sábado, 21 de maio de 2011

X e Y

Sentávamos em torno da mesa redonda, de costas para a janela que dava para o mar, ao lado de um espelho enorme que ocupava quase toda a parede da sala de jantar na casa da minha avó. A diferença de idade não era tão grande, mas eu era o professor – particular, de matemática. Professor ainda estudante. A aluna vestia de preto sua adolescência, seus motivos e mistérios. Tinha olhos de quem pouco dormia. Era uma menina muito compenetrada, prestava uma atenção enorme àquilo que eu dizia, exercitava as fórmulas da 6ª ou 7ª série sem reclamar. Vinha sempre acompanhada pela avó, uma senhora alta, muito bem vestida, que permanecia sentada na poltrona da sala de estar durante toda aquela hora de números e variáveis. A avó passava o tempo lendo, um livro que depois me deu de presente. E não foi o único: ganhei também outro livro, um de receitas de coquetéis, que deve estar guardado ainda no quarto ao lado da mesma sala espelhada que abrigava a mesa redonda.

Foram alguns meses de insistente silêncio até que resolvi provocar. Eu queria vê-la reagir, contar alguma coisa. Para conseguir o que queria, levei à mesa alguns de meus poemas. Interrompi a aula para mostrar um deles. Se por respeito apenas, eu não sabia ainda, mas ela mostrou interesse. Talvez tenha lido mais de um e, dando-me certeza, falou de si pela primeira vez: ela também escrevia poemas. Ela os trouxe na aula seguinte. Os temas eram da cor que ela vestia. Lembro que havia uma aranha no meio dos versos.

Não foi a única vez que intrometi poesia durante uma aula de matemática. O outro aluno era ainda mais silencioso (ao contrário dela, o silêncio dele começava nos olhos, os mesmos que se recusavam a me encarar). Entre nós, ele impunha uma distância quase cínica. Certa vez, com a aula chegando ao fim, ele quase cantou: vou-me embora, vou-me embora... Antes que me derrubasse com as evidências de uma aula entediante, perguntei se ele iria para Pasárgada. Pela primeira vez, ele sorriu também com os olhos. Voltei a perguntar: você é amigo do rei? Veio então outro sorriso, ainda maior que o primeiro: eu sou o rei. A partir daquele dia, as aulas passaram a ser realmente divertidas, até para mim, o bobo da corte. Ele foi meu aluno em sala de aula também, época em que li o livro que ele mesmo escreveu.

Há poucos anos, encontrei o rei de Pasárgada no Orkut. Contrariando as minhas expectativas, ele estudava Física. Dela, ficou apenas a recordação da avaliação que fez da minha aula e a maior recompensa que tive como professor particular em qualquer tempo: se me faltava experiência, aquela era uma hora de paz.

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