domingo, 24 de junho de 2012

Surpresas de um Desvio de Rota

Meus roteiros são bem amarrados, mas guardam uma folguinha para mudanças de planos. Havíamos reservado um hotel de rede situado uma hora e meia ao norte de Bordeaux, que deveria bastar como dormitório e teria a função de encurtar o trecho mais longo da viagem, entre os arredores de Saint Emilion e o castelo mais próximo no vale do Loire – Azay-Le-Rideau. No entanto, enquanto jantávamos pela segunda vez no inesquecível restaurante do Château de Sanse, decidimos não retornar a Bordeaux, onde planejávamos passar parte do dia seguinte, e antecipar a nossa chegada à desconhecida Angoulême, que sequer aparecia no Lonely Planet que eu carregava na mochila.

A pesquisa que Nane fez na Internet naquela mesma noite nos indicou algumas atrações da cidade. Na manhã seguinte, partimos em busca daquela que parecia ser a mais interessante delas: o Museu de Quadrinhos. Chegamos logo depois do almoço que improvisamos no hotel. O estacionamento estava vazio e os portões fechados. Para fazer hora, atravessamos a ponte sobre o rio Charante e encontramos outra das atrações: o Museu do Papel, construído nas instalações de uma antiga fábrica, onde havia funcionado também uma pequena usina hidrelétrica. Lá descobrimos uma exposição temporária de origamis que valeu o dia.

Nas salas escuras por que passamos, não havia cisnes nem outras dobraduras do Plimplim. Éric Joisel nos surpreendeu com personagens de O Senhor dos Anéis (sensacionais Gandalf e Balrog), um buquê de rosas brancas e vermelhas, um cavalo alado, um enorme rinoceronte, dentre outras obras, que podem ser vistas também na homepage do artista.

Voltamos em seguida para o primeiro museu, ainda vazio mas aberto. Nele, a exposição permanente serpenteava em um amplo salão, cheio de sofás e opções de leituras; a temporária ficava numa sala menor e era dedicada às crianças. A livraria anexa é também imperdível, sobretudo para os fãs, mesmo os que não leiam em francês ou os que tenham um conhecimento limitado do assunto, como eu. Ali os quadrinhos são tratados como a nona arte, livres dos preconceitos que, por exemplo, impediam meu pai de comprar revistinhas nas bancas. Ainda assim, as minhas preferências trazem a influência francófona dele: Tintim e Asterix sempre foram adoráveis exceções nas prateleiras da minha estante.

Depois de comprar livros para Alice e para mim, embora ainda estivesse cedo, tentamos chegar ao centro da cidade para procurar opções para o jantar. Acabamos desistindo porque ali eu me senti bastante desconfortável dirigindo: havia ladeiras e cruzamentos confusos até para o GPS. Andamos em círculos durante algum tempo até voltar para o hotel para pesquisar restaurantes nos arredores. Optamos por um que acabou dando um belo fechamento ao dia mais improvável de nossa viagem: o La Margelle, na localidade de l'Isle d'Espagnac, onde, longe de turistas, só ouvíamos francês nas mesas à nossa volta.

domingo, 17 de junho de 2012

Dîner au Château

Marcamos nosso jantar para as oito horas da noite. Vínhamos de um longo dia de viagem, iniciada em Carcassonne pela manhã, interrompida em Moissac para conhecer a Abadia de São Pedro, almoçar e comprar um cabo novo para o GPS na loja de uma companhia telefônica. De fato, sair da A62, estrada que leva a Bordeaux, e chegar ao Château de Sanse sem orientação teria sido tarefa muito difícil, mesmo com um mapa rodoviário. A partir dali, as estradas se estreitavam, as placas desapareciam e a paisagem ganhava a maravilhosa monotonia dos vinhedos. Com o aparelho funcionando, chegamos sem contratempos ao destino, com tempo para descansar um pouco, comprar queijos em uma Chèvrerie, dar um mergulho na piscina e aguardar a hora do jantar.

Estávamos hospedados em uma pequena torre, com uma sala de estar no térreo, quarto e banheiro no andar de cima. O restaurante ficava no meio do caminho que levava à piscina e o céu azul da noite francesa garantia que o jantar seria servido na varanda, de onde se via muito verde, parreiras infinitas, e se ouvia pouco além do silêncio. Recebidos por uma irlandesa muito simpática, escolhemos menus diferentes e uma garrafa de Bordeaux “La Jalgue” 2005. Antes das entradas, experimentamos uma interessante guacamole de pepino como amuse-bouche e aproveitamos para conversar sobre os planos para dia seguinte: Castillon la Bataille e Saint Emilion pela manhã e um passeio pela cidade de Bordeaux depois do almoço.

O vinho chegou e eu engasguei ao provar. Foi engraçado, rimos bastante com o garçom e ficamos ainda mais relaxados para curtir o jantar. Quando vieram as entradas, o assunto passou a ser guiado exclusivamente pelo paladar: finalmente eu me deliciava com ostras e Nane provava suculentos raviólis mediterrâneos. Os pratos principais nos fizeram repetir uma expressão, adaptada do português mais chulo, que usávamos para definir, com a ajuda evidente do álcool, as melhores sensações daquela refeição: du carraille. Eu escolhi o filé de porco preparado com sálvia e legumes imperdíveis. Nane preferiu um vitelo ao molho de mostarda e batatas divinas. Tudo foi fotografado, tudo estava perfeito.

No entanto, faltavam ainda as sobremesas. Já passavam das dez horas, as velas estavam acesas, mas ainda havia vestígios de raios solares no céu. O merengue de mirtilo com sorvete de avelãs da Nane ajudou a iluminar o ambiente. A minha escolha, por sua vez, trazia um belo resumo de doces preferidos: biscoito de amêndoas, fatias de pera cozidas com lavanda e sorvete spéculoos. Quando o êxtase gastronômico chegou ao fim, deixamos a mesa leves demais e caminhamos com cuidado até a torre. Com mais cuidado, subimos a escada até o quarto e nos deitamos. Ali, por mais de um motivo óbvio, demoramos muito a dormir. E antes de meus olhos fecharem, eu tive certeza de que escreveria sobre a melhor refeição da minha vida – experiência que fizemos questão de repetir no dia seguinte.

segunda-feira, 11 de junho de 2012

Muita Saudade

Não estou vendo a mamãe. A gente também não via, mas já ouvia muito bem aquela voz que tanto nos fazia falta. As imagens sempre demoravam a aparecer, e quando apareciam... Oooooooi, mamãe! Agora estou vendo você. E cadê o papai? Eu estava ao lado, mas até então fora do esquadro da tela. Oi, Papaizinho! Sabe, estou com muita, muita, muita saudade de vocês. Eu contava o número de vezes que Alice intensificava a saudade e também quantas vezes ela usava o vocativo preferido, às vezes reticente, para ganhar tempo, para se lembrar de tudo o que tinha vontade de contar e prolongar a conversa: Mamãe... mamãe, olha como o meu dente está mole. Acho que vai cair antes de vocês chegarem. A gente, claro, pediu para ela mostrar. Ela se aproximou, mostrando a gengiva, já bastante banguela, com o dedo balançando o dente.

Olha, titia, o papai está dançando atrás da mamãe! Ele é malucão, né? Estou com muita, muita saudade. Posso dar um abraço em vocês? Alice abriu os braços e os cabelos se aproximaram da câmera. Foi ainda mais complicado, mas a gente fez igual. Mamãe... mamãe, estou com saudade de ler história com o papai. E até com saudades da bronca dele. Mamãe, o papai não fala por quê? Eu apareci de novo, dizendo alguma coisa, e ela fez um carinho na tela. Eu perguntei se podia contar um segredo. Ela sorriu, aproximou a orelha da tela e sussurrou: O que é? Já sei: você comprou um livro pra mim? Eu confirmei, e Nane emendou perguntando da escola: se estava tudo bem, se tinha novidades. A festa junina, mãe. E eu já sei a música que a gente vai dançar. Nane disse que a titia podia mandar o dinheiro na agenda. Depois, a gente perguntou da escola e também se estava aprendendo muitas coisas novas. Já fiz o dever de hoje, mamãe. Sabe com quem? Com o titio. Faço todos os dias com ele.

De repente, o silêncio chegou aumentando a saudade. Para nós dois bastava ficar ali, olhando pra ela, mas Alice logo encontrou assunto. Mamãe, eu estou com uma bolinha na perna. Acho que é um molúsculo. Nane falou para ela não se preocupar, não devia ser, não era molusco. Ela insistiu: Mas é molúsculo, mãe! Para que ela deixasse a cisma de lado, a gente perguntou se ela tinha gostado das fotos. Era uma foto por dia para ela no Facebook. Mamãe, gostei muito da foto do papai na piscina. A água estava muito gelada, pai? Você ficou com frio? Mamãe, eu gostei de todas as fotos. Você viu a minha foto? Eu também coloquei uma foto, aquela com as unhas pintadas... Foi a vovó que pintou, mãe.

Quando o silêncio ameaçava voltar, Nane teve a idéia de mostrar o quarto do hotel para ela. É outro hotel, mamãe? Era. O que é isso aí em cima? Era um enfeite da cama. Já foram quantos hotéis? Cinco, faltavam dois. E depois? Vocês vão para Paris, mamãe?! A gente viu que os olhinhos brilharam. Vocês vão?! O sorriso se abriu, e Nane perguntou se ela queria alguma coisa de lá. Se ela continuasse se comportando, talvez merecesse um presente especial. Alice pensou, levantou as sobrancelhas e abriu ainda mais sorriso antes de dizer: Quero sim... Xampus novos, mamãe!!!