segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Dominó em Braille

Hoje é segunda-feira. Papai chegou mais cedo que o normal e de cabelo cortado. A criança nem desconfiava. Mas, quando encontrou a avó no portão da escola, decidiu ir para casa sem fazer o tradicional pit-stop na vizinha, que mora dois andares abaixo. Do lado de dentro do apartamento, com certa apreensão, pai e mãe ouviram os gritinhos que se aproximavam no corredor, distribuindo ordens. Abra a porta, mamãe! Agora! O pai abriu e sorriu. Rá. A avó deu beijos de boa noite para cada um e logo se retirou. A menina ficou, achando graça das próprias piadas, pedindo por favor ao papaizinho e dizendo obrigado à mamãezinha. Que bicho a mordeu, não se sabe ainda.

Pediu para ver um filme, aceitou sem questionar o que já estava no aparelho desde a manhã de domingo e não reclamou sua cena favorita ou o trecho que o capricho do momento às vezes exige. Assistiu ao desenho animado sem fome ou sede, deixando a mãe trabalhar um tempo a mais em sua tradução e o pai atualizar a planilha das contas do mês no computador. Tanta surpresa merecia atenção e ele largou os números da economia doméstica para propor um jogo, como há algum tempo já não faziam. Sem titubear e mantendo o ritmo da boa vontade, ela desligou a televisão e foi ao quarto escolher o brinquedo da vez. Pacientemente, esperou o pai preparar o sanduíche de muzzarela com tomate e orégano, enquanto organizava as peças da Torre de Pisa no chão.

A tal da torre não rendeu e ela topou trocá-la pelo dominó. Espalharam as pedras barulhentas pelo chão e começaram a jogar. Mesmo quando ela não dispunha dos números para prosseguir, a carinha de insatisfação não trazia mau-humor. Era uma gargalhada a cada vez que o pai dizia: Ih! Acho que me dei mal. As mãozinhas buscaram tantas peças que o dono do jogo venceu a primeira partida. A segunda veio com uma novidade. A menina ditou uma nova regra: Não pode ver, papai! Ele só entendeu a ideia quando os dedos minúsculos deslizaram sobre uma das pedras e contaram cada uma das cavidades que se traduziam em números. A mãe, aparentemente concentrada no trabalho, vibrou com a variante criada pela filha, e o pai propôs que colocassem vendas nos olhos numa próxima vez.

Na metade da segunda partida o jogo voltou à sua regra normal e ela venceu sem dificuldades. Iniciaram a negra logo que a mãe anunciou faltarem 10 minutos para a hora de dormir. O tempo era curto. Para evitar argumentações típicas pré-cama, a anarquia correu solta e ela virou o jogo depois de reduzir à metade as peças compradas: 2x1. Mais surpresas vieram em seguida, quando o pai teve que ficar com os olhos fechados para que ela guardasse o jogo no armário da sala e cumprisse toda a rotina da noite apenas com a ajuda da mãe, repetindo infinitas vezes: Não pode ainda, Não pode, Ainda não pode... Quando ele abriu os olhos, ela estava sorrindo, esparramada no chão, com umas das pernas para cima. Pronta para dormir.

Mas irrepreensível é uma palavra rara: uma hora e meia depois, o pai terminou de escrever a história e ela ainda não dormiu. Já levantou três vezes sem assuntos para inventar e agora tagarela sozinha no quarto.

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