domingo, 27 de novembro de 2011

Brechas

Saio para almoçar sozinho, olhando para o chão, procurando letras entre os meus passos. Nada, pois, além de asfalto, pedras portuguesas e alguma sujeira. Uma vez por semana almoço só. A mesa está sempre disponível naquele bistrô. Eles sorriem quando abrem a porta. Já sabem que não vou beber – perguntam quase pedindo desculpas. Informam a massa do dia, mas eu escolho um prato de picanha. Quero a carne preparada no sal grosso, tal qual descrito na lousa. Ela vem bem passada, com arroz soltinho, compactado com um traço de salsinha crespa no topo. Farofa de ovos e aipim frito ao lado. Feijão na tigela. Procuro, em vão, poesia entre garfadas.

Preciso estar sozinho para pensar. Ou esquecer. Quero distância dos pratos empilhados, das comidas perfiladas, dos braços atravessados e da balança. Prefiro um prato caseiro que chegue à mesa andando, como eu. Pago mais por isso, mas confiro elasticidade ao tempo e acabo pensando nas letras, quase esquecendo o estresse. Porém, existe algo de inevitável nos números: o trabalho ocupa tantas horas do meu dia, que não consigo deixar de impor à farofa um talude de 45 graus e fazer dela uma barragem de ovos que, por sua vez, contém o feijão que verte da minha colher. O garfo desconstrói a engenharia feita de grãos brancos de arroz que tombam sobre o caldo escuro. E quando cravo os dentes no minúsculo galho de erva, o paladar reclama.

Demoro com a carne para curtir o sabor. Mas separo a gordura, que resta ao fim da refeição com o excesso de farofa e os vestígios de feijão. Eles sabem também que não vou escolher um doce, que vou recusar o café – perguntam, de novo, quase pedindo desculpas. De repente, tenho pressa porque quero esticar ainda mais o tempo. Peço um par: a conta e a máquina (vou pagar com o cartão). Chegam quase juntos. Quando saio, os mesmos sorrisos se despedem e sigo procurando poesia, agora no horizonte. Não vejo nada além do movimento caótico de carros e pessoas, mas eu sei bem aonde vou. Compro um mate na esquina, com o camelô, antes de chegar ao meu destino: a livraria.

Lá procuro livros a esmo. Invento presentes, renovo desejos, revisito capas e sensações. Aumento as brechas da rotina esticando o tempo. Contudo, a reação é tão violenta quanto a minha vontade de ficar: o tempo elástico me devolve aos números. Sobre a mesa, as plantas, os relatórios, a máquina de calcular e a escala permanecem onde estavam. Com a lapiseira, desenho letras entre cotas e teclas. Eu ainda me divirto, fazendo cócegas nos números, até o meu corpo reagir ao grito da rotina: o primeiro toque do telefone me nocauteia.

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Entre Amigos

Pensei em você assim que acabei de ler o conto de Cortázar. Começa com uma briga. E eu achei que a sua vida recomeçaria assim, depois de uma briga. Você levou a pior, levou um soco covarde, por trás, não foi? Fomos todos para o hospital: amigos em quantidade – eram tantos que seu pai fez uma lista de presença. Guardo comigo a foto que tirei enquanto você dormia para eu não me esquecer das cores do seu rosto naquela noite, antes da operação.

Estavam todos lá, no hospital, inclusive aqueles com quem treina a arte de se defender. Para mim, um dos problemas esta aí: qualquer arte marcial inevitavelmente aproxima o lutador da violência. A combinação de todas elas não diminui o risco. O limite é tênue. Aprendi nas aulas de judô que fiz quando era criança que o equilíbrio é dado pela disciplina e pelo respeito: no início e no fim das aulas fechávamos os olhos por alguns segundos, fazíamos uma reverência ao professor e outra a uma fotografia imaginária do mestre Jigoro Kano.

E o seu mestre fez o que tinha de fazer: você se lembra do esporro?

Na história que li, Planck deixa o adversário no chão. Depois, suas mãos não param de crescer. Elas pesam como as suas, que ainda não sabem onde se segurar. As mãos deles pendem quase inertes, arrastam-se no chão. As suas também, mas permanecem fechadas como se ainda quisessem bater, tivessem contas a acertar. Com quem? Seus pais? Eles não merecem passar por isso. Seu algoz? Ele merece ser esquecido.

O protagonista do conto encontra enormes dificuldades para abrir portas e passar por elas. Resolve procurar um médico. Você deveria procurar ajuda também. Até bem pouco tempo, eu me achava capaz de resolver tudo sozinho (era pior, porque as minhas dificuldades não eram tão transparentes como o que acontece com as suas mãos). Perdi a minha vergonha na marra. Perca a sua: peça ajuda. Você é querido, tem amigos... não pode deixar que suas mãos fiquem maiores que o seu coração.

Acho às vezes que há medo no seu olhar, que a vista que você quase perdeu talvez não enxergue mais. Porque ela parece confundir as coisas. Não se deixe acabar como Planck: quando volta a si, não sei se ele se deixa confundir ou quer se enganar: conclui que apenas em sonho implorou para o médico arrancar as mãos que cresciam. Em seguida, quando quer brigar de novo, só lhe restam os cotocos.

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Por que Não Mais que Sete?

Entrei e o restaurante se transformou em máquina do tempo. A cada passo na escada, os anos retrocediam. Os degraus me levavam à escola (e a escola se chamava Degrau). Nane e Alice me acompanhavam para não me deixar perder o rumo da viagem: o presente me dava equilíbrio.

Quando cheguei ao terceiro andar, Peggia e Adriane já estavam sentadas à mesa como duas crianças comportadas, os olhares ansiosos. As fotos que Peggia se apressou em mostrar deram rumo à conversa: a primeira comunhão em 1982, o pátio do recreio ainda sem cobertura. Adriane lamentava a ausência da filha, também Alice. Com febre, tinha ficado em casa com pai. A coincidência dos nomes pode ser uma pista de um imaginário comum: livros e sonhos de criança.

Assim que chegou, Joaquim já se chamava Kiko de novo. Trouxe o presente com Solange, mas deixou as três crianças dormindo em casa. Aninha apareceu com Bruno, Bernardo e as mesmas bochechas das fotos. Kiko e Aninha são pedaços de infância a que me agarrei para sempre, mesmo depois que a turma se separou, no fim de 1988, quando tivemos seguir novos caminhos em outros colégios.

O álbum com fotos da formatura da oitava série que encontrei na casa de meus pais rodou a mesa. Naquelas fotos antigas, desconfortáveis em corpos adolescentes, estávamos lado a lado, encostados em uma das paredes brancas do pátio da escola, sorrindo ou experimentando poses. Estávamos também na Igreja Santa Cruz de Copacabana, bem arrumados e compenetrados. E no play da Rua Martins Ferreira, o mesmo das nossas festas com gel e brilhantina.

Responsável pela realização do encontro, que aconteceu apenas um mês depois da criação do grupo no Facebook, Renato chegou com Fernanda, suas novidades e a vontade de estar junto de novo. Marcelo quebrou o gelo, trouxe o Projac com ele, e o encontro se transformou numa animada zorra de flashes.

Ali, as lembranças mais inusitadas se misturavam aos estresses mais óbvios do nosso dia-a-dia; passado e presente conviviam como se nunca tivéssemos deixado de nos encontrar, como se o cinema Condor ainda existisse, e um hambúrguer com refrigerante no McDonald’s da rua Hilário de Gouveia nos satisfizesse. Éramos goonies transformados em hobbits: como Sean Astin, guardávamos as mesmas feições infantis.

Éramos apenas sete naquela noite. Engraçado, isso me faz lembrar que, em algum bimestre de um ano qualquer, lemos um livro para escola que se chamava assim: Por que não mais que sete? Se não questiono, desejo: por que não mais? Haverá outros encontros, tenho certeza. E alguns virão de bem longe para matar saudades de um tempo que não se perdeu.

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Livros Autografados

A caneta saiu da tampa em um saque. O blog era a bolinha e o tênis, a metáfora. Dois anos depois, Amarante ainda joga às terças e quintas, quando a chuva não encharca o saibro. E as bolinhas, que ele rebate na quadra para se livrar do estresse, se multiplicam aqui, em textos que têm frequencia quase semanal. Hoje, como no ano passado, comemoro escrevendo sobre o blog, minhas Leituras e Interconexões. Desta vez, os livros vêm autografados e alimentam ainda mais a minha vontade de teclar para registrar tudo o que Amarante me revela.

O roteiro começa com Sol e Lua embaixo de Chuva, livro de poesias de Alexandre Crof, cujo pai é personagem do texto mais acessado do blog: A Arca celebra o título brasileiro de futebol conquistado pelo Fluminense e faz uma homenagem a esse amigo, companheiro de Maracanã, que nos deixou no início de 2009. No livro que guardo com carinho, o Crof me oferece um pedaço de sua vida e sugere “que troquemos mais experiências literárias”.

As aventuras de Pedro e Marina se tornaram fonte de inspiração para a minha Carta para Alice, texto preferido dos leitores na votação que fiz há um ano. A partir dos textos de Flávio Salles, o Pai Crônico dessas crianças, as histórias da minha filha – começadas antes, com Mania de Peitão – tomaram conta do blog e tiraram de Amarante o título de personagem principal. Em fins de 2009, Flávio me dá força: “Mantenha essa caneta destampada, hein?”

O curso de Autoficção da Estação das Letras, prorrogado até o fim de novembro deste ano, ainda me faz comprar muitos livros. Dois deles ganharam autógrafos na sala de aula e permanecem na minha cabeceira. Marcos Eduardo Neves é aluno, como eu, e biógrafo. Nas primeiras páginas de Nunca Houve um Homem como Heleno, ele me apresenta à “trajetória épica e trágica de um mito” e também agradece pelo carinho. Já o livro das Meninas Inventadas pela professora Ana Letícia Leal é para ser compartilhado em casa: daqui a alguns anos, será a vez da Alice se divertir com “esse papo de menina”.

A Autoficção acabou se tornando crônica aqui no blog e o texto chegou aos Diários Bordados da professora (blogspot também). E é assim que Amarante dá alguns passos fora da tampa.