segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

Pacto de Natal

Alice acordou bem cedo no sábado para cumprir o que combinamos na noite anterior. Entrou no quarto e eu despertei com seus passinhos. Contornou a cama para me cutucar e sussurrar: Vamos, papai! Um pouco zonzo, olhei para ela e para o relógio: 7h52. Para não despertar a Nane, fiz sinais para que me esperasse na sala e fui ao banheiro. Troquei logo de roupa para não precisar voltar depois. Quando cheguei à sala, expliquei que era muito cedo, que as lojas ainda não estavam abertas. Tínhamos que fazer o tempo passar.

Fui para a cozinha, onde preparei o Toddy e tirei do cacho dez uvas verdes sem caroço. Deixei tudo sobre a bandeja no braço do sofá e abri a porta para pegar o jornal, como sempre, jogado sobre o capacho. Sentei-me ao lado de Alice, que me ofereceu as uvas. Peguei duas e agradeci. Separei o Globinho para ela ler; ou melhor, para ver os desenhos da última página e as idades das crianças que os fizeram. Depois, ela pediu para ver TV. Topei e foi boa distração enquanto eu lavava a louça.

Às 9h30 decidi sair: talvez as lojas já tivessem abertas por causa do Natal, que seria dali a uma semana. Ela se vestiu sozinha e colocou os chinelos. Do lado de fora, o dia estava lindo, o céu azul e a maior parte das portas ainda fechadas. Caminhamos então até a esquina, atravessamos duas ruas e fomos até a banca de jornal. Ali, ela me mostrou diversas revistas, e eu me distraí com outras. Deixei que ela escolhesse uma. Levou aquela que vinha com um brilho para os lábios de brinde e tinha na capa a personagem de um programa de TV chamada Vitória – a preferida da vez.

De lá, propus que fôssemos à lojinha de produtos naturais e ela não se opôs. No caminho paramos em frente a uma vitrine cheia de roupas infantis. Ela me mostrou todas as que gostaria de ganhar, enquanto procurava personagens nas estampas. Àquela altura, as lojas começavam a abrir: quis entrar, mas eu disse que não. Seguimos em frente, sem reclamações. Em nosso destino, sentamo-nos à mesa para tomar um suco, um mate e lermos juntos a revista comprada na banca. De tão comportada, Alice ganhou um doce para depois do almoço.

Na volta, encontramos enfim todas as portas abertas. Sem rodeios, entramos na loja combinada. A vendedora perguntou o que queríamos e eu disse que era com a menina. Mesmo se enrolando em minhas pernas, acometida por súbita vergonha, ela não hesitou. Em silêncio, mas com convicção, Alice levantou o dedo e escolheu o presente que daria para mãe. Eu cheguei a duvidar daquela certeza, a moça veio com alternativas, mas ela não mudou de ideia. Saiu de lá satisfeita com a compra e excitada com a parte seguinte do plano.

Quando entramos em casa, às 10h20, Nane já estava acordada. Alice tentou disfarçar fazendo gracinhas, dando risadas, fechando com as mãos os olhos da mãe, enquanto eu me dirigia para o quarto para esconder a sacola com o presente dentro do armário.

Por mais vontade que tenha, ela resiste à tentação de contar porque aprendeu a gostar do jogo. Por mais que eu conte, eu gosto também e manterei aqui o pacto firmado entre pai e filha: caberá somente à mãe revelar o presente de Alice.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

O Feitiço da Ilha

A lembrança do filme do pavão me veio na sexta-feira, enquanto esperávamos a balsa, depois de revezarmos ao volante durante tempo equivalente aos oito CDs que separamos pouco antes de sair de casa. Estávamos ali com Alice para uma rara reunião de família e um casamento na praia. Resultado do cansaço das horas de estrada e do tédio pela espera na fila, o jogo de associações inusitadas aconteceu assim mesmo: a ilha, o pavão, as drag queens, um filme, outro e histórias de amor.

A ilha nada tinha com João Ubaldo, até porque não havia feitiço por ali. Mas a Ilhabela, que era o nosso destino, me trouxe a tal lembrança: Alice pedindo para assistir ao filme do pavão. Naquele dia, em casa, gargalhei porque logo concluí que ela falava de Priscilla, a rainha do deserto. E o pavão só podia ser uma das drag queens.

Ela viu o filme pela primeira vez num dia de surto, daqueles que a mãe não sabe mais o que inventar para distrair a criança e ter um pouco de paz. A novidade funcionou: a menina vidrou os olhos na tela e sossegou. Depois, passou a cantar e repetir Mamma Mia vezes sem fim. Porém, eu tinha me esquecido que Alice costumava se referir à história de outra forma – simplesmente o filme dos meninos que se vestem de meninas. Tão óbvio quanto mais misterioso começou a me parecer o pavão. Ela se esforçou para caprichar na explicação: o filme tinha um menino, que gostava de uma menina, que virava... um falcão chamado Michelle Pfeiffer! Como se fosse um jogo de mímica, enfim matamos a charada: ela queria ver o Feitiço de Áquila.

Dentro do carro, com o ar desligado e as janelas abertas, consegui esboçar um sorriso ao completar o ciclo das associações inusitadas. A história de Isabeau e Etienne me trouxe de volta aos motivos da viagem, a fila andou e a balsa nos levou para a ilha.

Ali, no dia seguinte, os noivos contaram a sua própria história de amor. Escolheram uma celebração casual, com os pés na areia. Na praia, curiosos que estavam ali de bobeira, curtindo o sábado de sol, e alguns convidados que vinham de bem longe (de distâncias muito maiores que os nossos oito CDs) se juntaram para assistir à cerimônia. Sobrinhas e primas abriram o caminho para noivos: Alice era uma das flower girls e estava vestida a caráter, com flores brancas no cabelo, rosas e vermelhas na roupa. Pouco antes do pôr-do-sol, o irmão do noivo celebrou o casamento; a tia discursou para noiva; e Nane discursou para o primo (mesmo emocionada, ela não deixou de revelar os podres; mas ninguém se lembra disso, nem o noivo). A festa continuou no restaurante à beira-mar e só foi interrompida pelo sono das crianças.

No domingo, de novo na fila para barca, para passar o tempo, escrevi mentalmente frases aleatórias que me deram um rascunho de crônica. Tocava então o primeiro dos CDs...

Família ê! Família ah! Família!

E se nunca perdemos essa mania, os noivos vão concordar, não é por motivo de feitiço.

Enfeitiçado estou eu, enquanto escrevo.

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Fugaz

Voltei a frequentar o Maracanã naquele ano difícil, 2008. A oportunidade de ver o meu time disputar a Libertadores foi a frágil válvula de escape que encontrei. Desde o primeiro jogo, aqueles 6 a 0 perfeitos no Arsenal argentino, eu me entreguei à religião do futebol nos fins de noite das quartas tricolores, naquele absurdo horário da televisão. Mas partidas perfeitas como aquela não funcionam em texto porque se bastam em tela. Devem ser vistas, de preferência, sem o narrador ou torcida. Para mim, o gol de Dodô no segundo tempo, por exemplo, merece ser objeto de exposição e pintado quadro a quadro. Por isso e para cumprir uma promessa antiga a uma amiga, deixo esse jogo de lado e fico entre dois épicos e uma tragédia – todos terminados com o mesmo placar: a vitória do Fluminense por 3 a 1.

Escolho o primeiro dos épicos.

Cheguei cedo ao Maracanã com meu pai e logo nos separamos para nos misturarmos. Cada um procurou seu canto para assistir ao embate dos tricolores, carioca e paulista. Eu me dirigi para o lado esquerdo das cabines de rádio, no alto das cadeiras especiais, perto da lanchonete. Ele ficou perto dos elevadores, também lá em cima. Para lidar com o nervosismo e o vento frio que ronda o estádio, é um hábito comum ficarmos de pé.

Os outros torcedores preenchiam aos poucos os espaços vazios, trazendo as cores que jamais empalidecem, abusando da criatividade nos gritos de guerra e nos jogos de luzes. No embalo de uma só voz, já com o estádio lotado, o show começou e o time logo correspondeu: antes dos 15 minutos, Washington, chamado de Coração Valente, abriu o marcador. Faltava muito tempo e mais um gol para nos dar a diferença de que precisávamos para chegarmos à semifinal do torneio. A arquibancada não perdeu o ritmo da empolgação; mas o time, com o passar do tempo, sim.

O segundo tempo começou mais tenso, com o adversário mais presente, interrompendo a cantoria da torcida em alguns momentos. O empate veio aos 25 minutos, junto com um silêncio quase definitivo. No entanto, não houve tempo para abatimento: nosso anti-herói argentino, Conca, encontrou Dodô no minuto seguinte. Ele marcou e, no meio da euforia dos que estavam em volta, corri para encontrar meu pai. Descabelado, ele não estava comemorando. Estava aliviado: ainda bem, ainda bem, suspirava enquanto nos abraçávamos. Sabia que assim a esperança não seria abalada. Retornamos aos nossos cantos para viver intensamente os minutos que restavam. As minhas emoções voltaram então a se apoiar no guarda-corpo que insistia em marcar meus braços.

A ansiedade nos dominava. A torcida empurrava o time e tentava fazer parar o tempo. A bola rondava a área do São Paulo, ricocheteava na defesa deles, teimava em fazer a nossa vontade. No entanto, ninguém arredava o pé porque, em momentos como aquele, dentro de nossas mentes insanas, a certeza se confunde com a esperança. No fim, ou as duas acabam juntas ou a primeira engole a segunda. E aconteceu assim: na última chance, num escanteio aos 46 minutos, dos pés de Thiago Neves para a cabeça de Washington, uma catarse jamais vista. Meia hora passada e ninguém ousava arredar o pé, tamanha a vontade de que aquilo durasse para sempre. Quando reencontrei os olhos do meu pai, vi apenas as lágrimas da felicidade fugaz, a mesma que levei para o travesseiro e não me deixou dormir naquela madrugada.