quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Leituras e Interconexões

Três livros estão abertos.

“Como se não Houvesse Amanhã” é um deles. São contos de diversos autores, todos baseados em músicas da Legião Urbana. Histórias curtas, perfeitas para carregar na mochila durante a semana e ler antes da aula de tênis, em qualquer sala de espera ou até no avião. Eu encontrei o livro na Livraria Galáxia da rua México, onde desestresso por alguns minutos na hora do almoço, mas não comprei na primeira vez em que o vi. Não costumo me conter tanto com os livros, mas a fila anda tão grande que tenho evitado. E, quanto mais escrevo, menos tempo tenho para ler. A decisão de comprá-lo veio depois de ler uma crônica de minha irmã blogueira que falava das letras de música da Legião e o comentário de umas de suas amigas que citava o livro e que hoje me segue (e eu a sigo também). Depois de ler um ou dois contos, escolhi a minha música para escrever aqui. “O Mundo Anda Tão Complicado” é resultado disso.

A mais nova leitura é “Barroco Tropical”, ainda nas primeiras páginas. O livro, autografado pelo autor José Eduardo Agualusa, escritor angolano, foi presente de um amigo, geólogo que trabalha comigo, morou muitos anos em Moçambique e conhece minha predileção pelos autores africanos de língua portuguesa, sendo Mia Couto um gosto que temos em comum. Há quase um ano ele me convidou para ir a Livraria da Travessa no Leblon onde Agualusa estaria. Não fui, acabei na Lapa com meu irmão, passando momentos descritos aqui na “Retrospectiva 2009 - Parte II”. O Barroco é leitura para o fim de noite, um dos livros abertos na mesa de cabeceira.

O terceiro é “Everything is Illuminated”, ou “Tudo se Ilumina”. Infelizmente parei no primeiro capítulo, que inspirou outro de meus textos: “Todos os Nomes”. Não sei explicar o motivo da parada. Talvez seja a expectativa pela leitura de outro livro de Jonathan Safran Foer, já que “Extremamente Alto, Incrivelmente Perto” é um dos melhores que já li. A interrupção não tem relação com a história, que eu já conheço do cinema. Aliás, foi por causa do filme do Liev Schreiber, estrelado pelo Frodo (ou melhor, Elijah Wood), que comprei um dos meus livros preferidos, que tem um dos meus personagens preferidos – Oskar Schell, uma das crianças citadas numa de minhas primeiras publicações, chamada “No Machimbombo”. Sei que recomeço em breve.

Leio também “Insatiable”, livro de vampiros da Meg Cabot. “Oi?”. É a única leitura com prazo. Nane está traduzindo o livro, o segundo da mesma autora e o quarto da Galera, selo jovem da Record. Seus enredos e personagens são descomplicados, ao contrário de outros do gênero que li. Interessante também que, logo no início do livro, ela usa a história para confessar que escrever uma história sobre vampiros foi uma necessidade imposta pelo mercado. Enquanto leio, dou uma ajudinha na revisão e aproveito para compartilhar com a Nane uma de nossas afinidades. E se você entendeu que eu errei a conta, não é assim. Nesse caso, é o arquivo que está aberto, bem aqui ao lado, com o controle de alterações ativado e o marcador é uma tarja amarela sobre o número do capítulo.

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Troy Story

Era uma vez um príncipe boneco chamado Eric. Ao contrário dos outros príncipes, ele não vestia roupa de gala para ir ao baile em busca de sua princesa. A praia dele era outra: usava um bermudão, exibia os músculos do peitoral e azarava uma boneca sereia de rabo esverdeado. O nome dela era Ariel. Eles eram apaixonados e viviam felizes para sempre até ouvirem aquela música tocando na sala. O “para sempre” acabou aos poucos, à medida que outras bonecas chegavam e a menina crescia. Primeiro vieram as pernas compridas das Barbies, mulheres bárbaras com diversos sobrenomes ou histórias de princesa para contar; depois a misteriosa Hanna – ora de cabelos castanhos, ora loiríssima, de microfone em punho, cantando sobre o melhor de dois mundos (e nenhum deles era o fundo do mar).

Mas eram as mãos da menina davam o tom das tentações do príncipe surfista, quando colocava em pé cada uma das bonecas para passear com ele. Neste caso, o rabo era uma tremenda desvantagem para Ariel, uma sereia cada vez mais enciumada, pensando em retornar para os braços do rei Tritão, seu pai, ou fazer um novo pacto com Úrsula, a bruxa do mar. Ao menos, ela tinha companhia em terra firme, já que Fiona, com aquela roupa de kung fu e a máscara de ogra, não atraía nem um pouco o único galã do pedaço. Fiona tinha, de fato, nascido para viver num mundo tão tão distante. Por aqui, nem Daniel San seria capaz de encará-la.

Um belo dia, depois que a menina viu Harry beijando Cho, a crise do casal marinho ganhou proporções ainda maiores. As bonecas passaram a fazer fila para beijar Eric. O sortudo tinha um harém, mas não usava turbante nem tinha o nome de Aladdin (Jasmine que não nos ouça, mas ele e o gênio sempre foram vistos muito bem acompanhados). O sortudo podia ir preso a qualquer momento porque, não bastasse a cantora adolescente, colecionava também colegiais da High School, que além de cantarem, dançavam. O sortudo era um coitado, não dava conta de tanta mulher.

O caso parecia sem solução até que a mãe da menina precisou escolher um presente para a vovó dar no dia das crianças. Mamãe e papai chegaram a cogitar o tal do Ryan como opção. Mas, e se ele se apaixonasse pelo Eric? Não haveria partilha, só aumentaria a fila. Antes do Viagra e antes que Ariel fugisse no saco de brinquedos antigos que iria para doação, chegou então um boneco adolescente chamado Troy. Contrariando o pretenso cavalheirismo dos príncipes, o menino não foi pontual. Sua carruagem demorou mais que uma semana para chegar. O dia das crianças já tinha passado, mas Eric teve, enfim, com quem dividir as atenções (ou tensões) e não corre mais o risco de ser preso (Troy até deu uma piscadela para Fiona, mas antes que apanhasse, foi ao encontro das mais jovens ensaiar o próximo musical).

Para Ariel, o final não foi feliz. Ela continuou resmungando pelos cantos. A menina, por outro lado, ficou radiante com o novo brinquedo. Naquele dia, que já era um dia qualquer, ela parecia feliz para sempre.

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Saudades de Bequinha

Ela tinha aparência frágil e medo de que o vento a levasse, mas não havia resfriado capaz de pegá-la. Contudo, o início de 2008 a trouxe sangrando. O diagnóstico deu pouquíssimas esperanças e a primeira operação... abriu, fechou, não dá! Passei duas noites com ela. Terríveis, a segunda pior que a primeira. Em ambas, o sono do começo da noite foi tranquilo. Depois da meia-noite, porém, começaram os pedidos pelo cafezinho que não vinha. Que indelicadeza! Só o soro a alimentava e apenas às vezes molhávamos com água a boca que insistia com o café. Nem um cafezinho sequer! Na segunda das madrugadas, ela pediu banho: Rodolphinho, fala com a enfermeira, por favor. Elas não a tratavam bem, imagina. Eu procurei a enfermeira, que explicou que o banho seria dado depois da troca de turno, pela manhã. Ela ouviu, mas voltou a pedir, e eu saí do quarto tantas vezes quanto pude para fingir que perguntava de novo e de novo; para fazer o tempo passar, o meu e o dela. Não sei com que forças minha mãe e minha tia dividiram outras incontáveis noites. E, para mim, ela morreu quando entrou em coma pouco tempo depois.

Para ela, porém, ainda não havia terminado. Acordou de forma inesperada. Eu não acreditei, demorei a visitá-la, até que resolvi aparecer num domingo. Ninguém garantia que ela poderia reconhecer os filhos ou os netos. Quando entrei no quarto, minha mãe estava sentada numa poltrona, segurando a mão dela. Elas se olhavam e eu parei na porta. Quando ela me viu, registrei uma das imagens que passarão no filme da minha vida, se um dia acontecer assim. Mais magrinha que sempre, minha avó abriu um enorme sorriso banguela, fechou ainda mais os olhos já apertados e estremeceu visivelmente dos pés a cabeça. Você! Era eu mesmo.

Passou o aniversário no hospital conosco, quando os dedos lambuzados de bolo das filhas davam os últimos presentes aos seus lábios, bem escondidos das “vizinhas” enfermeiras que vinham cumprimentá-la pelos 88 anos em seu micro-apartamento. Ainda ficou pouco mais de um mês na casa da minha tia até retornar à sua casa de então. Para Alice, era assim: ali era a casa da bisa, onde deixávamos vovó nas tardes de sábado. Lá ficou então, repetindo de longe que tudo ficaria bem, até se despedir de vez, sete meses depois de sua primeira internação.

Era 12 de outubro e a professora não esperou pelo seu dia. Escolheu as crianças para nos dizer que a vida continua sim. Assim, sem ela. Escolheu o dia das crianças para que, no filme de nossas vidas, lembrássemos o cheiro do pastel, o gosto do nhoque, o calor da canja; para que o nosso último retrato com ela tivesse pipoca, jujubas e uma risadinha pontuada por “i”s. Escolheu mostrar aos alunos que devemos continuar acompanhando o giro do globo terrestre e marcar nossos passos na geografia que ela ensinou, enfrentando os reveses da vida com coragem.

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

O Otrrrrro Lado

Minha irmã blogueira tem razão: quando eu ainda morava com meus pais, se você telefonasse para mim pela primeira vez, surtaria com a notícia. Com o sotaque francês que, dizem, nunca foi corrigido porque meu avô achava charmoso, Mami diria: ele está do otrrrrro lado. O lado de lá é o apartamento dela até hoje. No lado que era o de cá, ainda moram meus pais. E são os únicos apartamentos do andar.

Mami passava a maior parte do dia conosco. O apartamento ao lado era pouco frequentado, mesmo por ela, que somente retornava para dormir. Nele, eu fazia algumas incursões no quarto da biblioteca, que guarda os remanescentes da Livraria Sauret. Às vezes, na sala de jantar, usava a cadeira de balanço para ler. Por isso, se você ligasse, eu poderia estar do otrrrrro lado. Na mesma sala, entre candelabros de prata e um enorme espelho, minha mãe dava aulas particulares, em busca de sossego. Meu pai procurava revistas antigas na bibilioteca, principalmente as que traziam informações sobre política ou futebol. Meu irmão era muito pequeno ainda, mas hoje toma conta do computador que fica num dos três quartos. Só minha irmã ousava perturbar os mistérios que rondam a casa até hoje.

Mami veio antes da guerra; aliou ao sotaque francês vícios do espanhol que trouxe de terras do cone sul; casou-se no Brasil com o avô que tinha o meu nome; defendeu a França dos nazistas aqui mesmo no Rio – tinha até codinome; e falava muito pouco sobre tudo. O otrrrrro lado ainda é uma espécie de santuário, onde se respeita a história e o silêncio.

À noite, quando queríamos comer gelatina, eu e minha irmã entrávamos no apartamento dela de forma cautelosa, um passo de cada vez. Já que não havia movimento, não havia também motivos para desperdício e, assim, apenas um abajur ficava aceso. A escuridão restante era uma aventura para duas crianças com muita imaginação. No corredor, em posição privilegiada, de frente para sala (a do espelho enorme), ao lado da cozinha e a caminho dos quartos, ficava o pequeno quadro de uma moça que tinha um olhar talvez hipnotizante. Domi dizia que ela nos vigiava. Queria me assustar e me assustava. Mas tanto fez que também passou a ter medo ou acreditar no que dizia. Com os potes de gelatina, saíamos dali correndo, ela gritando, até fecharmos todas as portas no caminho até a nossa casa. Geralmente deixávamos a luz da cozinha acesa para poder voltar mais tarde, atrás de outra guloseima qualquer ou de um pouco mais de adrenalina.

Há muito tempo não frequento o otrrrrro lado à noite. Na verdade, não faço muita questão, porque as melhores lembranças são diurnas, dos livros e dos cafés da manhã que reuniam a família aos domingos. Domi se mudou pra Curitiba e para lá levou o quadro. No quarto de hóspedes do apartamento dela, onde sempre dormimos, um dia reencontrei a moça. Nada assustadora, coitada. Suspeito que ela e minha irmã tenham se acertado, mas nunca conversamos sobre isso.