domingo, 23 de novembro de 2014

O Mundo Rosa de Alice

Apago a luz antes de sair do quarto. Mal ponho o pé no corredor, Alice me chama. Pede para eu ficar um pouco mais. É tarde, mesmo para uma sexta-feira. Imagino o óbvio: quer encher a garrafinha de água. A luz que vem do corredor, porém, me ajuda a entender que não é óbvio: Alice abre espaço na cama, afasta o cobertor, quer conversar.

É tarde, mas eu me sento na beirada do colchão, quase na madeira. Passamos o dia juntos, mas ela tem uma pergunta que ainda não teve oportunidade de fazer porque hoje só fizemos estudar:

— Não entendo isso, pai. — Começa sempre assim. Como eu, Alice gosta de preâmbulos, de esticar as perguntas. — Não entendo por que sempre falam que o homem construiu as coisas. Não pode ser uma mulher?

— Claro que pode — não hesito com a resposta, mas o assunto me surpreende. E se é assim, a hora de dormir deixa de ser importante. Quando me deito e puxo o cobertor, ela entende que pode continuar.

— Então, por que não falam que as pessoas... — Alice encontra sozinha um substantivo neutro. Não chega a terminar a pergunta porque já tem opinião formada. Parece que precisa apenas de uma confirmação.

— Você está certa — respondo e fico pensando no quanto ela está certa. — É só uma maneira de dizer, mas você está certa. — repito para mim e para ela.

Ainda que não pareça ter sido proposital, fico orgulhoso por ela ter me escolhido para essa conversa.

Por sua vez, satisfeita, Alice troca de assunto. No entanto, agora tem dificuldade de formular a pergunta. A dúvida surge de uma forma desajeitada, quase impossível de reproduzir. Mais ou menos assim:

— Quando a gente está no céu, antes de nascer... Em 1960, por exemplo, eu ficava vendo vocês lá de cima?

— Ninguém sabe, nem nunca voltou no tempo para saber. — É a melhor resposta que me vem à cabeça. E não me preocupo em esclarecer que naquele ano também estávamos em algum lugar desconhecido, talvez na imaginação de nossos pais.

A conversa dura ainda alguns minutos até que ela dá sinais de rendição. Saio do quarto pensativo, tentando adivinhar como é o céu que Alice imagina e qual a cor do mundo em que ela vive. Escolho o rosa para o meu título, deixando-a livre para construir o seu e pintá-lo da cor que quiser.

quinta-feira, 6 de novembro de 2014

O Quadro Branco

O caminho de volta do trabalho, especialmente aquele que faço andando entre o metrô e a porta de casa, serve como um raro momento de reflexão no meu dia. É hora em que penso nas coisas de casa, naquilo que falta na geladeira, no almoço que pretendo fazer no sábado e nos estudos de Alice.

A ideia, portanto, não era nova, há algum tempo já me acompanhava na minha caminhada do fim de tarde. A decisão, porém, veio de supetão, porque chegou no instante exato em que eu passava na frente da papelaria ainda aberta.

Eu pedi um quadro branco, canetas coloridas e um apagador. A moça veio com duas opções de tamanho. Fiquei com o quadro maior, de 50 cm de altura por 70 cm de largura. Trouxe também diversas canetas. Escolhi as recarregáveis e o primeiro apagador que ela ofereceu.

Quando abri a porta de casa, fui recebido por olhares curiosos da filha e da mãe. Disse a Alice que, a partir daquele dia, iríamos estudar assim: sentados no chão com o quadro encostado na parede, as canetas espalhadas e toda minha vontade de tentar despertar nela o interesse pelos estudos.

E se o sucesso não foi absoluto, a novidade trouxe resultado: Alice deixou de lado a resistência habitual. Algumas vezes, chega a pedir para estudar. A continuar desse jeito, está muito bom. Também para mim: gosto mesmo de ensinar, curtir o tempo com ela, as letras e os números; Tiradentes, as planícies y los ojos negros – Alice adora espanhol.

As dúvidas que me restam dizem respeito ao que passa por aquela cabecinha: o que absorve de fato daquilo que tento transmitir (e não me refiro aos conteúdos); como vê a minha insistência e as minhas orientações. Sobre tudo isso, só tenho uma pista: um livro que ela escolheu no último domingo, O livro que explica tudo sobre seus pais, de Françoize Boucher.

Se ainda não tem opinião formada, se não absorve tanto quanto eu gostaria, se tem dúvidas, assim como eu, que importa? Alice já sabe onde procurar as respostas.

domingo, 31 de agosto de 2014

Antes dos 40

Antes dos 40, o aniversário de 100 anos da Mami.

Voltar à França na primavera, desta vez com Alice.

Fazer o legado da minha avó chegar à minha filha. E ter a mesma emoção de ver a Torre Eiffel pela primeira vez; escolher um queijo na vitrine e tantos macarons quantos ela quisesse; encontrar o Quasímodo na cripta e Jean Valjean nos esgotos, apesar do mau cheiro.

Voltar à França e ficar. Pela primeira vez, sozinho.

Deixar mulher e filha no aeroporto de Paris, e seguir num carro vermelho, atrás de falésias, queijos e história. Escolher o caminho dos números para transformá-los em letra: os meus 40, os 100 dela e os 70 do desembarque na Normandia.

Começar pelas falésias de Étretat e sonhar, comendo ostras. Observar as marés; fotografar os arcos, os cascalhos e o lodo.

Continuar pelos museus que não nos deixam esquecer o rastro da intolerância e a bomba atômica; pelas praias e cemitérios militares onde descansam os soldados desconhecidos; pelos diversos castelos de Guilherme, o Conquistador; e pelos queijos em Livarot.

Terminar às margens do Sena, para me reencontrar e retornar à minha casa, antes dos 100.

Em 14 de junho, o centenário, as fotos de viagem, a medalha de Joana D’Arc que comprei em Rouen, muitos beijos dados e recebidos, um bolo e duas palavras: Veuve Cliquot.

Antes dos 40, foi tudo o que consegui fazer.

domingo, 16 de fevereiro de 2014

Disney, 1986

Meu pai tinha um caderninho onde anotava as despesas de viagem. Fazia as contas depois de passar pelo 7-Eleven mais próximo para comprar o nosso café da manhã do dia seguinte: pão de forma, patê, geleia, leite ou achocolatado e, com sorte, algum iogurte.

Era dinheiro contado em tempos difíceis, de inflação galopante, de dólar muito alto. Pela primeira vez, ele abria mão de viajar com a família inteira, que costumava se apertar numa Brasília bege para curtir o mês de férias por aí, para chegar a diversos destinos sempre por caminhos diferentes: Foz do Iguaçu, Porto Alegre, Salvador. Para Orlando, fomos apenas eu, ele e minha irmã. Daquela vez, de avião, com escalas em Brasília, Manaus e Curaçao.

Minha mãe acabou ficando em casa com o meu irmão mais novo.

Tenho poucas recordações dos parques, alguma do Epcot, quase nenhuma de personagens e muita daquela tensão constante que meu pai carregava sobre os ombros. Os motivos podiam ser as contas, a responsabilidade solitária pelos filhos pequenos, os brinquedos mais radicais (de que também não gosto), as falhas na organização da operadora da excursão.

Lembro-me, por exemplo, que não fomos a Bahamas, embora estivesse programado.

E que, numa daquelas noites, Dominique se perdeu no hotel.

Por outro lado, houve momentos de gargalhadas por causa da voz da Srta. Topisco, da série A Gata e O Rato; houve a divertida torcida pelo time vermelho no jantar do Medieval Times.

Houve também uma noite de quase zero grau em Miami.

A mais clara memória que guardo, no entanto, é da visita ao Cabo Canaveral, da caneta que funcionava no espaço (meu brinquedo favorito) e da Challenger. Dela não pudemos nos aproximar porque seria lançada dali a alguns dias. Na foto que tiramos, o ônibus espacial é só um traço no horizonte.

Soubemos da explosão quando estávamos em Miami. O acidente que matou sete astronautas, inclusive a primeira civil a participar de uma viagem ao espaço, aconteceu no dia 28 de janeiro do ano em que fui a Disney – segundo a pesquisa que fiz agora na Internet, exatamente aquele da noite mais fria.

quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

O Que Eu Faço Agora?

É a primeira vez que minha filha tira longas férias de verão. A geração de crianças da qual ela faz parte, que passam seus primeiros anos de vida em creches, não conhecem o ócio. Além disso, estão tão acostumadas com atividades definidas e orientadas por adultos, que não sabem o que fazer no tempo livre. Por isso, Alice repete com frequência a mesma pergunta: o que eu faço agora?

Como Nane trabalha em casa, sobra para ela dar alternativas: ler o livro que está ainda pela metade, brincar com as bonecas que estão esquecidas numa caixa, ouvir uma música diferente daquela que ela canta todos os dias, escrever no diário sobre o que anda fazendo de mais interessante. Alice tem que aprender a decidir sozinha. Se as opções que a mãe dá não servem, restam os pequenos vícios: o joguinho do iPod, a série que passa no Disney Channel, o filme que ela já viu mais de cinco vezes.

Normalmente chego do trabalho em torno das sete da noite. Só então posso tentar substituir a Nane na condução das atividades da criança. Muitas vezes não adianta, Alice continua preferindo chamar a mãe em quase todas as situações, ou simplesmente dizer mamãe sem motivo algum. Há momentos, porém, que a sugestão de um filme pode fazer a diferença. E a pequena cinéfila costuma topar as minhas propostas.

Em dezembro, depois de vermos Ponyo, animação japonesa do mesmo diretor de A Viagem de Chihiro, escolhi A Vida é Bela porque queria saciar um pouco a curiosidade da minha criança sobre guerras. Em outra ocasião, vimos Peixe Grande (embora não tenha sido intencional, foi interessante ver dois filmes seguidos que tratam do relacionamento entre pai e filho). Por fim, para servir como antídoto para Violettas e Anittas, tivemos aulas com Jack Black na sua Escola de Rock. E parece que deu certo: ela fez questão de repetir o filme na mesma semana.

Quando não quer ler antes de dormir, se não estou muito cansado, leio junto com ela. Se não tenho forças, tenho preferido contar as histórias que ando lendo. Vem dando resultado também: ela não só quer saber mais sobre a menina Cosette, como quer que eu veja as versões de Os Miseráveis disponíveis no Netflix para decidirmos se ela pode ou não assistir.

Agora, enquanto as meninas viajam pelo mundo encantado dos parques da Disney, onde falta do que fazer não é um problema, e eu curto alguns dias sozinho, tenho pensado muito sobre as necessidades dela e as escolhas que temos feito. Nestes dias solitários, é a minha vez de encarar um tempo livre a que eu não estou mais acostumado. E, por isso, venho repetindo ao fim de cada texto que escrevo, de cada filme que vejo, de cada capítulo que leio, o mantra preferido de Alice: O que eu faço agora?

O que eu faço agora?

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Tapioca com Coco

Em nosso segundo dia de passeios pelo Centro do Rio de Janeiro, não havia ansiedade da minha parte. Eu já sabia desde a noite anterior o que queria fazer. Alice, porém, não escondia sua resistência às minhas longas caminhadas e hesitava. Não dava sinais de querer sair de novo com o seu malvado favorito. Só aceitou meu convite quando soube que iríamos de táxi.

Depois de um almoço improvisado em casa, chegamos ao Espaço Cultural da Marinha às 13 horas, um pouco tarde para conseguir os ingressos do passeio do rebocador Laurindo Pitta pela baía de Guanabara. Como esta primeira opção não deu certo, acabamos decidindo pela visita à Ilha Fiscal.

Enquanto esperávamos a hora de partida do saveiro, Alice aproveitou para matar a curiosidade de conhecer um helicóptero por dentro, coisa que disse só ter visto nos filmes. Depois, fomos até o navio-museu Bauru, que foi explorado por ela com muita animação, sempre me puxando pelo braço. Embora estivesse cansada das fotos, intercalando rabugices com sorrisos, consegui registrar o que, de certa forma, era um encontro dela com o vovô Edmundo, que era oficial da Marinha e nenhum de nós dois chegou a conhecer.

Quando entramos no saveiro, recomeçaram os resmungos. Dessa vez, por causa do colete salva-vidas (que estava apertado e, não havia como discordar, aumentava o calor). Felizmente, o percurso era curto e logo alcançamos a Ilha Fiscal, onde uma guia nos esperava para uma interessante aula de história, em que o ponto alto é o último baile do Império.

Durante a visita, Alice fez seus comentários inusitados: observou, por exemplo, que a imagem da Princesa Isabel no vitral não parecia a de uma menina. Além disso, se impressionou com as toneladas de camarão servidas no baile e com as roupas pesadas que as moças vestiam na época. Também se divertiu muito com a subida pela escada caracol, o pouso dos aviões no Santos Dumont e o lanchinho que fizemos contra o vento.

No caminho de volta, enquanto reclamava mais uma vez do colete, sugeri que, em outra oportunidade, fôssemos de barca até Niterói. Ela perguntou se lá, do outro lado baía, haveria alguém nos esperando para explicar as coisas. Quando respondi sorrindo que não, ela também sorriu antes de desviar o olhar e sussurrar: ainda bem. Já em terra firme, Alice quis voltar ao Bauru e, em seguida, conhecer a réplica da nau do descobrimento.

Saímos da Marinha por volta das 16 horas em direção à Uruguaiana, onde pegamos o metrô. Quando chegamos à Praça Nelson Mandela em Botafogo, ela percebeu que enfrentaria nova caminhada e fez uma careta de desagrado. No entanto, logo entramos em acordo: Alice trocou seus resmungos por um beiju de tapioca sem manteiga, recheada apenas com coco ralado.

domingo, 12 de janeiro de 2014

O Malvado Favorito

A ansiedade me surpreende no ócio das férias obrigatórias e me faz brigar com o tempo que, afinal, tenho livre. É, porém, uma liberdade que não parece minha.

Antes que eu perca mais tempo e me distancie de fato dessa liberdade, pego minha filha pela mão e, acariciando seus dedos, proponho um programa diferente. Vamos para o Centro, aproveitar o que a nossa cidade tem a oferecer, apesar do calor. Deixo a ansiedade no ponto de ônibus que se esconde no Mergulhão da Praça XV para afastar qualquer possibilidade de contágio, e empresto a minha liberdade à vontade dela. Eu indico, e Alice me conduz.

O Paço Imperial é, para ela, história recente. Faz pouco tempo que aprendeu sobre D. João VI, os Pedros e seus impérios. Durante o ano que passou, eu mesmo me aproveitei das provas de história da Alice para revisitar essas figuras nos livros de Laurentino Gomes. Entre agosto e setembro, emendei 1808 com 1822, e me senti revigorado assim.

Dentro do prédio colonial, Alice pede para abrir as portas e me puxa (por aqui, pai). Confessa que quer aprender mais, para ser uma aluna ainda melhor. Tento mostrar o mapa que está na parede com a indicação das colônias portuguesas, mas ela se recusa (já sei, é o mapa do mundo). Logo que saímos, mostro o Palácio Tiradentes e a estátua do próprio, mas ela prefere entrar nas igrejas: São José e Nossa Senhora do Carmo. São cinco minutos em cada uma, até a missa começar na primeira e os turistas invadirem a segunda.

Já passa do meio-dia. É natural que Alice esteja com fome. Quer o celular para conversar com a mamãe enquanto dá umas poucas garfadas. Deve ser o calor – porque eu também deixo metade do prato.

Saímos do restaurante para ir ao CCBB. A exposição de Yayoi Kusama pega a menina de jeito. Quer ver tudo, experimentar, tirar fotos e voltar com uma amiga – de preferência, amanhã.

Depois de passar na Cavé para eu comer um pastel de Belém e ela, uma fatia de pudim, voltamos de metrô. Paramos no Largo do Machado para caminhar até o Fluminense. Não é perto. Ela reclama, mas resmunga feliz. E eu ganho o apelido que dá nome à crônica: Você é o meu malvado favorito, pai.