terça-feira, 27 de setembro de 2011

Reencontro

Durante o almoço, naquele dia que foi o que inaugurou as aulas da primeira série do curso primário, meu pai não parava de fazer perguntas. Ele queria que eu contasse todas as novidades da escola, especialmente sobre os novos colegas. Passados 30 anos, ele continua gargalhando ao se lembrar do que eu disse: minha nova amiguinha tinha bochechas maravilhosas. Tamanha qualidade era inesperada, mas se tornou tão marcante que virou sobrenome da menina já adulta.

Nas férias dos anos que se seguiram, eu e Aninha trocamos muitos livros. O intercâmbio tinha os mistérios da Agatha Christie e os livros da Série Vagalume. Desta, lemos quase todos, sendo alguns inesquecíveis, como aqueles dos jovens detetives do Marcos Rey e também O Escaravelho do Diabo. Depois, ela trouxe Stephen King em quatro estações, Outsiders, além de uma ou outra descoberta diferente.

As nossas famílias viveram aqueles anos como uma grande família, sempre presente em todos aniversários, juntos em alguns réveillons (inclusive no hospital, quando meu irmão quebrou o braço poucas horas antes do show de fogos começar). Tanto que nossos pais acabaram compadres quando nos crismamos; e minha irmã, afilhada da Bochecha.

O hábito da troca se perdeu quando acabamos em escolas diferentes no segundo grau. Depois, até as famílias se afastaram, mas jamais perdemos contato. No último ano do curso de engenharia, no trajeto do Fundão para o estágio, passei a deixar o carro na garagem do prédio dela (gentileza de padrinho) e passamos também a frequentar a gincana do Sebastian Bar nas noites de 5ª feira, onde eu conheci a Nane, outra apaixonada por livros. Aninha, claro, foi madrinha do nosso casamento.

Ela também casou, com Bruno, e voltamos a nos aproximar por causa dos programas infantis, das festas de aniversário dos filhos, das Chicas e do Harry Potter. Quando criei o blog, escolhi a dedo e timidamente alguns potenciais leitores. Do convite que fiz a ela para ler o que eu escrevia nasceu outro blog, dela, e uma nova troca de experiências literárias, com textos igualmente íntimos, embora de estilos bem diferentes, e que têm como personagens principais as duas crianças: Alice, na tampa da caneta, e Bernardo, com todo seu borogoblog.

A decisão recente que tomei de fazer um curso de literatura foi compartilhada com ela por e-mail. Esse curso me fez remexer ainda mais as memórias da infância e acabou me levando a procurar livros que li quando era criança. No último domingo, enquanto eu procurava A Volta ao Mundo em 80 Dias na casa da minha avó, meu irmão puxou de uma estante a versão de Alice no País das Maravilhas de uma série chamada Reencontro. Ao lado da minha Alice, descobri na primeira página que aquele livro não era meu. O nome completo sobre as manchas amareladas do tempo não deixa dúvidas: aquela era a Alice da Bochecha.

terça-feira, 20 de setembro de 2011

O Primeiro Setlist

Não fazia muito tempo que eu tinha trocado a companhia da Jovem Pan por aquela fita cassete em minhas viagens diárias ao Fundão. A opção pela rádio era circunstancial: eu não tinha um setlist, nem pretendia encontrar uma trilha sonora; eu procurava companhia, mesmo que fosse a de um bate-estaca. Quando havia amigos que pegavam carona, eu desligava o som e preferia uma boa conversa – assunto não faltava. Até então, a minha relação com a música era assim, quase de pouco caso, talvez porque em casa houvesse discos por toda parte menos na vitrola.

Durante 21 anos, a trilha sonora da minha vida foi incidental. Quando criança, esbarrava com o carimbador maluco ou a Emília na televisão. Gostava muito do Gonzaguinha na voz de um amigo peruano do meu pai. Aprendi a respeitar o hino nacional por causa da Marselhesa que fazia a minha avó parar o que estivesse fazendo, levar a mão peito e chorar. Quase adolescente, eu dizia que gostava de samba, mas não conhecia quase nada. No ônibus da escola, sempre tocava Legião. Nas festas que aconteciam em um play em Botafogo, celebrava com os amigos duas versões de Kátia Flávia.

A tal fita mudou meus hábitos: uma boa conversa passou a ter música de fundo; perdeu o sentido interromper uma boa música depois de estacionar o carro na faculdade. Não foi assim, de uma hora outra: precisei ouvir o pedido de um amigo para me tocar. Certo dia, ele protestou quando parei o carro e girei a chave antes corrermos para a sala de aula. Não havia motivo para pressa. Estávamos numa ilha superpovoada, éramos estudantes de engenharia, éramos “Dust in the Wind”.

Se um amor traz muita novidade, no meu caso, trouxe música também, e o primeiro setlist estava na capa da fita que ganhei da Nane quando completamos um mês de namoro. A fita não existe mais, mas a capa está aqui, servindo como amuleto de memória ou cola de prova. Na verdade, não precisava dela para lembrar a primeira música das 24 músicas, “Because the Night”, que já era uma das minhas preferidas. Mas a cola serviu para eu reencontrar uma cartinha no verso da capa: ela esperava que eu guardasse lembranças desse amor no futuro.

Essas lembranças se revelam hoje quando ouço “Wuthering Heights” terminar no rádio e fico aguardando que a música traga Pink Floyd com “Wish You Were Here”.

Ou quando fico procurando “Vincent” atrás das portas (“Touch Me”).

Essas lembranças podem fazer diferença agora: antes de dormir, vou reorganizar as músicas no MP3 para dividirmos os fones de ouvido na cama.

domingo, 11 de setembro de 2011

Antes o Chá

Eram 7 horas da manhã de algum dia de novembro de 2007 quando chegamos ao aeroporto de Sapezal. Esperáva-nos um Cheyenne. O avião, que um dos engenheiros que nos acompanhava insistia em chamar de ataúde voador, era pequeno, não comportava mais do que os cinco passageiros que voltavam da viagem a campo, mas o apelido não se justificava: longe de parecer um teco-teco, o pássaro era pressurizado. Colaboravam o horário e as condições meteorológicas. Assim, pousamos em Cuiabá menos de uma hora depois, sem turbulências.

Como o aeroporto de Cuiabá fica em Várzea Grande, distante do Centro, optamos por aguardar ali mesmo os voos cujas partidas estavam marcadas para horários bem próximos, todos em torno das 11 horas. Aqueles que partiam para Belo Horizonte e São Paulo embarcaram sem contratempos. Com um atraso tolerável, meia hora talvez, os dois que restávamos fomos chamados para a sala de embarque. A fila já estava formada quando um funcionário da Gol solicitou que os passageiros que tivessem o Rio de Janeiro como destino final se apresentassem no balcão. Lá nos informaram apenas que seríamos remanejados.

Os minutos seguintes foram tensos, com os passageiros preteridos cercando os funcionários do check-in em busca de respostas que não fossem evasivas. Demorou até que nos calassem com um voucher para o almoço e a promessa de que embarcaríamos em voo agendado para as 16h30. Contudo, a notícia completa era um pouco pior: trocaríamos uma escala em Brasília por outra em Campo Grande com destino a Guarulhos, onde trocaríamos de aeronave para, enfim, chegar ao Rio. Se tudo se resolvesse assim, como prometido, menos mal.

No entanto, o voo demorou a sair, o avião ficou mais tempo em solo que o previsto na escala pantaneira e chegamos a São Paulo após a última partida para o Rio, às 23 horas e alguns irritantes minutos. A paciência já tinha acabado e as respostas ainda eram imprecisas. Picolés da Häagen-Dazs nos ajudaram a relaxar, enquanto o suspense ainda durava e as alternativas ficavam entre passar a noite em hotel pago pela companhia aérea e embarcar em voo extra, o que, por fim, acabou acontecendo. Um avião velho, com assentos com cheiro de mofo e estofado puído, levou para o Rio uns 20 passageiros extenuados, além de alguns funcionários da própria empresa de aviação.

Para não dar mais chance ao azar, dispensamos o táxi comum quando chegamos ao Galeão. Ali nos despedimos, um do outro e os dois do quase interminável chá de cadeira com asas. Um pouco antes das 2 horas da madrugada, girei a chave de casa, louco por um banho e ainda pilhado demais para dormir.

No início de dezembro, soubemos que três semanas tinham nos separado de uma sopa de flechas: índios tinham acabado de invadir uma das hidrelétricas em construção que havíamos visitado. Meses depois, eles voltariam para botar fogo em tudo.

Antes o chá que a sopa queimando a garganta.

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Autoficção

Às segundas eu costumava sentar no sofá do consultório com os pés descalços e, fato raro, falar quase sem parar. Quando sobrava tempo para ouvir, o verbo se repetia: expandir. A cada vez que o assunto retornava, eu eliminava as possibilidades com a alegação mais sincera: falta de interesse. Acabei percebendo que apenas a minha satisfação pessoal seria capaz de trazer alternativas para a expansão. Por isso, terminava a sessão falando do blog, das ideias que tinha para divulgá-lo, do retorno que eu tinha dos amigos leitores, da surpresa que era escrever tanto e tão fácil. Foi assim que expandir se tornou sinônimo de escrever melhor.

A terapia já tinha passado a ser quinzenal quando me deparei com a ementa do curso de Autoficção da Estação das Letras. Reconheci ali boa parte dos meus textos em perguntas simples: “Ao lembrar, inventamos? Quem somos senão quem decidimos ser?” Percebi que a questão não era apenas escrever melhor, mas entender motivações e encontrar direções. Desde a primeira aula, o curso é uma extensão da terapia. Descobri que autoficção é um exercício de autoconhecimento, neste caso, feito em grupo formado por pessoas com a mesma vontade de transformar lembranças em histórias e de aprender a preencher os vazios de memória com letras.

A autoficção ocupa agora os instantes de inspiração ao longo da semana e as minhas noites de segunda. Por isso, a terapia temporariamente acontece em horário alternativo, em quintas alternadas. Lá continuamos a tratar de expansão, sem esconder a empolgação com o primeiro tiro: certeiro. Ela diz que eu encontrei a minha turma e eu não posso dizer que foi tarde: aos 37 anos, sou um dos mais novos aprendizes. Enquanto ela fica com uma boa quantidade dos marcadores de livro para divulgar o blog, eu fico imaginando quanta ficção preenche aquele consultório de releituras biográficas.

Não nego a ansiedade pela próxima aula, porque hoje, talvez pela primeira vez, a vontade supera a inibição: quero expor para depois reescrever. E para escrever melhor, preciso das críticas, quero ouvir o que dizem os colegas e a nossa orientadora, com mais esperança do que vergonha.

Aqui, alguma autocrítica me leva a questionar por que não vejo traço da ficção de que trata o curso e que promete o título. Só encontro uma explicação: se tudo o que escrevi é fato, os vazios foram preenchidos, também com letras, fora do texto.