domingo, 23 de outubro de 2011

Frases para um Diário

Dia Zero: Prezado diário, lamento informar que é só a mamãe quem viaja. Você também fica, comigo e com a pequena, que continua radiante com a promessa de presentes. Aliás, ela fez questão de preparar a lista de desejos, pediu para escrever em pequenas folhas de bloco, daqueles que ficam perto do telefone. Todas as frases começavam assim: “Não esquecer...”. A mãe mesmo soletrou e garantiu muitas vezes que se lembra de tudo; a filha comemorou e os desejos foram para a mala. Toda sorridente, a criança disse para mim:

– Pai, agora eu sou sua mãe. (Gargalhei)

Dia Um: Diário ouvinte, ser pãe não é fácil. A corrida matinal contra o tempo é intensa: acordar, tomar café, preparar a mochila, vestir o uniforme, ir para a escola. E depois, não posso fugir do meu trabalho. Felizmente, para ajudar, a pequena está um doce, muito obediente. Mas acordou bastante dengosa. Quis escrever de novo nas folhinhas: “Saudades da mamãe” (com desenhos em volta). Resolvi confirmar se ela tomaria mesmo conta de mim, se eu me tornaria seu filho durante as férias da mãe. Entre muxoxos, ela respondeu assim:

– Não, você é meu papai. (Sorri)

Dia Dois: Rapaz, ela ligou duas vezes. Para mim, na hora do almoço; para a filhota, à noite. Acha que não? Também sinto saudades... Além de perguntar sobre a criança, foi isto que me contou: no primeiro dia, passeou e fez compras. Parece muito feliz. À noite, deixei a menina atender o telefone. Estava ansiosa para falar com a mamãezinha fofinha, tanto que demorou a perguntar sobre os presentes. Quando soube que os batons estavam comprados, abriu um enorme sorriso. Então, suspirou e se lembrou de dizer o seguinte:

– Mamãe, papai tá fazendo tudo certinho. (Chorei)

Dia Três: Sábado de muitos compromissos, cara! Aniversário ao meio-dia e também às cinco da tarde. A titia ficou encarregada de levar a criança para o segundo evento. De manhã arrumei a menina: banho e roupa. Surgiu aí a primeira crise: todas as minhas sugestões foram rechaçadas. Confesso não ter a menor paciência para essa coisa de demorar meia hora para escolher uma blusa. Pelo menos, ela não mudou de ideia depois que se vestiu. No entanto, deixou sua revolta vibrando no ar:

– Da próxima vez, você viaja e a mamãe fica. (Respirei fundo)

Dia Quatro: Pai e filha se divertiram sozinhos hoje. No fim da manhã, progressos importantes: ela aceitou a roupa que escolhi para irmos ao cinema. Almoçamos no shopping. Escolhi uma salada para deixar espaço para os restinhos habituais da criança. Como os pratos demoravam, pedi licença ao garçom para comprar os bilhetes. Voltamos, ela deixou os restinhos e comeu um pudim de sobremesa. Quando “Um gato em Paris” invadiu a tela, a menina não desgrudou os olhos. Reclamei do frio e ela colocou as minhas mãos sob o casaco lilás. No fim do filme, era o xixi que nos apertava... E ela não se importou com a opção do banheiro masculino:

– Eu finjo que sou homem, pai. (Relaxei)

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

A Sopa de Letrinhas

Alice me acaricia, despenteia meu cabelo, tenta ajeitar uma franjinha quase emo na minha testa. Diz que eu tenho que ficar igual ao Justin Bieber. Nane protesta, defende a mim e aos nossos ouvidos. A criança retruca como um raio: E Luan Santana, pode? Trocamos olhares inconsoláveis. Constatamos que o nosso meteoro da paixão precisa de mais rock, além do que ouve no carro e do que vê em alguns clipes de Glee no iPod da mãe.

Nane diz então que ela tem que conhecer Halford, Hetfield e Dio. Eu faço em silêncio uma ressalva: desde que conhecer se resuma a ouvir. E me corrijo: imagem não é problema para a pequena fã de Darth Vader. Nane explica que gosta de rock pesado, tipo “Die, Die, Die” O exemplo é quase perfeito: o refrão é fácil demais, pode parecer leve para quem ainda não fala inglês.

Se Alice não se lembra, temos a filmagem que registra a cena inesquecível da pequena headbanger para mostrar no computador e na Internet. Está no Youtube. Ali, o madrinho, o consorte da dindinha, exibe a qualidade da imagem da televisão nova com um show do Manowar. Ao menor sinal de interesse da menina, ele começa a balançar a cabeça e simular a guitarra. Com quase três anos, Alice o acompanha, canta o refrão, encontra o ritmo e dança com graça. Aos seis, ela diz que ainda se lembra daquele dia. Nane aproveita para dizer que papai também gosta de rock, mas prefere algo mais leve. Eu apenas sorrio. A menina nos olha sem expressão, incapaz de entender a diferença de peso.

Penso em alternativas e acabo encontrando os Titãs na estante. Melhor que seja em português, para criar identificação com letra; e que seja acústico, para darmos um passo de cada vez. Coloco o CD para tocar, mas o aparelho não coopera: pula as músicas até encontrar os Bichos Escrotos que a plateia canta – pesado demais, tanto que até as sobrancelhas de Platão ficam eriçadas. Com esforço, consigo enfim fazer a máquina começar pela primeira música.

Comida é água, quase uma sopa. Alice se distrai com uma revista, deixa tocar. E eu entendo a relação entre Arnaldo Antunes e Palavra Cantada: a sopa do neném tem letrinhas de música.

terça-feira, 4 de outubro de 2011

Sobre Letras e Lágrimas

Um texto de conteúdo autobiográfico, pequeno que seja o texto ou conteúdo, inevitavelmente leva o escritor às lágrimas. No mais solitário dos momentos, quando ele escreve, ninguém ouve o choro, e somente o papel é capaz de perceber o que se passa quando as emoções em estado líquido mancham as letras. A prova se torna ainda menos perceptível se a testemunha for o teclado: as gotas secam por baixo das letras. Entretanto, a tecnologia oferece uma alternativa à curiosidade, que pode ser utilizada com objetivos tanto científicos quanto literários: a filmagem das reações dos músculos do rosto com a câmera do laptop. É uma experiência que tem seus riscos: se o computador ficar no saguão do aeroporto, o autor pode acabar pelado na mídia, como a Scarlett Johanson. Seria diferente – melhor, dependendo do ponto de vista – se fosse com ela, caso que resultaria em conto erótico, perseguição dos paparazzi, ou ambos.

Voltando ao assunto principal, das lágrimas, e ainda dentro do contexto da exposição extrema, o escritor pode receber um convite para ler suas lembranças em voz alta. Nesta hipótese, a dificuldade é convencê-lo a aceitar. Se concordar e optar por um distanciamento do texto, a leitura tende a se tornar desinteressante para os ouvintes. No entanto, se o ambiente ajudar o escritor a se desfazer das amarras do autocontrole, ela vai emocionar, quanto mais trôpega e interrompida por suspiros for. A cena da voz do autor que mistura as lágrimas às suas próprias letras é especial, sem qualquer risco de ser associada ao ridículo. O momento tem tudo para ser libertador e, assim, agradecido ficará também aquele que escreve.

Meus olhos marejam no ônibus, a caminho do trabalho. Sentado no banco preferido (sobre a roda), eu me inspiro, escrevo parágrafos inteiros em pensamento, reescrevo frases já publicadas. Ali, o meu controlado mecanismo de defesa deixa as lágrimas represadas nos olhos, esperando o sentimento passar, a hora de descer do ônibus para reencontrar a realidade. Não deixo, porém, os fios se perderem: antes que o dia comece de fato à mesa do escritório, em arquivos com nome de rascunho (palavra que é sempre acompanhada por números escolhidos aleatoriamente), eu registro o pouco que o tempo permite e aguardo a noite chegar, minha filha dormir, para retomar os atalhos de onde parei. Ainda no trajeto inevitável da manhã, a música que me acompanha nas viagens imaginárias também revela memórias, detona um turbilhão de palavras, e me faz também descobrir personagens que estão à volta, sentados olhando para a janela ou em pé vendendo amendoim. No fim das contas, apenas o som que toca em meus ouvidos é capaz de abrir as comportas que contêm meu choro, fazendo meus lábios repetirem em silêncio: let it be, let it be, whisper words of wisdom, LET IT BE.