domingo, 19 de dezembro de 2010

Vestidos de Cortina

A apresentação de fim de ano da Alice trouxe lembranças da minha infância.

Pela manhã do mesmo sábado, para uma espécie de aquecimento, demos a ela o DVD de presente. Assistir às sete crianças cantando com a noviça foi útil também para controlar a ansiedade e descobrirmos que alguns trechos do filme ela já sabia de cor. Mais tarde, no palco, de mão dada com um dos amiguinhos, ela estava vestida de cortina, lindinha, cantando Dó, Re, Mi. A professora de musicalidade cantava junto, tocando o violão. A cada nota musical, as minhas lembranças foram sendo reveladas: o pátio construído com madeira pintada de azul nos fundos da escola era o nosso palco. A professora de inglês, chamada Giovana, era a responsável pelas apresentações e nós cantávamos na língua original. Tentávamos ao menos reproduzir os sons, com a fita K7 ajudando a guiar nossa cantoria.

Da mesma forma, em outro pátio, bem mais espaçoso, as carteiras escolares foram espalhadas mais de uma vez para vivermos bons momentos com brilhantina nos cabelos e dublarmos uma das músicas de “Grease 2”. É muito engraçado hoje ler a letra de “Reproduction” e imaginar os meninos pré-adolescentes mostrando os bíceps para cumprir com a coreografia combinada. Eu era um deles, não fazia questão nenhuma de aparecer, mas gostava de participar da bagunça.

Outra apresentação inesquecível, que também se repetiu em datas diferentes (dia das mães ou dos pais e também no fim do ano), foi “We are the World”, que dava chance para todas as crianças serem protagonistas por alguns segundos. Não me lembro o trecho da música que eu cantava. Tímido, mesmo que talvez quisesse ser Bruce, preferi me esconder por trás de algum daqueles cantores que não fazíamos idéia de quem era. Michael Jackson era encarnado por seu maior fã, que participava de concursos de dança e colecionava réplicas de jaquetas do ídolo. Ele também era responsável pela versão fonética da letra que facilitava bastante o nosso exercício de caras e bocas. Outra recordação óbvia é de que Cindy Lauper tinha bochechas.

Houve também, anos mais tarde, a peça sobre a independência do Brasil. Esta foi organizada por nossa professora de história, responsável por diversas atividades ecléticas, de maquetes de engenho a mapas sem fronteiras. Na peça, eu fazia parte da corte, era nobre figurante. A minha timidez se confundia com o medo de errar, o que não era problema para D. Pedro. Em um dos ensaios, antes do aguardado momento romântico com a Marquesa de Santos, ele trocou as falas, mas não hesitou: diga que estou ocupado, não posso atendê-la agora. Ainda ouço as gargalhadas sem fim daqueles bons tempos.

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

A Arca

Faz tempo que não conversamos, meu amigo. A última vez em que nos vimos e nos abraçamos foi na missa de sétimo dia da minha avó. Nossa última troca de mensagens pelo Orkut ocorreu graças às estripulias de um goleiro, que sofreu um pênalti nos minutos finais de uma partida. Lembro-me melhor, no entanto, daquela noite de vitória e derrota no Maracanã lotado. Você usava uma camisa branca, de mangas cumpridas até o punho. O estádio se vestia das três cores de que mais gostamos. As luzes que desenhavam o nome de nosso time davam a volta na arquibancada e nossos olhos acompanhavam as letras como uma ola desenhada por eles. Noite aquela de êxtase e decepção.

Hoje estou em casa, escondendo o nervosismo por trás dessas linhas. Se não temos mais o Maracanã, a coisa acontece no Engenhão e o craque é aquele que você fazia questão de exaltar: protegendo a bola como poucos, fazendo a bola rolar. Ele conquistou a torcida com silêncio e trabalho. É uma espécie de anti-herói do futebol, combina com a fidalguia tricolor. Não tem nada a ver com aquele craque, de mãos nas cadeiras, que você passava os jogos denunciando. Ou outro, lateral-direito, que dava as costas para o goleiro que tinha posse da bola. Aliás, este campeonato teve um personagem que você identificou muito antes do nosso técnico. Apenas um jovem coadjuvante, mas que joga com a cabeça em pé, do jeito que você sempre pediu.

A torcida aprendeu com as derrotas, e por isso mesmo segue desconfiada. Não falta fôlego, é apenas a ansiedade da espera pelo título. A torcida se renovou, amadureceu. Diria um hermano, que não joga bola e não é tricolor: olha lá, quem sempre quer vitória e perde a glória de chorar. O nosso caso é inverso. A derrota faz parte da nossa história recente, assim como a redenção. Já choramos em glória apoteótica, estamos prontos para vencer. Meu pai que o diga. Depois de quatro mandatos, sempre fazendo sua parte no cotidiano do clube, esbravejando contra opositores e, sobretudo, entre quatro paredes, ele está do lado derrotado. Conselheiro, se estivesse aqui, você também não mais o seria.

É goooooooooooool. Ouviu? Os gritos vêm pela janela. A informação se atualiza aqui na Internet, no jogo que corre on line: um gol do tamanho da distância que nos separa, um gol que nos reaproxima. Futebol é matéria de amigos, que querem se abraçar, que querem brincar de se engalfinhar. Há os que querem se matar de fato, mas esses desconhecem a essência da brincadeira. Lembro de você por isso: o futebol era a brincadeira que nos unia, inclusive no tédio das reuniões do conselho. Meu pai leva a sério demais. Ele deve estar lá, com meu irmão, ou sem ele, torcendo, sem a noção exata do que está acontecendo, perguntando quem fez o gol, porque teve um apagão e só tem certeza de que a bola entrou porque estamos todos pulando de alegria, dentro e fora do estádio, em terra firme e no céu. A camisa dele é 75; a identidade, Vovozão.

Acabou. Permito-me reescrever o que já estava escrito: o Fluminense é o campeão brasileiro de 2010. Vamos comemorar e você será nosso convidado especial.

Cai um dilúvio agora. A arca tricolor está pronta.

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Defeito de Fabricação

Muitos bebês nascem com o mesmo defeitinho: o canal lacrimal obstruído. O local é perfeito para a proliferação de bactérias. Quando acordam, podem estar com um pouco de remela no canto dos olhos ou, em dias piores, com o olhinho grudado. Uma cuidadosa massagem diária costuma resolver o problema. Depois os bebês crescem e as partes daquele corpo minúsculo também, abrindo caminho para a solução.

Alice se livrou do defeito em apenas um dos olhos. Aos sete meses, o oftalmologista que consultamos recomendou uma sondagem. Ela fez. Saiu com o olho roxo, daqueles inchados de briga. A melhora foi passageira. Consultamos outro médico especialista e, poucos meses depois, resolvemos fazer de novo. O mesmo hospital, mais um olho roxo e algum sofrimento – como o procedimento foi mais demorado, o fiozinho de náilon ficou lá futucando o canal por mais tempo, a sedação foi mais forte. E não é nada fácil ver uma criança de pouco mais de um ano acordar grogue, meio bêbada.

Não melhorou. Demos um tempo.

Ela cresceu, acostumou-se a acordar com o olho grudado e nós com o algodão molhado na mão. Limpeza diária, massagem também e, quando o olhinho começava a ficar vermelho, Tobrex (mais tarde substituído por Biamotil).

Um dia ela acordou e chegou ao nosso quarto dizendo: mamãe, eu sou um pirata! Outro dia, um menino da escola disse que o olho dela era nojento porque tinha remela. Voltamos às consultas: nada o que fazer, ou esperar a criança crescer para quebrar o nariz, ou fazer uma dacriocistografia. O palavrão é um exame feito com contraste – para tentar descobrir exatamente o que há com o canal lacrimal da pequena (se obstruído de fato ou danificado por uma das sondagens). Difícil achar uma clínica que o faça em crianças porque têm que ser sedadas. Mesmo para as maiores, há restrições: não podem ser agitadas (!?).

Nenhuma opção no Rio. São Paulo, Curitiba... demos outro tempo.

Agora Alice faz a limpeza sozinha, mas mostra mais irritação quando acorda com o olho grudado. Por isso e porque também não aguentamos mais, marcamos nova consulta. E, hoje, ela veio com esta... O papo era sobre o presente do Papai Noel. Sem maiores explicações, ela trocou o Ryan por patins. Nane argumentou que não tem patins para os pezinhos dela e disse que conversaria com o velhinho. Ele conversa com você, mãe? Sim, ele conversa com as mães. Então pede pra ele falar com o Cristian pro meu olhinho ficar bom. O outro pedido foi para ele ficar com luz colorida de novo. Ela gosta do Cristo com a luz azul.