quarta-feira, 22 de agosto de 2012

Alice Vai ao Corcovado

Alice nasceu em Santa Tereza, no Hospital Silvestre, mais perto do Corcovado do que imagina. Conhece o Cristo da varanda aqui de casa. Sabe que às vezes ele se esconde atrás das nuvens que, quando estão escuras, trazem muita chuva. Sabe também que, em dias de muito calor, nós nos escondemos dele, atrás do toldo que bloqueia a luz do sol e entristece a sala. Desde muito pequena, participa com gosto desse jogo de gato e rato. E prefere encontrá-lo à noite, quando fica iluminado e, em ocasiões especiais, muda até de cor.

Nos tempos em que preferia os gestos às palavras, Alice juntava as pernas e abria os braços para mostrar o Cristo às visitas. Mais tarde, quando as palavras já saíam em profusão, a cidade se transformou em projeto na escola e ela passou a reconhecer os monumentos, a falar da Lapa como se frequentasse a boemia, a mostrar intimidade com a gafieira. Já conhecia então o Pão de Açúcar, por duas vezes tinha andado de bondinho, mas faltava ir ao Corcovado e dar fim àquela brincadeira de pique-esconde.

A oportunidade apareceu no domingo passado, de supetão. Primos paulistas muito queridos estavam no Rio e, de manhã, fizeram a proposta por telefone. Topamos sem hesitar: enfim Alice vai ao Corcovado!

Chegamos ao Cosme Velho em torno de uma hora da tarde e tivemos logo uma frustração: ingressos para o trenzinho só para dali a duas horas. Decidimos aceitar a única alternativa de transporte disponível, lamentando muito o fato de Alice perder o passeio de trem. Mas ela nem se importou, disse que não tinha problema, pois seria também sua primeira vez dentro de uma van.

Com o estômago felizmente vazio, suportou bem as curvas morro acima. Quando preferimos evitar a fila dos elevadores, encarou com coragem a escadaria e nos fez prometer voltar às lojinhas de bugigangas. Misturada aos turistas, Alice tirou fotos dos primos e do Cristo. No meu colo, avistou o clube à beira da Lagoa e o prédio onde moramos – e quando achou, telefonou para titia, que também mora ali, dois andares abaixo, para distribuir acenos com animação, quase aos gritos (que o titio garante ter escutado).

Acabou merecendo o pingente que compramos no caminho de volta, antes de enjoar na descida, reclamar de dor de cabeça, lembrar-se da fome, antes de perceber que a parte boa do passeio tinha terminado.

domingo, 12 de agosto de 2012

Dezenas

A caminho da escola, de mãos entrelaçadas, mal conversamos. Às vezes, sinto muito pelo desperdício de tempo, por não aproveitarmos o momento que temos sozinhos. Contudo, pela manhã, mais que em qualquer outra hora do dia, eu prefiro o silêncio; e ela também não quer muito papo, prefere cantar alguma música, já ensaia até assobiar, sempre arrastando a mochila com rodinhas.

Eu permaneço calado, tentando pensar em alguma coisa que talvez nos aproxime em momento tão improvável. Parece sempre muito cedo para raciocinar, mas encontro espaço para a obsessão da semana: as dezenas que teimam em entrar na cabeça de Alice.

A ideia de aproveitar a numeração dos prédios só funciona quando chegamos à esquina da rua onde fica a creche. Até ali, apenas os números centenários das portarias da Voluntários. O número da casa que fica na calçada oposta, um laboratório, é oitenta e oito. Ela diz que não vê, a árvore esconde; um cachorro late e distrai a menina. Para seguir em frente, eu garanto que vamos encontrar outros números.

Agora afobada, ela encontra a casa oitenta e nove. Eu confirmo a dezena: muito bem, é oitenta! Mas o número que vem depois não é o nove... Ela mesma se corrige: é oitenta e dois. Dali em diante, Alice interrompe o passeio diversas vezes. E eu ignoro a pressa habitual e espero, com muita paciência, que ela diga cada um dos números – quase todos certos. A hesitação aparece apenas quando ela confunde o sessenta com o setenta, e vice-versa.

Depois do beijo de despedida, fico com o sorriso banguela e as dezenas na cabeça. Não tenho certeza ainda de que o problema está resolvido. Retorno pelo mesmo caminho revivendo os números, satisfeito com o interesse dela e com o tempo que passamos juntos. Até chegar ao ponto de ônibus, curto uma ingênua sensação de dever cumprido. Quando encontro o meu assento, coloco os fones de ouvidos e tento adiar as lembranças dos compromissos que tenho pela frente.

Volto tarde para casa. Alice já está deitada, mas levanta assim que ouve a minha voz. Finge que não me vê, pergunta para Nane se vou demorar, diz que precisa falar comigo.  Quando dá as costas, ganha o meu abraço surpresa e sorri com a gengiva. Vamos juntos até a cama, onde deito com ela por alguns minutos. Ela pede algum carinho antes de eu ir embora.

À mesa, Nane tem novidades. Conversamos enquanto eu preparo um lanche e ela ainda trabalha. Diz que na agenda da escola veio um elogio para Alice – parece que ela foi muito bem no dever de matemática. Desta vez, aquela mesma ingênua sensação de dever cumprido toma conta de mim: será que foram as dezenas que encontramos pelo caminho? 

quarta-feira, 1 de agosto de 2012

Milagres Fotográficos

Texto de ficção baseado em trabalho premiado do fotógrafo Pedro Trindade,
que mantém o site www.ecoclics.com.br

Para ver a foto, CLIQUE AQUI


Manoel, o guia contratado por Pedro em Paraty, insistiu com a história do velho com o cajado na mão. Garantiu que era figura rabiscada pelos índios em uma gruta há muito mais tempo que qualquer um pudesse imaginar. Vendeu, assim, o passeio para o fotógrafo. Combinou que partiriam na manhã seguinte, bem cedo porque a caminhada era longa. Não contava, porém, com o imprevisto: a febre da filha começou depois do jantar e não cedeu de madrugada. No início da manhã, antes de ir ao pronto-socorro, chamou José, que saía de mochila para a escola.

José, filho do vizinho, decidiu matar a aula para ganhar um trocado. Não contou a Manoel que conhecia a trilha mas nunca tinha entrado na gruta. Também não revelou que morria de medo das histórias que contavam sobre a antiga pintura. Diziam que era um profeta, e que ele transformava a vida dos visitantes. Ainda assim, sem tirar a mochila nas costas, saiu para encontrar o fotógrafo. Na recepção do hotel, explicou o motivo da ausência do guia e disse que era seu substituto. Quando chegaram à praia, na metade do caminho, pararam para lanchar. Ali viu Iracema pela primeira vez.

Iracema, a bela moça que molhava os pés sentada sobre uma pedra, estava sozinha. Viu os estranhos se aproximarem, mas fingiu desinteresse. Quando eles puxaram assunto, desandou a falar. Estava ali para descansar enquanto um casal de amigos procurava por uma gruta no fim da trilha. Disse que lá tinham um encontro com Deus. Gostou muito do sorriso de José, que permanecia calado. Entendeu a coincidência como destino e acabou aceitando o convite de caminharem juntos ao encontro de seus amigos. Assim que descobriu que Pedro era fotógrafo, parou de provocar o menino e ofereceu-se para posar.

Pedro, o turista que confiou na promessa de Manoel, não escondeu a frustração quando percebeu que José se afastou, confessando em silêncio que não sabia onde ficava o desenho. Aproveitou-se do desejo de Iracema para tirar muitas fotos e não dar a viagem como perdida. Escolheu primeiro uma moldura de pedras com algumas frestas de luz. Depois, enquadrou o vão de entrada da gruta à esquerda e chamou a modelo para posar. Clicou sua melhor foto depois de um passo que a moça deu, logo que ela virou o rosto, antes de ouvir o chamado de seus amigos que tinham acabado de encontrar José.

A surpresa aconteceu dias depois, quando Pedro revelou as fotografias tiradas em Paraty. O velho estava lá, sobre a moldura de pedras, pouco acima de onde Iracema fazia a pose, e com o tal cajado na mão. Sabe-se que aquela foto rendeu a Pedro um prêmio internacional. Dizem que deu a Iracema e José um primeiro amor. E há quem acredite até que curou a filha de Manoel.