãe reforçava: não pula, não pula... ou para de pular, para variar. Meu irmão tinha quatro anos, idade de não dar ouvidos. Teimoso também, eu não abandonei a posição esdrúxula em que me encontrava e tornei-me o obstáculo do treinamento para corrida de 10 metros com uma única barreira que ele fazia consigo mesmo. Você vai se machucar era outra frase sem efeito. E, na enésima tentativa, ele fracassou. Tropeçou no lado direito da minha barriga e caiu com os braços protegendo o rosto, com todo o peso do seu corpo sobre o cotovelo esquerdo. Não me lembro dele chorar, lembro-me apenas da minha mãe segurando o bracinho ao telefone, falando com Maurício. Pouco depois das oito, foram os três para Jacarepaguá – mãe, pai e irmão – encontrá-lo na clínica tirar radiografia. Ficamos eu, minha irmã e avó esperando, sem saber como seria a meia-noite daquele réveillon. De volta, eles entraram em casa às 23h58, com o braço do Tito enfaixado, pronto para operar às 13h do dia primeiro de janeiro de 1989. Felizmente, eles encontraram um guarda compreensivo na entrada do Túnel Velho e conseguiram passar pela multidão com as luzes internas do carro acesas. Encontrei meu pai chorando no quarto. Acho que ali o vi chorar de verdade pela primeira vez.

O ano novo estreava com uma tragédia na baía, e nós esparramados em colchonetes no mesmo chão da sala, paparicando a criança com uma fatura completa no braço, que insistia em não chorar. Ganhamos a companhia da noviça rebelde na madrugada. Eu assisti ao filme ao lado dele, mas não vi o sol nascer. Adormeci tentando entender o meu mundo de forma diferente.

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Leituras e Interconexões

Três livros estão abertos.

“Como se não Houvesse Amanhã” é um deles. São contos de diversos autores, todos baseados em músicas da Legião Urbana. Histórias curtas, perfeitas para carregar na mochila durante a semana e ler antes da aula de tênis, em qualquer sala de espera ou até no avião. Eu encontrei o livro na Livraria Galáxia da rua México, onde desestresso por alguns minutos na hora do almoço, mas não comprei na primeira vez em que o vi. Não costumo me conter tanto com os livros, mas a fila anda tão grande que tenho evitado. E, quanto mais escrevo, menos tempo tenho para ler. A decisão de comprá-lo veio depois de ler uma crônica de minha irmã blogueira que falava das letras de música da Legião e o comentário de umas de suas amigas que citava o livro e que hoje me segue (e eu a sigo também). Depois de ler um ou dois contos, escolhi a minha música para escrever aqui. “O Mundo Anda Tão Complicado” é resultado disso.

A mais nova leitura é “Barroco Tropical”, ainda nas primeiras páginas. O livro, autografado pelo autor José Eduardo Agualusa, escritor angolano, foi presente de um amigo, geólogo que trabalha comigo, morou muitos anos em Moçambique e conhece minha predileção pelos autores africanos de língua portuguesa, sendo Mia Couto um gosto que temos em comum. Há quase um ano ele me convidou para ir a Livraria da Travessa no Leblon onde Agualusa estaria. Não fui, acabei na Lapa com meu irmão, passando momentos descritos aqui na “Retrospectiva 2009 - Parte II”. O Barroco é leitura para o fim de noite, um dos livros abertos na mesa de cabeceira.

O terceiro é “Everything is Illuminated”, ou “Tudo se Ilumina”. Infelizmente parei no primeiro capítulo, que inspirou outro de meus textos: “Todos os Nomes”. Não sei explicar o motivo da parada. Talvez seja a expectativa pela leitura de outro livro de Jonathan Safran Foer, já que “Extremamente Alto, Incrivelmente Perto” é um dos melhores que já li. A interrupção não tem relação com a história, que eu já conheço do cinema. Aliás, foi por causa do filme do Liev Schreiber, estrelado pelo Frodo (ou melhor, Elijah Wood), que comprei um dos meus livros preferidos, que tem um dos meus personagens preferidos – Oskar Schell, uma das crianças citadas numa de minhas primeiras publicações, chamada “No Machimbombo”. Sei que recomeço em breve.

Leio também “Insatiable”, livro de vampiros da Meg Cabot. “Oi?”. É a única leitura com prazo. Nane está traduzindo o livro, o segundo da mesma autora e o quarto da Galera, selo jovem da Record. Seus enredos e personagens são descomplicados, ao contrário de outros do gênero que li. Interessante também que, logo no início do livro, ela usa a história para confessar que escrever uma história sobre vampiros foi uma necessidade imposta pelo mercado. Enquanto leio, dou uma ajudinha na revisão e aproveito para compartilhar com a Nane uma de nossas afinidades. E se você entendeu que eu errei a conta, não é assim. Nesse caso, é o arquivo que está aberto, bem aqui ao lado, com o controle de alterações ativado e o marcador é uma tarja amarela sobre o número do capítulo.

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Troy Story

Era uma vez um príncipe boneco chamado Eric. Ao contrário dos outros príncipes, ele não vestia roupa de gala para ir ao baile em busca de sua princesa. A praia dele era outra: usava um bermudão, exibia os músculos do peitoral e azarava uma boneca sereia de rabo esverdeado. O nome dela era Ariel. Eles eram apaixonados e viviam felizes para sempre até ouvirem aquela música tocando na sala. O “para sempre” acabou aos poucos, à medida que outras bonecas chegavam e a menina crescia. Primeiro vieram as pernas compridas das Barbies, mulheres bárbaras com diversos sobrenomes ou histórias de princesa para contar; depois a misteriosa Hanna – ora de cabelos castanhos, ora loiríssima, de microfone em punho, cantando sobre o melhor de dois mundos (e nenhum deles era o fundo do mar).

Mas eram as mãos da menina davam o tom das tentações do príncipe surfista, quando colocava em pé cada uma das bonecas para passear com ele. Neste caso, o rabo era uma tremenda desvantagem para Ariel, uma sereia cada vez mais enciumada, pensando em retornar para os braços do rei Tritão, seu pai, ou fazer um novo pacto com Úrsula, a bruxa do mar. Ao menos, ela tinha companhia em terra firme, já que Fiona, com aquela roupa de kung fu e a máscara de ogra, não atraía nem um pouco o único galã do pedaço. Fiona tinha, de fato, nascido para viver num mundo tão tão distante. Por aqui, nem Daniel San seria capaz de encará-la.

Um belo dia, depois que a menina viu Harry beijando Cho, a crise do casal marinho ganhou proporções ainda maiores. As bonecas passaram a fazer fila para beijar Eric. O sortudo tinha um harém, mas não usava turbante nem tinha o nome de Aladdin (Jasmine que não nos ouça, mas ele e o gênio sempre foram vistos muito bem acompanhados). O sortudo podia ir preso a qualquer momento porque, não bastasse a cantora adolescente, colecionava também colegiais da High School, que além de cantarem, dançavam. O sortudo era um coitado, não dava conta de tanta mulher.

O caso parecia sem solução até que a mãe da menina precisou escolher um presente para a vovó dar no dia das crianças. Mamãe e papai chegaram a cogitar o tal do Ryan como opção. Mas, e se ele se apaixonasse pelo Eric? Não haveria partilha, só aumentaria a fila. Antes do Viagra e antes que Ariel fugisse no saco de brinquedos antigos que iria para doação, chegou então um boneco adolescente chamado Troy. Contrariando o pretenso cavalheirismo dos príncipes, o menino não foi pontual. Sua carruagem demorou mais que uma semana para chegar. O dia das crianças já tinha passado, mas Eric teve, enfim, com quem dividir as atenções (ou tensões) e não corre mais o risco de ser preso (Troy até deu uma piscadela para Fiona, mas antes que apanhasse, foi ao encontro das mais jovens ensaiar o próximo musical).

Para Ariel, o final não foi feliz. Ela continuou resmungando pelos cantos. A menina, por outro lado, ficou radiante com o novo brinquedo. Naquele dia, que já era um dia qualquer, ela parecia feliz para sempre.

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Saudades de Bequinha

Ela tinha aparência frágil e medo de que o vento a levasse, mas não havia resfriado capaz de pegá-la. Contudo, o início de 2008 a trouxe sangrando. O diagnóstico deu pouquíssimas esperanças e a primeira operação... abriu, fechou, não dá! Passei duas noites com ela. Terríveis, a segunda pior que a primeira. Em ambas, o sono do começo da noite foi tranquilo. Depois da meia-noite, porém, começaram os pedidos pelo cafezinho que não vinha. Que indelicadeza! Só o soro a alimentava e apenas às vezes molhávamos com água a boca que insistia com o café. Nem um cafezinho sequer! Na segunda das madrugadas, ela pediu banho: Rodolphinho, fala com a enfermeira, por favor. Elas não a tratavam bem, imagina. Eu procurei a enfermeira, que explicou que o banho seria dado depois da troca de turno, pela manhã. Ela ouviu, mas voltou a pedir, e eu saí do quarto tantas vezes quanto pude para fingir que perguntava de novo e de novo; para fazer o tempo passar, o meu e o dela. Não sei com que forças minha mãe e minha tia dividiram outras incontáveis noites. E, para mim, ela morreu quando entrou em coma pouco tempo depois.

Para ela, porém, ainda não havia terminado. Acordou de forma inesperada. Eu não acreditei, demorei a visitá-la, até que resolvi aparecer num domingo. Ninguém garantia que ela poderia reconhecer os filhos ou os netos. Quando entrei no quarto, minha mãe estava sentada numa poltrona, segurando a mão dela. Elas se olhavam e eu parei na porta. Quando ela me viu, registrei uma das imagens que passarão no filme da minha vida, se um dia acontecer assim. Mais magrinha que sempre, minha avó abriu um enorme sorriso banguela, fechou ainda mais os olhos já apertados e estremeceu visivelmente dos pés a cabeça. Você! Era eu mesmo.

Passou o aniversário no hospital conosco, quando os dedos lambuzados de bolo das filhas davam os últimos presentes aos seus lábios, bem escondidos das “vizinhas” enfermeiras que vinham cumprimentá-la pelos 88 anos em seu micro-apartamento. Ainda ficou pouco mais de um mês na casa da minha tia até retornar à sua casa de então. Para Alice, era assim: ali era a casa da bisa, onde deixávamos vovó nas tardes de sábado. Lá ficou então, repetindo de longe que tudo ficaria bem, até se despedir de vez, sete meses depois de sua primeira internação.

Era 12 de outubro e a professora não esperou pelo seu dia. Escolheu as crianças para nos dizer que a vida continua sim. Assim, sem ela. Escolheu o dia das crianças para que, no filme de nossas vidas, lembrássemos o cheiro do pastel, o gosto do nhoque, o calor da canja; para que o nosso último retrato com ela tivesse pipoca, jujubas e uma risadinha pontuada por “i”s. Escolheu mostrar aos alunos que devemos continuar acompanhando o giro do globo terrestre e marcar nossos passos na geografia que ela ensinou, enfrentando os reveses da vida com coragem.

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

O Otrrrrro Lado

Minha irmã blogueira tem razão: quando eu ainda morava com meus pais, se você telefonasse para mim pela primeira vez, surtaria com a notícia. Com o sotaque francês que, dizem, nunca foi corrigido porque meu avô achava charmoso, Mami diria: ele está do otrrrrro lado. O lado de lá é o apartamento dela até hoje. No lado que era o de cá, ainda moram meus pais. E são os únicos apartamentos do andar.

Mami passava a maior parte do dia conosco. O apartamento ao lado era pouco frequentado, mesmo por ela, que somente retornava para dormir. Nele, eu fazia algumas incursões no quarto da biblioteca, que guarda os remanescentes da Livraria Sauret. Às vezes, na sala de jantar, usava a cadeira de balanço para ler. Por isso, se você ligasse, eu poderia estar do otrrrrro lado. Na mesma sala, entre candelabros de prata e um enorme espelho, minha mãe dava aulas particulares, em busca de sossego. Meu pai procurava revistas antigas na bibilioteca, principalmente as que traziam informações sobre política ou futebol. Meu irmão era muito pequeno ainda, mas hoje toma conta do computador que fica num dos três quartos. Só minha irmã ousava perturbar os mistérios que rondam a casa até hoje.

Mami veio antes da guerra; aliou ao sotaque francês vícios do espanhol que trouxe de terras do cone sul; casou-se no Brasil com o avô que tinha o meu nome; defendeu a França dos nazistas aqui mesmo no Rio – tinha até codinome; e falava muito pouco sobre tudo. O otrrrrro lado ainda é uma espécie de santuário, onde se respeita a história e o silêncio.

À noite, quando queríamos comer gelatina, eu e minha irmã entrávamos no apartamento dela de forma cautelosa, um passo de cada vez. Já que não havia movimento, não havia também motivos para desperdício e, assim, apenas um abajur ficava aceso. A escuridão restante era uma aventura para duas crianças com muita imaginação. No corredor, em posição privilegiada, de frente para sala (a do espelho enorme), ao lado da cozinha e a caminho dos quartos, ficava o pequeno quadro de uma moça que tinha um olhar talvez hipnotizante. Domi dizia que ela nos vigiava. Queria me assustar e me assustava. Mas tanto fez que também passou a ter medo ou acreditar no que dizia. Com os potes de gelatina, saíamos dali correndo, ela gritando, até fecharmos todas as portas no caminho até a nossa casa. Geralmente deixávamos a luz da cozinha acesa para poder voltar mais tarde, atrás de outra guloseima qualquer ou de um pouco mais de adrenalina.

Há muito tempo não frequento o otrrrrro lado à noite. Na verdade, não faço muita questão, porque as melhores lembranças são diurnas, dos livros e dos cafés da manhã que reuniam a família aos domingos. Domi se mudou pra Curitiba e para lá levou o quadro. No quarto de hóspedes do apartamento dela, onde sempre dormimos, um dia reencontrei a moça. Nada assustadora, coitada. Suspeito que ela e minha irmã tenham se acertado, mas nunca conversamos sobre isso.

terça-feira, 28 de setembro de 2010

Picoleris y Cocolis

Alice assiste à televisão e vê um Harry Potter. Hein? Ela ri. Reconhece que não consegue falar. Insistimos então: he-li-có-pte-ro. Ela repete e chega muito perto. Sabe que falta pouco para ter alta. Falta apenas colocar a linguinha para dentro e falar so-fá, sibilando como uma cobra, sem escorregar dali para o fofá. Também não temos mais dúvidas, mesmo que o berrezinho seja ainda o filhote da vaca, que logo sentiremos saudades da choconete quando estivermos deitados na sala brincando de cinema com a pequena Remione.

Já se foi o tempo de comer arroz com pentão, de escolher aquele mate e não o outro, que faz arder a boca; e da picoca, salgada para acompanhar os filmes e doce quando era um dos apelidos dela. Na mesa da sala, entre um laptop e outro, no lugar que ela escolheu, está o antigo pumpador, que hoje já deixou de sê-lo – tem nome e dona, é o computador da Alice. Ela não dirá mais que o papai é baluto, ou balutão, porque perdeu seu tempo fazendo um glossário de palavras esquecidas, que ele acha que não pode esquecer. Mas eu anoto, enquanto é tempo, agora que ela já sabe quase tudo e podemos rir das lembranças mais gostosas de Alice vencendo as provas de comunicação e expressão. Registro desde os gestos, que deixaram palavras para depois: o dedinho que apontava para comida, depois para boca, e aquele coçar inconfundível de bigodes para chamar o Seu Carlos na creche.

Mais tarde, se gostar de escrever como o pai, ela já terá criado sua primeira palavra graças ao meu pequenino dicionário: estremida significa arrepiada. Para ilustrar, a imagem da menina que tirita de frio enrolada no roupão dizendo: Olha os meus pelinhos! Se preferir tradução como a mãe, ela fará questão de explicar que o título que escolhi não vem de um dialeto sinistro; ele traz plurais criativos de uma criança que não tem medo de errar e o ípsilon é apenas um capricho meu. Se quiser rasgar o papel, com vergonha, como se fosse uma foto amarelada do primeiro banho com um amiguinho, vou teimar repetidas vezes, até cansar:

Quiapoquinho, filha. Papai não acabou de ler.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Circulando

O Nível 4 parece mais movimentado. A música é detestável, quase animada. No ponto de ônibus junto à escada tem mais que um banco: são duas cadeiras e uma placa com o número quatro. Uma delas está ocupada, a outra deve ser a minha. Não sei se é dia ou noite, então digo olá. O homem ignora. Olha para o nada, sem piscar. Ele é alto, barba por fazer, usa um sobretudo esfarrapado e está sentado assim: a cabeça apoiada no encosto, uma das mãos segurando o assento, as pernas apoiadas no calcanhar. Figura estranha, o que já deixou de ser novidade por aqui. Eu fico em pé. Teclo os quatro dedos no polegar para contar o tempo ou passar o tempo, não sei. Perco a conta, começo de novo; ele não muda de posição, sequer troca a mão que já deve estar formigando. O ônibus chega. Igual aos outros: circular, comum, com vidros escuros. Ele salta da cadeira com a ajuda de uma muleta que estava no chão. Fica evidente que quer ser o primeiro a entrar. Eu não só deixo, como mantenho distância. Quando os degraus acabam para ele, eu subo.

O sujeito senta antes de passar a roleta, ao lado de uma mulher loira, de cabelos quase brancos, meia-idade e corpo atlético. Ela se espreme contra a janela, mostra desagrado torcendo a boca. Ele parece o Fausto Fawcett, ela não é a Kátia Flávia. Eu passo a roleta e procuro lugar na parte de trás, onde haja dois assentos vazios e eu possa ficar sozinho. Esqueço que eles existem e encontro os objetos que venho colecionando no bolso. Pego uma caneta e picho. Escrevo o meu nome outras tantas vezes. Acho que é para eu não esquecer quem sou. Escrevo até que a tinta acaba. Levanto os olhos e vejo a mulher na mesma posição, espremida, com a muleta dele sobre o ombro. Ela afasta a muleta e levanta. Desistiu, penso, e vem sentar-se ao meu lado. Não. Depois que ela passa a roleta, o ônibus para. Enquanto ele vai para o assento da janela, ela sai. Entra uma morena de cabelos curtos e rosto angelical. Ela vai sentar ao meu lado, tenho certeza. Não, ela afasta a muleta e senta ao lado dele. É Kátia Flávia, embora pareça mesmo um anjo. Acho graça do que penso.

Neste nível não aparecem ambulantes ou mensageiros do Apocalipse. Os passageiros, porém, têm as mesmas olheiras profundas de sempre. Porque não dormem. Eu mesmo não me lembro de ter dormido desde o Nível 1. Sei que observo o tempo todo. E Kátia continua lá, impassível, ao lado do Fausto, desconjuntado, até que o ônibus para de novo. Não é a minha vez de descer. Já entendi que não preciso ser convidado, mas sinto que não devo sair agora. Ela, ao contrário, vai descer. Cumprimenta o Fausto, passa a roleta e, antes de chegar à porta, senta-se à minha frente. Aqui não adivinho nada: o ônibus parte. A morena de cabelos curtos também coleciona objetos. Tira do bolso um estojo de maquiagem. Através do espelho vejo seus olhos. São castanhos e olham para mim. Ou eu quero que olhem. Ela passa batom nos lábios e eu quero beijá-los. Depois que termina, olha para janela do lado oposto como se procurasse paisagem além dos vidros escuros. Mas estamos num túnel, lembra? Eu acho que os olhos dela procuram timidamente os meus. Quando ela olha para o lado, fico esperando que se vire de vez. Ela olha para o lado muitas vezes. Eu ainda espero. Quando o ônibus para pela terceira vez, decido ficar mais um pouco, circulando. O ônibus retoma a viagem, ela olha para o lado e sorri.

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Mesa para Seis

As memórias de filho e pai seriam publicadas pouco antes do último dia dos pais, logo depois das memórias de pai e filha. Mas travei no segundo parágrafo. Não desisti e deixei o rascunho descansando. Quando retornei ao texto e consegui concluí-lo, não esperava que fosse tão comentado no blog. A surpresa me fez tomar a decisão de convidá-los para um bate-papo, em muitos sentidos, virtual. Já pedi o chope, vocês escolhem os petiscos.

Como você sabe, Boo, o meu bigodudo já não é mais. Quando os pelos brancos passaram a dominar o bigodão, ele começou a desistir. Mas faltava coragem, ele precisava de um desafio e de uma desculpa. Em 2002, se o Fluminense fosse campeão estadual, ele disse que tiraria. Foi. Promessa cumprida.

Os outros não sabem, mas a conversa com Carleon continuou por aí. Você me contou que o texto resgatou seus velhos botões e que eles finalmente foram apresentados a seu filho. Para mim, este foi o maior dos presentes... Saiba que já joguei com Alice. Coisa rápida, sem forçar a barra, para mostrar como a coisa funciona. Foram umas três vezes e ainda não consegui convencê-la a segurar a palheta na posição vertical.

Camila, minha companheira de sofrimento, aceito o desafio. Para mim, porém, as sensações do passado remetem apenas às lembranças dos jogos e das companhias, inclusive de minha irmã, que chegou a ser mais assídua que eu quando éramos adolescentes. A imagem que eu tinha da torcida tricolor foi sempre a de uma turma exigente, ranzinza, mal acostumada com a Máquina e os títulos conquistados até meados dos anos 80. É inevitável, portanto, procurar inspiração recente, em 2008, o ano em que a torcida do Fluminense reaprendeu a torcer (e, para isso, o resultado na final da Libertadores foi decisivo).

Se a Hermione, disfarçada de Boo, não se chatear, vou chamá-la de Sandrinha, tá? Pois é, Sandrinha, você me fez lembrar que, ainda criança, num supermercado, a minha mão se soltou da mão dele. Quando voltei a procurá-la, de forma automática e sem levantar os olhos, encontrei outra mão, absolutamente desconhecida. Foram segundos de desespero até reencontrá-lo e recuperar a morna sensação de segurança. No que diz respeito à primeira parte, não deu vontade de voltar a ser criança. ;)

Lari, a mulher com quem me casei não gosta de futebol, menos ainda das transformações que causa nas pessoas, duas vezes menos ainda quando não presto atenção ao que ela está falando porque o lance é de gol (ou não). Mas era o pai dela que a levava ao Maracanã para torcer do mesmo lado que você ficava. As lembranças que ela tem dele também têm cheiro de futebol.

Futebol desperta paixões, mas pode transformar doentes em assassinos. Futebol inspira discursos épicos de rara qualidade (viva Nelson Rodrigues!). Até ontem, entretanto, não tinha percebido o lado doce do futebol, o lado que tem a cara de nossos pais. Proponho, então, um brinde. A eles!

Ontem, enquanto o Flu perdia, eu já imaginava a conversa que acabamos de ter.

Ontem, depois do jogo, eu não telefonei para o meu pai.

terça-feira, 14 de setembro de 2010

Memórias de Filho e Pai

As memórias, ele garante, começam no Maracanã, em jogo contra o Fluminense de Friburgo. Ali o empate teria gosto de derrota e a vitória do nosso Fluminense seria, como realmente foi, apenas um detalhe. Para mim, elas começam de fato pelo hábito de chegar ao Maracanã com os jogos começados e de sair antes que eles terminassem. E, também, com a mão dele segurando fortemente a minha, entre o carro e o estádio; e, mais tarde, na volta até o estacionamento.

A tensão do jogo começava no carro, com o locutor transformando o jogo morno num pandemônio. No caminho que fazíamos a pé, a jogada começava no radinho de pilha da portaria de um prédio, virava suspense até o bar da esquina e, às vezes, terminava com o grito de gol da multidão distante ou com o palavrão vindo de uma janela. Se de fato ocorresse, o gol nos apressava o passo da ilusão de chegar a tempo de comemorar; ou trazia hesitação, vontade de voltar. Qualquer que fosse o sentimento, seguíamos em frente.

Eu poderia narrar os dias inesquecíveis em páginas intermináveis, mas seriam sempre vitórias de terceiros que assumimos como nossas, seríamos massa descontrolada e não indivíduos torcedores. Nós éramos pai e filho apenas na ida e na volta, na ansiedade e no desabafo. Durante, não éramos nada.

Se assim fosse o desfecho, o retorno trazia o diálogo mal-humorado da derrota. Caso contrário, colocávamos a velha bandeira de 1951 a tremular os seus farrapos na janela, aumentávamos o som do rádio a cada gol infinitamente repetido, buzinávamos da entrada do túnel até a sede do clube, brincávamos de ser feliz (futebol é brincadeira). Em casa, a televisão repetia o rádio e os gols. No dia seguinte, líamos juntos todos os jornais e, durante a semana, o jogo de botão me dava o poder de reviver aqueles momentos com ele.

Meu pai tem causas e paixões. Aprendi a seguir as esportivas, abandonei as políticas. E quando estas se aproximaram daquelas, eu me afastei dos estádios. Interessa-me ainda entender as emoções que me transformam a espera de um resultado e que me fazem torcer contra um ou outro. Não preciso explicar, porém, porque sempre ligo para ele depois das vitórias.

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

O Mundo Anda Tão Complicado

Como foi o seu dia? Comigo, sem novidades ou emoções. O seu trabalho rendeu? Que bom. Temos a semana inteira pela frente, eu sei. Amanhã eu vou ao mercado. Você prepara a lista dos produtos de limpeza? E o que mais você lembrar. O resto deixa comigo. Na quarta-feira, como de costume, eu busco a princesa na creche. É cedo para garantir, você tem razão, já que durante a semana a agenda muda, as reuniões são marcadas, trocam de horário e mudam de novo. Mas ficamos assim, até que alguém me contrarie e diga que não. Na quinta vem o sujeito da banda larga. Eu espero que agora resolva. Não aguento mais ficar sem Internet. Nem você, é verdade; muito menos você... É bom ligar para confirmar. Não confio neles, tanto que nem falo mais o nome da empresa. Tá, eu ligo. Se eu estou ansioso? Não, um pouco, é só... muita coisa para resolver. Você faz mil coisas ao mesmo tempo, reconheço, e eu faço metade, se tanto. Mesmo metade não é pouca coisa. Aliás, falta pagar alguma conta? O cartão, é óbvio. Você faz pela Internet ou eu levo comigo, tanto faz. Dou um jeito, no meio de uma das tardes, quando tudo estiver tranquilo no trabalho. Ah, claro, estamos sem acesso há 5 intermináveis dias! E também tranquilidade não combina com labuta, mas não é isso que vai atrapalhar. Saio no pico do estresse, pago a conta, dou uma volta na Livraria Galáxia, tomo um cafezinho na esquina e compro um chocolate. Melhor mudar de assunto. Para o fim de semana, podemos fazer algo diferente, se sua mãe estiver por aí. Ela não vai recusar ficar com a neta. Vamos chamar nossos amigos para jantar. A gente faz uma feijoada. Eu sei que você não gosta, e feijão com carne de porco no jantar só pode ser brincadeira, né? Um filé feito no forno com um risoto para acompanhar... Que tal? Durante a semana eu penso nos detalhes. Não dá, tem que ser antes, porque amanhã eu vou às compras, lembra? Eu já tinha me esquecido. No mercado, eu decido o menu. Ou, se preferir, podemos trocar o jantar por um cinema. Você fala com ela? A minha mãe vai viajar, uma pena. Foi meu pai quem disse. Eles têm um aniversário ou coisa parecida. Você tem razão, estou ansioso. Eu sei, é tudo diferente agora. A mudança grande chegou quando ela nasceu. O espaço físico é o que menos importa: o berço e as fraldas foram apenas o começo. O espaço tempo encolheu pra gente. Mas tudo vale a pena quando a gente vê ela sorrir. E se você também sorrir... Sabe, eu quero fazer tudo por vocês. E por mim? Devolvo a pergunta: e o que você tem feito por você? Vamos pensar juntos nisso. Vem cá, meu bem, enquanto a gente não pensa e antes que fique tarde, a gente pode namorar um pouco. Pelados, claro. Se eu piscar assim, você me dá um mole? Ok, estou apelando, já é tarde, estamos com sono. Vamos dormir, então.

Você ainda não dormiu? Nem eu. Estou agitado. Sim, pode ser uma boa idéia dividir os fones de ouvido. Será que toca uma música no seu ipod que me faça dormir? Judas hoje não dá. Caía bem uma Loreena Mckennitt ou, quem sabe, uma canção que fale da nossa situação. Chega de falar, né? Boa noite. Ah, e obrigado.

Pam-param-pam-pam-param.

Pam-param-pam-pam-param.

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Artimanhas de Alice

Alice não gosta de futibom. Isso não basta para que vovozão encha a pequena de presentes tricolores. A maioria fica por lá, na casa deles. Alguns acabam por aqui, como a lanterna, que fica no estojo das tantas lanternas de Alice. Aqui ou ali, os outros brinquedos ficam meio esquecidos, afinal, ela não gosta mesmo de futebol. Dos que habitam o antigo quarto da titia – agora dela, sobretudo nas noites em que os pais têm compromissos ou simplesmente precisam descansar –, o preferido é o “meu filho gorducho”. Trata-se de um boneco de plástico em forma de ovo, com uma quantidade mínima de cabelos (calvo, talvez), um sorriso tremido e olhos esbugalhados, que veste a camisa e canta o hino do clube. Quase assustador.

O jantar de sábado comemorava os aniversários do tivô e do papai. Havia poucos convidados além da família: apenas João Victor e seus pais. Dois anos mais velho, o menino se tornou alvo de Alice, que fazia de tudo para chamar sua atenção. Risadas forçadas, movimentos desconjuntados no sofá... olha a compostura, menina! Alice não encontrou o tom da paquera, até perceber que ele gostava de futebol e era torcedor do Fluminense, assim como papai e vovozão. Ela foi até o quarto, abriu o armário e começou a tirar, um por um, os brinquedos e os livros de três cores. Em pouco tempo, João estava lá e os dois brincavam juntos. Do filho gorducho à cabaninha, que transformou Alice num fantasma, o que mais fez sucesso foi a cartilha personalizada do Fluminense, distração certa para quem está aprendendo a ler. Alice se divertiu e não pareceu se importar quando a cartilha e o livro das torcidas que papai ganhou levaram o menino de vez para a sala.

Os dias passam e a neném vira criança, a criança quer ser menina. Alice não gosta de futebol, mas quem disse que não quer jogar?

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Circular

Senhores passageiros, desculpem-me por interromper a sua viagem. Pausa. O camelô traz hoje na promoção três barrinhas de cereal por um real. Nova pausa. Tem de coco, de castanha e de banana. Mais uma. E o prazo de validade... Paro de ouvir. A mesma ladainha se repete há tempos. Não sei dizer há quantas horas porque não tenho relógio. E meu celular não funciona. Meço o tempo pela frequencia com que eles entram no ônibus, que, aliás, parece comum, apesar dos vidros escuros. Os passageiros também, apesar das olheiras e da falta dos fones de ouvido. O camelô da vez é enorme! Um ogro. A camisa é vermelha, meio alaranjada, quase amarela nas mangas. Parece um ogro pegando fogo. Mas os passageiros não ligam pra ele, que parece falar pra si mesmo. Não há venda. Não houve venda das outras vezes. Resolvo então experimentar. Procuro a carteira nos bolsos e nada; reviro a pasta e, enfim, encontro algum trocado. O ogro olha nos meus olhos, agradece com os próprios olhos e sai. A camisa vermelha carrega um número nas costas. É do time dos infernos, penso.

A parada seguinte dura o tempo de mastigação das três barrinhas. Mais uma vez, ninguém sai. Entra um fauno. Ele tem as unhas pintadas, vende canetas. Senhores passageiros, desculpem-me perturbar a sua paz. Pausa. O moço tem caneta de ponta fina a um real. Segunda pausa. Se comprar duas canetas, paga dois reais e recebe de brinde uma caneta com calendário. Ainda tenho trocados. Acho que só eu presto atenção. Ele continua, olhando nos meus olhos. Trago também uma caneta iluminosa a um real e cinquenta. Pausa. Para marcar textos. Faço sinal com os olhos. O fauno se aproxima com as canetas na mão, inclusive a de brinde. O dinheiro é suficiente. Como ainda não sei o que faço aqui, compro todas para perturbar o tédio, já que os outros passageiros não o fazem. O fauno me cumprimenta com os olhos e sai. Ele tem cascos no lugar dos pés.

Na falta do que fazer, eu picho. Escrevo meu nome umas tantas vezes. Marco o tempo como um presidiário que conta os dias, até que o ônibus para mais uma vez. Entra um senhor de barba preta, que parece um rabino, veste-se como um padre. Ele começa a falar. É um sermão que não entendo, parece árabe. Ele fala como um pastor, mas ninguém se incomoda, ou se levanta, ergue os braços e começa a cantar. Ninguém reza, ninguém parece ouvir. Só eu. Ele também olha fundo nos meus olhos. Espero que não veja mais que minhas pupilas. Tenho medo, quase. Quando se aproxima, oferece um santinho. Não temerás o terror da noite, nem a flecha que voa de dia (Salmos 90, 5). Eu aceito, marco de azul com a caneta iluminosa as duas primeiras palavras. Ele oferece a mão direita e diz: Eles te levarão em suas mãos, para que seus pés não tropecem numa pedra. Versículo 12. Lembro-me das aulas de religião na escola. Saímos de mãos dadas no ponto.

Estamos num túnel mal iluminado e mal vemos o ônibus partir. Ele diz que vai aguardar o próximo e mostra-me uma escadaria onde há apenas uma placa: Nível 1. Subo devagar. Chego ao Nível 2: também um túnel mal iluminado, com um ponto de ônibus ou um banco de plástico que deduzo ser o ponto. O Nível 2 tem música ambiente. Ignoro. It´s the end of the world as we know it, canto. O ônibus chega: Circular, diz o letreiro. Sem opção melhor, entro assim que a porta abre.

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Um Dia Esqueci a Lapiseira

Ela sentava na minha frente e tinha um estojo preto cheio de canetas e duas lapiseiras. Eu toquei com os dedos o ombro dela. Você pode... Não acabei de perguntar. Sem se virar, ela tirou a lapiseira rosa do estojo e me deu. Quando a aula terminou, agradeci. Saímos juntos da escola pela primeira vez. Ela, abraçada com os livros, não parou de falar até nos separarmos. No dia seguinte, esqueci a lapiseira de novo. Pedi a roxa. Ela disse que não e me passou a rosa, de novo, sem se virar. Saímos juntos da escola pela segunda vez. Um mês depois, já era hábito sairmos juntos. Eu não precisava mais esquecer a lapiseira e ela parava de falar quando eu olhava nos olhos dela. Eu falava então. Abobrinhas. Começamos a estudar juntos. Eram duas vezes por semana – um dia na casa dela, o outro na minha. No meu quarto tinha um quadro de cortiça. Depois de estudarmos, brincávamos de corte e colagem. Pegávamos fotos antigas em revistas, recortávamos palavras nas manchetes do jornal, às vezes de um livro da escola, ou da agenda dela, tudo para enfeitar o quadro até o próximo encontro. Na casa dela, escrevíamos histórias num caderno. Ela escolhia o título, eu escrevia o primeiro parágrafo e ela continuava. Voltei a esquecer a lapiseira. Pedia sempre a roxa. Ela ria, esticava a rosa e eu pegava a lapiseira junto com a mão dela. Um dia ela perdeu o estojo. Emprestei a minha até o dia seguinte, quando ela levou um novo estojo preto quase vazio: uma lapiseira dourada e uma caneta. Quando voltei do banheiro, coloquei uma lapiseira rosa no estojo dela. Ela riu quando eu disse que era a minha, para o caso de eu voltar a esquecer.

Continuávamos estudando juntos em casa, sempre de portas abertas. Às vezes eu tinha vontade de fechar, mas sempre havia alguém por lá, vigiando. Na escola, também havia curiosos. As insinuações eram freqüentes. Negávamos. Éramos amigos, apenas isso. Mas eu continuava querendo fechar a porta. Acho que queria privacidade. Não falava isso nem para ela. Quando as provas finais se aproximaram, esquecemos o quadro de cortiça e o caderno de histórias. Passamos em todas, comemoramos com um abraço. Foi o primeiro abraço e o último, porque as férias tinham chegado. Viajei para a casa dos meus avós para passar as festas de fim de ano. Lá, senti falta da lapiseira rosa. Comprei uma e meu primo achou esquisito. Lá senti falta do caderno e comecei a escrever sozinho na agenda que ganhei de presente. No dia em que voltei, deixei a mala na sala e fui logo para a casa dela. Acho que queria dizer alguma coisa. Ela me abraçou quando me viu. Foi o segundo abraço e o primeiro, pensei, porque as férias ainda estavam começando. Daquele jeito, abraçados, ela disse que estava feliz. Ela iria para Disney com a tia naquele mesmo dia. Tinha que terminar de arrumar as malas, etc. Eu emudeci. Voltei para casa cabisbaixo, não mexi na mala que continuava na sala e, sob protestos, deitei na minha cama de olhos fechados. Adormeci.

Quando abri os olhos, notei algo diferente, que não tinha reparado antes. O quadro de cortiça não estava vazio. Tinha uma foto minha recortada no canto. Reconheci quando me aproximei: era da festa de aniversário dela, quando disse que eu estava bonito e quem estava por perto não escondeu o sorriso. Do lado da minha, tinha uma foto dela, também recortada, sorrindo com um gorro de Papai Noel. De um jornal, ela tinha retirado a palavra Natal. De uma revista, Feliz. Na minha escrivaninha, tinha um livro embrulhado e, do lado dele, a lapiseira rosa. Agora eu tenho duas. Olhei o relógio e saí correndo de casa, de novo, sob protestos. Estavam com saudades... Quando cheguei, era tarde. Ela tinha acabado de sair para o aeroporto. Perguntei se podia entrar e a mãe dela disse que sim. Procurei o nosso caderno por todo o quarto. Encontrei debaixo do travesseiro. Eu tinha esquecido que não havia uma folha sequer em branco, só restava uma linha na última página. Escrevi: Boas Férias. Escrevi de novo: Atrás do espelho. Foi lá, na parede branca mesmo que escrevi com uma lapiseira rosa, claro, que um dia esqueci a lapiseira.

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Memórias de Pai e Filha

Uma vez por semana, após certa embromação para escolher o maiô e os chinelos, saíamos de mãos dadas, a minha cobrindo a sua. Duas mochilas nas costas, eu dava a direção; fazíamos o caminho da mamãe: Real Grandeza abaixo, Caravelas à direita. E logo atravessávamos para o outro lado, onde a passagem era obrigatória entre o muro e a árvore de raízes robustas que levantavam a calçada. Travessia a que dávamos o nome de aventura. Pouco papo, alguma cantoria, prosseguíamos. Algumas casas adiante, o amigo nos aguardava sem latido ou festa. Apenas se aproximava da grade e observava. Nós também. À esquerda, o Conde nos acompanhava até a piscina, na rua do Pinheiro, onde os golfinhos nadavam.

Sentados em cadeiras de plástico, assistíamos a tudo – eu, as babás e, ao menos, uma mãe de fato. Você sempre sorria dentro d’água. Eram trinta minutos; ou menos, já que a embromação e a aventura eram feitas para durar. O atraso, portanto, quase inevitável. A aula, por sua vez, era apenas um exercício saudável, porém efêmero e repetitivo: dedão na borda para mergulhar, música da baleia para cantar, até que a peixinha saísse para eu secar. A roupa da capoeira substituía a de banho e o cabelo, de embaraçar... Tarefas difíceis, com alguma pirraça.

Dali para a escola. Antes, na mercearia, você matava a fome com uma barrinha de cereal. O passo era da eternidade. A casa do papai do céu era chance para um descanso, o prédio da melhor amiga era motivo de conversa. As perninhas cansadas pediam colinho e eu resistia. Então corria, dizendo: minha princesinha; você respondia rindo: meu princesão. O teatro passava e, mais uma vez, o Conde nos deixava. Ali, logo em frente, recordações da minha infância se revelavam. Eu me distraía, lembrava-me de uma festa, de outra, de gel no cabelo, de Legião. A poucos metros do seu destino, de novo, você pedia. Eu cedia. No colo, você se distraía. Eu ganhava um beijo. Você, tantos quantos eu conseguisse dar. O muro rosa nos separava.

O tempo, por fim, acelerava.

quarta-feira, 28 de julho de 2010

Todos os Nomes

Peguei o título emprestado com Saramago e a inspiração veio nas primeiras páginas de “Tudo se Ilumina”, de Jonathan Safran Foer.

Os nomes são todos meus. Nasci Luiz Rodolpho, com a grafia exata do avô paterno. Assim a família me chama, salvo quando minha irmã me abrevia para LR. Nome duplo tem peso de realeza, não cabe em formulário, estica a bronca e abre caminho para múltiplas personalidades.

Luiz, assim sozinho, não me diz nada. Sou capaz de ignorar. Mas, ao telefone, serve como identificador de chamadas: se querem vender cartão de crédito, ele não está e não sei a que horas retorna. Vem acompanhado de senhor em correspondências, está na agenda dos consultórios médicos e na preferência das secretárias.

Rodolpho escolheram os primeiros amigos do Nenequita; depois, eu escolhi para apertar a mão, e a maioria aceitou. Superou apelidos na escola e ganhou sufixos na faculdade e no trabalho – Rodophlex é engraçado, Rodolfino dispensa ph.

Fofão, coisa meiga, é arte de meu pai e senha para eu me transformar em avestruz. Nada a ver com o cara de saco, dos tempos de Balão Mágico. É corruptela de ofo, o melhor som que meu irmão podia reproduzir quando tinha três ou quatro anos.

Papai também usa Grandão, coisa de macho, com origem em uma colônia de férias do Fluminense onde eu era o mais velho e, também, um dos pivôs do time de basquete. Acredite, se quiser.

Em casa, há nomes que não serão revelados, nomes que já saíram de moda, nomes que não acabam mais. Há Amor, Rô, papaizinho, papaizão, que são os meus preferidos.

Amarante prefere Rodolpho.

domingo, 18 de julho de 2010

Sharpay e o Menino Prodígio

Papai, eu sou a Sharpay. Em tempos de aniversário, Alice se veste de Sharpay Evans. Ela já quis o rosto da Hermione, mas agora prefere os shows no meio da sala. E por que uma festa do High School Music? Porque ninguém conhece Glee. Queria ser uma mosquinha para ouvir o papo dela com os amigos. Glee está para eles, talvez, como as novelas estejam para Alice. Ela chegou em casa, um dia, se dizendo Maya. E o Daniel, o seu Raj. E quem é Maya? Ela não sabia. Não vemos novelas e, mesmo se víssemos... Glee é a nossa exceção. Ela é nossa convidada, adora o Kurt e quer também ser a Rachel. Menos mal que assistimos ao programa em inglês. Ela não presta muita atenção porque não entende e a ansiedade dela pelas músicas não deixa.

Eu fui Badaró. Há quase trinta anos, não havia muito na televisão além das novelas. Eu fui Badaró para participar da brincadeira no recreio. Eram crianças correndo em círculos no pátio da escola em busca de um tesouro qualquer. Não me lembro quem era Mário Fofoca, nem se eu assistia à novela. Hoje, a idéia de ter sido um personagem do Carlos Vereza me assusta. Melhor ser um figurante do HSM – amigo invisível do Troy Bolton, não?

Depois, fui Roque Santeiro. De bandido coadjuvante a personagem principal. Mas, com certeza, não via a novela. Das oito, nem pensar. Hora de terminar os deveres da escola e me preparar para dormir. Aliás, o apelido veio com os resultados de algumas provas. Fazedor de milagres, diziam. Hoje, a idéia de ser o José Wilker também me assusta. Melhor ser um figurante do Glee – um amigo CDF do grupo, sem talento para cantar ou dançar.

Sempre fui o menino prodígio. E os amigos descobriram, mais tarde, as semelhanças físicas com o Robin. Ficou inclusive registrado numa das camisetas do 3º ano, às vésperas do vestibular. Nunca dei bola, não pegou. Ficou só na camiseta. Não dei bola, mas não queria ser lembrado como parceiro do Batman, seja lá qual fosse a conotação da parceria. Ficou nisso porque ninguém viu as minhas fotos num carnaval qualquer em Araruama. Ficou nisso porque nunca revelei o motivo de me sentir bem no papel. Lembro-me de um episódio da série antiga em que a Mulher Gato aprisiona o menino prodígio. Não me venham com essa... eu não queria que o Batman me salvasse; eu queria ganhar uma lambida da vilã, assim como o Robin. Acho que essa foi a minha primeira fantasia sexual.

terça-feira, 6 de julho de 2010

Toy Story

Amarante juntava palitos de sorvetes. Os palitos ficavam guardados numa caixa de sapatos, ao lado de uma caixa maior, cheia de carrinhos Matchbox. Nas tardes em dias de férias, ele tirava o álbum de figurinhas da estante e escolhia um circuito da Fórmula 1 para reproduzir no chão da sala de estar. Os palitos desenhavam os limites da pista. Por sua vez, os carros eram associados a pilotos e equipes numa folha de papel e, depois, perfilados na reta principal. Eram movidos a petelecos. A corrida demorava três ou quatro voltas. Os pontos eram distribuídos para os seis primeiros colocados e somados a cada grande prêmio. No fim da semana, Amarante tinha um campeão.

Amarante colecionava botões. Eram 24 times brasileiros, disputando, pelo menos, três tipos de campeonato. No início das férias, aconteciam os campeonatos regionais, com oito equipes cada, todos inusitados: o paulista-goiano; o carioca-pernambucano; e o restinho do Brasil. Depois, vinha um torneio disputado nos moldes da Copa do Mundo. As férias terminavam com o Campeonato Brasileiro em andamento, com três divisões, também de oito clubes cada. As rodadas finais acabavam se arrastando pelo semestre e os jogos ficavam restritos aos sábados ou domingos que não tinham programação especial. Num caderno com espiral, Amarante anotava os resultados das partidas, os artilheiros de cada jogo, e atualizava o ranking.

Amarante lia muitos livros e contava histórias. Elas eram montadas no quarto e podiam durar uma semana. O forte apache do Playmobil se escondia entre a cama e a parede. Ficava difícil abrir a porta do armário. As casas eram colocadas lado a lado criando uma rua fictícia de uma cidade qualquer do Velho Oeste americano. De vez em quando, o circo aparecia por lá e ficava impossível andar pelo quarto. Houve também a fase das naves espaciais, que tornou os enredos mais divertidos. As horas passavam sem que Amarante sentisse. Só a faxina semanal trazia o desmonte e fazia as peças voltarem para as caixas.

Amarante foi criança urbana. Não morou em vila. O prédio era antigo, não tinha sequer playground. Foi criança de escola e apartamento. O clube era só para a natação. A praia, para ver da varanda. Mas a infância de Amarante teve muita diversão. Os carrinhos, os botões e os bonecos que restaram podem confirmar.

E ele foi muito feliz. No entanto, sente falta hoje de tudo o que não viveu então. Hoje, quando não está brincando com a filha, Amarante quer brincar com o mundo, quer brincar você.

quinta-feira, 1 de julho de 2010

Dia Comum, Parto Normal

Tenho muitas saudades daquele dia. Uma sexta-feira. Era um dia comum. Afinal, a expectativa era a mesma de todos os dias e já estávamos nos acostumando com ela. Nane teve as primeiras contrações no fim da madrugada, mas nada falou. Fui trabalhar então. Tudo normal até a hora do almoço, quando o celular tocou. Daquela vez, sem dúvida, eram dores diferentes. Eu não devia me preocupar, a frequência delas ainda era baixa e a futura mamãe estava tranquila. Como sempre. Às três da tarde, fui expulso do trabalho. Vai lá! Ela tá nascendo! Ela não tá calma nada! Fui. Os intervalos das contrações logo chegaram aos cinco minutos. Estava assim autorizada nossa ida para o hospital. Meu irmão foi nosso motorista e, apesar do horário, o trânsito não nos atrapalhou. Antes das seis estávamos em Santa Tereza. Dilatação, ok. Mamãe, pronta. Médica e anestesista, chegando. Papai, de toquinha e avental. Na sala de cirurgia, eu procurava notícias nos olhos das enfermeiras e da obstetra. Clima de descontração, um momento sequer de tensão. Nane, cada vez mais vermelha, fazia força. A cortina azul me separava dos detalhes. Ela tá lá no final do túnel. Dá pra ver os cabelinhos. Vem! Hesitante, fui. Estavam lá. Voltei. Nane estava mais vermelha que antes. De mãos dadas, vivíamos a mesma ansiedade. Era um choque de dor e nervosismo. De novo, procurei por inquietação nos olhos delas. Nada. Pode vir. A cabeça já saiu. Fui. E vi nascer. Dali para a barriga da mãe. Da barriga para enfermeiras alegres e muito falantes. Elas celebravam. Alice resmungou e a ficha caiu. Quase um miado. Parei de respirar, não sabia se ria ou chorava, se corria atrás dela ou se voltava para a mãe. Falei alguma coisa com a Nane e enfiei a cabeça no vão que dava para o berçário. Uma das enfermeiras dava as boas vindas. Ao mundo cruel, criança! Falava de uma bomba em Londres no dia anterior. A ficha caiu pela segunda vez. Alice nasceu num dia comum, de parto normal, há quase cinco anos, em 8 de julho de 2005. Optamos pela privacidade – nada de filmagem ou fotos. Preferimos transformar as manifestações de nossos sentidos em lembranças. Pequenas recordações do melhor dos meus dias.

quarta-feira, 16 de junho de 2010

De Granizo e Resistência

Apenas uma das fotos que tiramos comprova o que tenho a dizer. E reconheço que, ainda assim, você pode ter motivos para duvidar. Assim como passei a duvidar do Rei Sol. Nela, o horizonte que se vê é azul. As nuvens pesadas e escuras aparecem no alto. Durante todo o dia, essas nuvens assustadoras não largaram o castelo. Hora sim, hora não, chovia. Depois do almoço, até granizo choveu. Por alguns minutos, minúsculas pedrinhas de gelo bateram com insistência no chão. Tinham, no máximo, dois milímetros de diâmetro. Também registramos. No entanto, também é direito seu duvidar.

Nosso domingo em Versalhes foi assim: mais ou menos. E, por isso, talvez a única decepção da viagem. Se o tempo foi obra do acaso, a confusão na entrada não. Também não a superlotação dos salões reais, invadidos por hordas orientais. Ah! Se o Japão é a terra do sol nascente, talvez o rei esteja escondido lá, porque em Versalhes ele não estava. Também não foi obra do acaso o fato de que o Museum Pass não incluía o jardim, o transporte interno, etc. Isso significava que, para sair do castelo e chegar aos Trianons, a volta era enorme e que sofreriam os nossos já maltratados pezinhos. Isso queria dizer que, deixando alguns eurinhos a mais aqui e acolá, o turista acabava explorado. De todo o passeio, salvou-se apenas o playground camponês de Maria Antonieta.

Cansados e mortos de fome, voltamos a Paris a tempo de fazer jus ao nosso estado. De quase inválidos. Lá, a megalomania napoleônica impressiona. Perguntamo-nos ainda quantos Napoleões cabem num túmulo daqueles. Lá, visitei o Musée de l’Ordre de La Libération para sentir o cheiro das poucas histórias que ouvi em casa. Aquelas que Mami viveu já no Brasil, defendendo a sua pátria. Ela e também meu avô, brasileiro que mereceu uma carta de agradecimento do General De Gaulle, mantida emoldurada na biblioteca que guarda o que restou da Livraria Sauret. Saí dali com broches da Resistência. É nela que está o verdadeiro orgulho francês. Mami é prova viva.

domingo, 13 de junho de 2010

As Férias de Alice

Alice tirou férias dos pais por longos dezessete dias. No dia em que partimos, eu a deixei na creche. Lá, ela entrou pelo corredor sem olhar para trás. Virou-se, de repente. O beijo, pai. Esqueci o beijo. Com as bochechas coladas nas grades, ela me ofereceu o melhor deles. E completou com um sorriso: agora vai, papai; vai viajar, vai!

De Paris, Alice sabia muito pouco. Que o Ratatouille morava lá, que tinha uma torre igual a do quadro da vovó, que Mami nasceu lá, que tinha uma loja da Disney. Se a torre e a história da família ainda não têm apelo, falar com o Rémy era a minha missão. Aliás, a Disney já é quase uma obsessão. Alô. Mamãe, você já foi na loja da Disney? Não. Hoje você comprou quantos presentes? Dois. Comprou o quê? Não vou falar. É surpresa. Já se-ei, já se-ei. Foi um bato-om! E o batom já é uma obsessão. Tem mais que a mãe.

Para os pais de Alice, os dezessete dias foram longos. Lá pelo décimo-quinto, já era hora de voltar. Sonhos satisfeitos, mala cheia de presentes para a filha. Chegamos às 6h da manhã em casa. Às 8h fomos acordá-la na casa da avó, no quarto da tia. Ainda grogue, dela ganhamos enormes abraços. Foram poucos minutos até que despertasse e confessasse: Pensei que estava sonhando, mãe.

Pai, você encontrou a Luana? Ela também foi para Paris. A melhor amiga de Alice foi mesmo para lá, mas chegou um dia antes de partirmos para a Holanda. Daí a explicar que... melhor não. Não encontramos com ela, filha.

Hora de abrir a mala e dar os presentes. Ela foi paciente, mas queria sempre mais, às vezes sem dar bola para os que já tinha recebido. Melhor prevenir: Tá acabando, filha. Foram roupas, batons, brinquedos, etc. E, claro, o Rémy. O Ra-ta-tui, papai!

Mais tarde, entediou-se com as fotos até ver o castelo da Aurora, a Bela Adormecida. Da EuroDisney, tiramos poucas fotos, evitamos até onde pudemos resistir. Era uma Disney pequena, explicamos. Mas ela não se importou. Ao contrário, ainda pede para rever cada uma das fotos.

À noite, com saudades da cama, ouviu a história do escargot que não gostava da chuva. Depois dormiu, tão rápido quanto nunca, abraçada ao amigo rato.

A cena valeu uma foto. A viagem valeu por tudo.

domingo, 6 de junho de 2010

Tiquetonne

Ligeiramente trêmulos, os dedos tocaram meu braço com a força da lembrança. Tiquetonne. O quê? O nome da rua em que morei. Mais alguma coisa? Uma referência? Faz tanto tempo. Eu me lembro dos Correios.

A viagem para Paris começou muito antes. Num devaneio, da vontade, quase da necessidade. Começou quando tirei um livro da estante. Para ler em francês, coisa que não fazia há mais de 6 anos. Sobreviveu quando minha irmã não perdeu a oportunidade e quebrou o tabu da família que jamais voltou. Recomeçou quando juntos decidimos planejar, comprar as passagens e planejar de verdade. Para viajarmos os dois, para vivermos nossas realizações juntos, para curtir de novo, como antes, e renovar.

A emoção da realização veio logo após a chegada no hotel. Perto da torre às 19 horas, com céu azul e calor. La tour Eiffel. Logo ali, cada vez mais próxima. E nós dois, bobos de emoção. Bobos também por termos demorado tanto a chegar ali. Chegamos sorrindo, fotografando tudo, gastando pilhas sem contar. A torre e o Sena. Paris estava diante de nós.

Os Correios surgiram na manhã do terceiro dia, depois de deixarmos o Louvre. Estava explicada sua resistência em memória tão frágil, com 95 anos de idade e 75 anos de saudade. La Poste e, em seguida, Tiquetonne. A rua estreita, com lojas moderninhas, restaurantes abundantes. Ali fizemos a mais francesa das refeições, cercados de franceses, confundidos com franceses. Por segundos, até o vocabulário falhar.

Quantas coisas deixei de lado nos últimos anos! Uma viagem pode ser o caminho para a redenção? A viagem certa, desejada, pode nos fazer recuperar as palavras que perderam o sentido por mera falta de uso. Ou mau uso retórico. Em francês, eram tantas as que se tornavam subitamente óbvias. Em português, eu só precisava dizer “te amo” com os olhos e os dedos entrelaçados.

Ali, eu estava em casa. Feliz.

quarta-feira, 14 de abril de 2010

Chuvas Esparsas

No táxi, com fome:

Estamos há 36 horas sem luz. Tudo o que tinha na geladeira estragou. Os ovos... Mamãe, meu ovo estragou? Não, filha. Ovo de chocolate não estraga. Tô falando dos ovos de galinha, que a gente faz mexidos. Ah! Meus ovinhos estragaram? Aqueles que o coelho trouxe. Não, já falei. Foram os ovos de galinha. Tá. Mãe, o ovo que a Tia Domi me deu estragou?

Na sala, deitados no colchão, enquanto a chuva pinga no quarto:

Você sabe qual o santo para fazer voltar a luz? Cobra Coral não tá com nada... Deve ser São Teobaldo (não sei porque lembrei-me dos tempos de faculdade, ouvindo a Jovem Pan no carro: Teobaldo morreu, Teobaldo morreu). Estou me sentido no dia da marmota. Tédio. É... o santo a gente não sabe, mas acho que você descobriu o Patrono, Gina. A marmota, Harry?

Ao telefone, colecionando protocolos:

Boa noite. Estamos há quase 2 dias sem luz. Agora, sem água também porque a bomba não funciona. Vocês já sabem qual é o problema, qual a previsão para a luz voltar? Não, senhora. Não temos como saber. Nós só anotamos a reclamação e passamos para outra área. Mas posso adiantar uma coisa: deve ter sido por causa da chuva. Ah! Isso eu já tinha concluído sozinha. A senhora quer anotar o número do protocolo?

quarta-feira, 7 de abril de 2010

Riders on the Storm

O mundo está acabando. Acabei de ler no jornal que um senhor sul-africano, que teve seu irmão – um líder de ultra-direita – assassinado por um negro, disse não serem eles racistas. Eles acreditam na pureza da raça. Devemos avisá-los que, quando a cidade do Rio faz jus ao nome – ou seja, transforma-se num rio depois de um temporal – corpos de todas as cores bóiam do mesmo jeito. E a pureza, esta fica escondida em algum canto do coração, enquanto ele insiste em bater. Em baixo da pele, só osso.

Não para de chover. Estamos sem luz desde as 9h da noite de ontem, estamos ilhados por aqui. A bateria do notebook míngua. Eu não sei se consigo terminar de escrever. Mas, tenho certeza, os Cavaleiros do Apocalipse estão por aí. Nunca vi nada igual. Quando saí do trabalho ontem no Centro, fui ao Jardim Botânico e voltei a Botafogo inteiro, sem grandes dificuldades. Depois de ver a São Clemente virar canal, achei que o pior tinha passado. Nada. A luz se foi. A chuva aumentou e continuou crescendo pela madrugada. Acordei ansioso no meio da noite. Na esquina da Voluntários com Real Grandeza passava um rio de água barrenta. Meus traumas dos primeiros anos morando aqui não me deixaram mais dormir. Para não ouvir os pingos insistentes de alguma infiltração, coloquei os fones no ouvido. Quarenta minutos depois, adormeci ouvindo o eco: Riders on the Storm... Riders on the Storm.

De manhã, após noite mal dormida, corri para a varanda. Na Real Grandeza, também não via asfalto. Era água barrenta. Poucos ônibus se aventuravam por ela. O silêncio impressionava. Voltei para cama com a pergunta me esperando: A luz voltou? Não sei. Sei que não dá pra sair de casa. O silêncio foi quebrado antes das 9h, quando pedestres já caminhavam pela nesga de asfalto que surgia. Ainda tem automático, dizia alguém que tentava vender o último guarda-chuva. Um bravo, pois o artigo já era inútil.

Ligamos o radinho de pilha. Redescobrimos o radinho!

Céus! A cidade está um caos. Não saiam de casa. Orientação do prefeito. Um taxista vai dar entrevista. Ele está desde 2h30 da manhã com o mesmo passageiro e a conta já soma R$170,00. Um abrigo de velhinhos foi interditado pela Defesa Civil. Ficaram todos mais de 2h na chuva, até que um vizinho os recolheu.

Agora venta. Surge o temido ponto de infiltração no quarto. A Light anota as reclamações e gera protocolos. Surge um ponto de exclamação no canto inferior da tela. É a bateria que grita. Não tenho escolha a não ser o silêncio até que...

terça-feira, 30 de março de 2010

Recorrências

Período de estiagem provocado por estresse. Está claro o motivo do silêncio? Fato de recorrência trimestral. Estou melhorando. Já foi mensal, diária...

As frases de hoje estão soltas, buscam graça com a profissão. E não acham. Está realmente sem graça isto aqui. As palavras estão sem força. Saem quadradas. As letras entortam. Tudo porque trabalho de engenheiro é coisa de puta. Faz qualquer coisa pelo cliente, não sabe explicar exatamente o que faz, trabalha em turnos suspeitos, etc. Os engenheiros conhecem bem o e-mail que circula há tempos. A carapuça veste. Se a função é de coordenador de projetos, o uniforme é ainda mais ridículo. Além da carapuça e da cinta-liga, tem a cueca vagabunda. O elástico esgarça, arrebenta e aí...

O trabalho não precisa ter a paixão como ingrediente, mas tem que apaixonar em seu desenvolvimento. Não ficou bom. Sobretudo depois da cueca cair. E a gente não usa sobretudo. Hein?! Vou tentar de novo. Não sou apaixonado por aquilo que faço, mas preciso me apaixonar pelos caminhos que escolho para fazê-lo. Mais ou menos. De alguma forma, isso tem que me fazer bem. Assim é melhor. Direto e objetivo.

Gosto de escrever porque me expresso com liberdade. Conclusão: aqui é a minha praia de nudismo, melhor pelado que exposto daquele jeito. E, mesmo que o resultado seja aquém do que eu pretenda, o exercício pode ser divertido. Este aqui está abaixo da crítica. E daí? Tenho que reconhecer: frases feitas são piores que letras tortas. Ah! Mas se o resultado for bom, posso acabar me apaixonando por mim mesmo. Hum... cara estranho. Piada repetida, Amarante! Ah! Mas posso ganhar novos seguidores. Sei não... fico me imaginando cabeludo, de barba comprida, bancando o Antônio Conselheiro do José Wilker. Porque “a República...”. E vocês todos concordando.

Registro, por fim, meu protesto contra mim mesmo: que a recorrência aqui volte a ser semanal! Por um período de cheia e que o vertedouro esteja com as comportas abertas, jorrando.

quinta-feira, 18 de março de 2010

A Moldura do Paralama

Passavam das oito da noite. Cheguei à área de desembarque do Terminal 1 do Galeão disposto a pegar o primeiro táxi que estivesse disponível. O motorista conversava com colegas, todos em pé um pouco à frente dos carros. Ele se aproximou e fiz sinal que seriam dois. O senhor queria dizer alguma coisa? Apenas que precisamos de dois táxis. Eu me despedi e entrei. Aonde vamos? Real Grandeza. Onde? Desculpe-me. Estou velho e já não tô escutando bem. Real Grandeza. Dei todas as orientações e partimos.

Real Grandeza é aquela do pardal, né? Na esquina com a Voluntários. Essa. A do Batalhão. A de Furnas, completei. Estou velho. Acho que já vivi bastante. E tenho dirigido pouco. Outro dia um passageiro me pediu para ir pra Castro Alves, no Méier. Não lembrava que rua era. Fiquei pensando e perguntei. Ele disse: a da Parmê. A rua, de repente, veio na minha cabeça.

Permaneci mudo, enquanto ligava meu celular. Sabe, eu acho que deviam pegar um estado brasileiro (desses com pouca população) e colocar todos os velhos lá. Velho só faz merda, você não acha? Não.

Meu pai tinha ligado. O taxista continuou falando sem perceber que eu estava ao telefone. Comentei que era o meu velho, mas acho que ele não ouviu. Eu quero renovar minha carteira de identidade. Ela é do tempo que eu era garoto. Se eu renovar, vem escrito: maior de 65 anos. Mas tá conservada. Meu título de eleitor também é o antigo, meu CPF... tudo bem conservado.

Fui a Buenos Aires e quase me barraram. Mas eu levei o passaporte também. Ele ficou comparando as fotos, disse que não era a mesma pessoa. Eu falei, assim bem rápido, que não tinha nada o cu com as calças. Baixinho, o cu com as calças. Ele tava lá falando castelhano e não ouviu. Pedi para chamar o superior. Aí resolveu.

No elevado, o trânsito estava um pouco congestionado. De repente, ele parou o carro, puxou o freio de mão e saiu. Voltou logo com uma peça de carro na mão. Ganhei um dinheirinho hoje. É do paralama do Corsa. Quando o carro acelera na água, ela sai e fica na poça. Quando chove muito, eu sempre acho uma. Tenho várias. Verde, preta, amarela pra táxi. Eu vendo pros colegas. Qual a cor...? Essa é preta.

Olha, tem outra ali. Não consegui ver. Ainda estávamos no elevado. Depois eu volto. Lá pra meia-noite, quando não tem movimento. Encosto e pego. Tranquilo. Dali em diante, ele ficou procurando um Corsa que tivesse a moldura para me mostrar. Por quanto o senhor vende? 50 reais. E na concessionária? 150.

Chegamos. O senhor prepara um recibo pra mim? Obrigado e boa noite. Obrigado o senhor pela sorte que me deu hoje. Até a próxima.

Em casa, encontrei a peça no Mercado Livre. A mais barata, por 18 reais.

quarta-feira, 10 de março de 2010

Os Cegos do Castelo

Vamos às listas. A primeira lista de Amarante. Uma lista tão estranha quanto aquele que dorme na tampa da caneta. Lista de deficientes visuais preferidos. Encontrados entre livros e filmes. E, se vêm da ficção, por que não do castelo?

O primeiro deles é o Cego Estrelinho, cujo conto, de mesmo nome, surgido dentre os tantos que Nane leu na faculdade, me apresentou Mia Couto. Quando seus livros, como As Estórias Abensonhadas, ainda eram publicações raras por aqui. Diria que hoje sou um seguidor.

Por falar nisso, em seguida, vem aquele que desenha a Catedral no conto de Raymond Carver, lido poucos anos depois, durante o curso de literatura do TTC da Nane, fonte e companhia de descobertas literárias.

Em terceiro, elegi Petite Croix, a menina de Peuple du Ciel, escrito por Le Clézio, premiado com o Nobel em 2008. Por isso, leitura curiosa e recente. Prosa cheia de poesia, de luz, de cores, de sons.

Poderia escolher o quarto deles em meio aos que perambulam pelo Ensaio sobre a Cegueira, de Saramago. Se tivesse lido. Como ainda não consegui colocá-lo na pilha de urgências e vontades, busquei no filme de Fernando Meirelles a solução. A quarta é Julianne Moore. Para contrariar a regra, ela vê. Aqui e ali.

Em último, não menos importante e muito conveniente ao banquete, Frank Slade. Ele carrega vestígios de um perfume que alimenta o desejo de abraçar no escuro a mulher que deita ao meu lado. Ao som óbvio do tango.

Eles quase me fazem perder o medo de, um dia, estar lúcido para entender que não posso mais ler.

segunda-feira, 1 de março de 2010

Feliz Aniversário

Eu adoro dar presentes. Prefiro os aniversários e os momentos inesperados para tentar surpreender. Além de causar surpresa, o presente precisa levar consigo um pouco de quem a provoca. Ele não pode ser casual, tem que dizer claramente: eu escolhi para você. E, claro, você tem que gostar. Só assim, o presente cumpre a sua função. Só assim, ele torna o momento especial. No entanto, colocar a surpresa, eu e você num mesmo presente pode não ser fácil.

Às vezes dá certo. Deu certo comigo há treze anos e meio. Naquele dia, eu era você e você era eu. Eu ainda estava na faculdade e estagiava em Furnas à tarde. Vindo do Fundão, deixava o carro na rua Paulo Barreto, na garagem do prédio onde ainda mora meu padrinho. Eram quase seis horas, e eu estava ansioso para deixar o estágio para comemorar meus 22 anos. Como fazia todos os dias, entrei no prédio e fui logo buscar o carro. Meu presente de aniversário estava lá. Era um bolo. O carro era o bolo. Ele estava enfeitado com balões e cartazes. Nele, estavam a maior das surpresas, você e eu. Do presente convencional, não me lembro exatamente; posso facilmente confundi-lo com o do Natal do mesmo ano ou do aniversário do ano seguinte. Daquele presente, não me esqueço. Para mim, encontrar o carro daquele jeito foi como ganhar um buquê de rosas e um cartão com vários outros dentro. Porque, se as rosas murcham, os balões esvaziam... E, como os cartazes, o cartão acaba no fundo de alguma gaveta qualquer. Fica com a gente o que precisa ficar: a lembrança da intenção, do carinho e do amor. Ficou comigo a lembrança de um amor de fato que apenas começava.

Hoje, eu sou eu. Mais uma vez, meu coração bate.

Hoje, primeiro de março, você é você. Feliz aniversário.

domingo, 21 de fevereiro de 2010

Cachinhos de Ouro, por Alice

Agora é a minha vez, pai. Era uma vez... o papai tá lendo jornal e a mamãe mexendo nas flores. O filho não está. Aqui ela lê as imagens. O ursinho é um traço pequeno, quase imperceptível. O livro é em inglês. Ela sabe, mas isso não faz diferença. Ela apenas identifica as letras. Mesmo assim, ensaia alguns sons e logo retorna ao português. Por que tem essas janelas? São quatro e ela mesma encontra explicação: da mamãe, do papai, do filho e da menininha. As duas primeiras páginas valem pelo livro inteiro. Ela ainda mantém a concentração. Tinha cadeira grande, cadeira média, cadeira do filho. E as camas. Agora ela conta a história, sem detalhes, com aparente pressa. Eu ajudo: o que eles iam tomar? Sopa. Eles saíram. A caixinha de ouro sentou na cadeira do papai. Corrijo: Cachinhos, de cabelo enroladinho. A cadeira dele é dura. A da mamãe é macia, a do filho é boa. E ajudo de novo: o que aconteceu com a cadeira? Ela quebrou. Depois, ignora a temperatura das sopas. Tenta o inglês de novo, algo como somebody to love. Com ritmo (Queen, graças a Glee). Caixinha dormiu. Vira as páginas e estala a língua. O que aconteceu, filha? Ela dormiu, pai. Já disse. E os ursos? Eles chegaram. O pai, a mãe e o filho. Aí... ela estala a língua de novo. Aí... ela cansou. A história é interrompida. Ela está satisfeita, abraça o livro e já aceita dormir. Mas não dorme. Eu saio do quarto. Ela ainda conversa com Caixinha, que saiu correndo da casa dos ursos. Ela pede música e eu volto. O Hoedown começa a tocar. Uma hora depois, a música para. Ela conversa com outros amigos. Eu vou à cozinha e abro a geladeira. Sinto falta do potinho de iogurte que restava. Alice e Cachinhos estão no quarto dividindo a mesma colher.

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Bendita Quarta-feira

Bom dia. Vamos consultar o roteiro dos blocos de hoje? Terça-feira de carnaval e de muito calor. Mais um dia daqueles! Muita animação? Nenhuma! Prefiro frio. Não gosto de multidão. Gosto de samba, mas não do que toca no carnaval, quando pouco se ouve além das marchas. Preciso saber dos blocos para fugir deles. Andar em paz pela cidade. Sem trânsito para chegar à casa meus pais. É aniversário do meu irmão e temos um almoço com hora marcada para terminar: antes dos blocos.

Saibam que, apesar da propaganda em torno da repressão, o cheiro de mijo está em toda parte. Junto ao portão da garagem, diz o porteiro, as meninas se agacham e mal se dão conta da câmera. Ele se diverte. É o big brother daqui. Da mesma forma, um lixo.

No carnaval do Rio, samba-enredo, alegorias e adereços são iguais todos os anos. Os destaques também: são os gringos que vem para se divertir e nada acrescentar, são os jogadores de futebol insinuando que a vitória perdoa qualquer irresponsabilidade, são as celebridades bissextas das comunidades.

Pra quem não quer ou não pode enfrentar horas de estrada, a melhor opção é ficar em casa, com ar-condicionado ligado, brincando de cinema. Ou dividir com amigos queridos, exilados que vêm matar saudades do Rio, o desconforto de um baile infantil e a busca por uma mesa de bar, uma daquelas para jogar conversa fora.

Bendita seja a quarta-feira de cinzas.

sábado, 6 de fevereiro de 2010

Antes do Sono

Estávamos os três no quarto dela, arrumando os livros. Ela aceitou a idéia de dar alguns para quem não tem, ou para bebês que ainda não sejam uma menina grande. Separamos em pilhas os que ela não queria mais e os de que mais gosta. Quando viu a bruxa Fofim, não hesitou: desse o papai gosta.

Ela dorme com música. Antes da música, quando já estou em casa, lemos um livro. Se não, mamãe canta para ela e, depois, deixa o CD tocar. Quando a vez é minha, procuro interpretar as histórias que leio. Como não consigo esconder as minhas preferências, ela rapidamente aprende o meu gosto. Mas, respeito o dela. Sejam princesas ou princesas, leio com voz de sapo, lobo e, claro, princesas.

Quando termino minha leitura, ela pede a vez. Repete a história do seu jeito, estalando a língua entre as frases, narrando com incontáveis “aís”. Faço perguntas para ajudar. Ela perde a paciência e fecha o livro pedindo que eu conte outra. Porém, é hora de dormir.

Minha maior dificuldade é convencê-la de que, com a luz já apagada, eu posso ainda contar histórias da minha cabeça. Muitas vezes, antes mesmo que eu consiga dar a opção, ela corta o meu barato: papai, da sua cabeça não! Então, é hora de dormir.

Lembro-me do tempo que minha avó, quando meus pais não estavam em casa, posicionava a cadeira estrategicamente no corredor e contava histórias da cabeça dela para mim e minha irmã, que dormíamos em quartos diferentes. O personagem principal se chamava Pedro. Era um modelo de criança. Pelo menos, não tinha os nossos defeitos.

Já a vaca Vitória era a preferida da outra avó, a mesma que gostava das balas e de pipoca. E, depois que a luz apaga aqui, isso é o melhor que consigo: fazê-la rir do pum na panela e acabar a história, porque já é hora. Saio do quarto, o CD toca e ela canta, às vezes dança, até dormir.

domingo, 24 de janeiro de 2010

Os Monstros de Alice

Boo! Alice nunca teve problemas com o Mike, Sully ou mesmo Randall. Ela gosta muito da Imperatriz da História sem Fim, mas não esconde a tristeza quando Atreyu fere mortalmente o lobo. Em sua primeira crise de identidade, disse que não gostava de seu rosto. Eu quero um rosto igual ao da Hermione, mãe. No entanto, Alice não nega sua paixão pela desvairada Bellatrix.

I’m very scared for this world

Levamos Alice para nos ajudar a descobrir onde vivem os monstros. Tive que assinar um termo de responsabilidade para entrar com ela no cinema. Ok. O filme é para adultos que se divertem se escondendo na cabeça do John Malkovich. O filme trata da nossa essência selvagem. Mas ela não tem medo e é capaz de entender o que basta para sua idade. Max tem um acesso de raiva e chega a morder a mãe. Ele tava fazendo pirraça, né? Pena que não viu a metade final. Febril, acabou adormecendo no colo da Nane.

Here’s a scene
You’re in the back seat laying down

Alice estava no carro quando um motoqueiro irritado socou o retrovisor do vovô. As motos foram talvez os primeiros monstros. Depois veio o Barney. Ou melhor, alguém vestido de Barney numa festa. E outros vestidos de Pablo e de Tasha. E mais ainda, no palco. Quero sentar bem longe, pai. Ela sempre soube que havia gente ali (nós mostramos, ela viu).

I think about this world a lot and I cry
And I’ve seen the films and the eyes

Agora Alice tem medo de sangue. Sobra também para quem sangra no cotovelo ou aparece com o olho roxo. Ela sabe que a violência dói na alma também. Evitamos falar de sangue. Vamos, então, pra casa da vovó? Não, por ora, Alice não quer. E da outra vovó? Também não. As vovós que venham até aqui. Ela está com saudades, mas quer ficar em casa.

She is so young and old
I look at her and I see the beauty

Você vai morrer papai? Você vai morrer mamãe? Eu não quero ficar velhinha. Filha, estamos aqui.

Os monstros de Alice batem, choram, sangram e morrem.

...you are everything

domingo, 17 de janeiro de 2010

Carta para Alice

Alice,

Faz tempo que quero escrever para você. Contar minhas histórias, expor minhas idéias e minhas angústias. Tudo para você ler um dia. Até hoje, porém, apenas em pensamento escrevi e reescrevi os primeiros parágrafos. Repetidas vezes, no caminho de volta do trabalho, contei pra mim mesmo sobre o dia em que você entrou em casa pela primeira vez.

Tentando ser preciso, acho que foi no dia 11 de novembro de 2004. Dia em que sua mãe abriu a porta com um sorriso improvável. Um sorriso enorme, do tipo que começa nos olhos. Era dia de semana e ela ainda dava aulas de inglês. Chegava tarde, depois das 9h da noite, muito cansada... por isso, o sorriso era improvável. E o sorriso começava nos olhos porque você era parte dele. Eu sequer desconfiava.

Sua mãe parecia excitada, radiante... você estava nos nossos planos há alguns meses. Mas aquele era também um mês improvável. Mês de um amor só, de uma única chance para você nascer. Sua mãe estava excitada, radiante... tinha guardado pra si, durante quase uma semana, o resultado do teste de farmácia e a expectativa da confirmação.

Quando sua mãe abriu a porta, vi você chegar. Mas não sabia que era você. Ela se sentou no sofá sem desfazer o sorriso. Disse que tinha um presente pra mim. Um dia antes, ela tinha me dado outro presente. Um daqueles presentes sem motivos, sem embrulho e, talvez por isso, delicioso. Era um livro (diferente apenas porque tinha sabor). Segundo ela, daquela vez, o presente vinha embrulhado e só poderia ser desembrulhado dali a alguns meses.

Ela precisou colocar o dedo no umbigo para ficha cair. “Está aqui”. Você não sabe o que é ficha, né? Era uma moedinha que a gente usava para telefonar da rua. E a ficha, naquele dia, era a peça do quebra-cabeça que faltava para o bobão aqui entender que seria pai e que nós seríamos três a partir de então.

Demorei mais de cinco anos para escrever. Tempo suficiente para lembrar os detalhes daquele dia. Tempo suficiente para o texto amadurecer por aí e esperar pela sua leitura. Por tudo isso, temos que agradecer a um certo pai crônico.

Ainda assim, acho que demorei muito tempo para escrever sobre o dia em que você abriu a porta de casa pela primeira vez; sobre o dia em que sua mãe chegou às 9h da noite de um dia comum como a mulher mais feliz do mundo; sobre o dia em que eu soube que seria seu pai.

Beijinhos.

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

Das Aventuras em Paraty

Escrever é uma aventura. Vivemos para contar, muitas vezes sem saber que caminhos escolher, quase sempre sem ter ideia de onde vamos chegar. Uma aventura precisa de gente. Em Paraty, temos 14 adultos, 7 crianças e muitas vontades para coordenar. Então vamos colocar toda essa gente numa pequena escuna e falar de uma segunda-feira de sol e chuva.

Escuna colorida, Paz e Amor. Muita gente branquinha com medo de sol. Alguma criança (a minha) com medo de peixe. Todos curtindo a paisagem, sem espaço (além do mar) para fugir das diferenças. E eu, torcendo para um navio pirata aparecer e tesouros encontrar. Só para contar uma aventura de verdade. Mas, voltando a realidade, vamos mergulhar.

Não se trata de mentira. Alice tem medo de peixe, mas aceita usar o papai de prancha para chegar à praia. Coragem momentânea. Porque os peixes estão lá e, se comem pão, ai de minhas perninhas! Diego é um jedi na água. Para ele, o macarrão laranja é uma speeder bike; o azul, um sabre de luz. O titio é o inimigo. Bad Guy. As crianças se esbaldam e eu chego à conclusão de que preciso de aulas com Mestre Yoda. É muita princesa, muito batom... Mau sapão!

Das praias e das ilhas, as fotos dizem mais que as palavras. Então, vamos voltar e esperar que caia sobre nós a chuva que vemos no horizonte. Água que traz frio, Paraty de volta e decisões equivocadas. Ainda debaixo de chuva, vamos quatro homens buscar quatro carros. Enfrentamos as ruas alagadas do estacionamento ao píer e, mais uma vez, as ruas alagadas no retorno à pousada. Desafiamos os paralelepídedos, que batem com força. Mal vemos os quebra-molas que nos desafiam.
 
Atravessamos o último trecho com água sobre as rodas, acelerando fundo em primeira marcha. E comemoramos, enfim.

Bruno acerta em cheio: a diferença entre os adultos e as crianças não está na intensidade da vibração, mas na expressão do desejo de repetir... “De novo!”.

Pra mim, chega.