sexta-feira, 20 de novembro de 2020

Minha amiga tristeza

 

Companheira da noite
Ela perturba o meu sono

Fugaz de dia
A tristeza vem sorrateira

Na falta de chão
Oferece apoio no ar
E a gente se segura como dá

Companheira da noite
Ela sonha junto comigo

Fugaz de dia
A tristeza vem aos espasmos

Na falta de quase tudo
Oferece tudo de novo
E a gente aceita sem desejar

Companheira e fugaz
Quer ser minha amiga
Quer ser o meu Norte

E de repente
Minha amiga tristeza é também alegria

E ainda assim...

Os dias são instáveis
Porque na falta de quase tudo
Não se deve esquecer de nada

As noites são insones
Porque tudo de novo
Não se faz em silêncio

quinta-feira, 12 de novembro de 2020

Tragam o vinho

Umas das minhas maiores privações atuais é a cozinha.

A importância dela ficou muito evidente durante a pandemia e, talvez por isso, faça ainda mais falta agora. O trabalho obrigatório em casa tornou quase diária a necessidade de eu parar um pouco antes do meio-dia para preparar o almoço. Quase porque havia sempre um dia da semana em que bastava cortar a salada para acompanhar o que sobrava das refeições anteriores. Era um pouco cansativo, mas prazeroso. Servia como terapia, para quebrar o ritmo e atenuar a ansiedade provocada pelo trabalho. Era um desafio que envolvia alguma criatividade para não repetir sabores e algum jogo de cintura para não perder muito tempo no preparo. E, mais importante, era um momento de doação.

O carinho começava no uso da faca para preparar os legumes em cubinhos e os vegetais para caberem em uma garfada. Continuava no cuidado em não misturar aquilo que poderia desagradar a um dos paladares. Terminava na vontade de acertar, o que nem sempre acontecia. Ao longo de todo esse processo, eu me sentia útil, eu me sentia feliz na tentativa de oferecer o meu melhor para quem sempre mais me importou. Comíamos em torno de uma mesinha dobrável, sentados no sofá e no chão, como acampados na própria sala, há muito tempo transformada em escritório. Esperava, apreensivo, a aprovação das alterações nos molhos ou de qualquer novidade que envolvesse risco.

Pouco antes de ver a minha vida transformada, tive uma experiência maravilhosa na cozinha. Num domingo de setembro, meu sobrinho chegou muito animado, vestido de avental, para cumprir com a função de sous-chef da cozinha do titio. Abracei muito forte aquela brincadeira, desejei que ela fosse uma experiência inesquecível para nós. E eu mal sabia que, ao menos naquela cozinha, ela jamais se repetiria. De chapéu e avental, deixei o mise en place em dois níveis: o da pia, que era o meu, e o da mesinha dobrável, aquela mesma dos almoços, para ele. Eric misturou a salada, moeu a pimenta e deu nome ao prato principal: frango com iogurte de morango. Era tomate, mas a fantasia funcionou.

Perdi quase tudo o que me era essencial no último mês, inclusive o acesso àquele espaço tão importante, que me fazia também reviver como protagonista momentos de doçura passados com as minhas duas avós.

Por enquanto, o melhor que posso fazer está aqui: usar as teclas como meus instrumentos, as palavras como ingredientes e a pontuação como tempero. Os parágrafos devem corresponder às etapas do preparo; e este texto, sem dúvidas, é o prato principal.

O que vocês estão esperando? Tragam o vinho!

A toalha é de papel, mas a inspiração está na mesa, meus amigos.

quinta-feira, 5 de novembro de 2020

As diversas mortes do futebol

O futebol morreu pela primeira vez quando meu pai brigou com o porteiro do prédio. O ingênuo funcionário não sabia que ensinar o hino do Flamengo para o meu irmão de 4 anos era um crime muito grave.

Morreu de novo quando o pai de um amigo da escola achou que era divertido pilhar o meu velho depois de um copo de uísque. Não, nunca houve agressão física, mas aqueles olhos vermelhos e o tom de voz ameaçador sempre me assustaram. No entanto, o futebol era o melhor programa que eu, um menino introspectivo, tinha com o melhor amigo (claro, o meu pai).

Até chegar à faculdade nunca tive muitos amigos tricolores. O sentido de minoria para mim sempre foi algo palpável graças ao futebol. Por outro lado, na turma da engenharia civil da UFRJ, por milagre, tinha até Fla x Flu nos churrascos. Assim, o futebol sobreviveu durante algum tempo.

O futebol voltou a morrer pouco antes de eu me casar. O fanatismo da família, eu incluído, sempre incomodou a Nane. Fomos uma única vez juntos a um jogo (Fluminense x São Paulo, nas Laranjeiras) para nunca mais. No nosso casamento, cuja festa se realizou no salão nobre do clube, o hino do Fluminense foi proibido. Uma decisão tomada pelo casal e respeitada por todos os presentes. Foi uma vitória do bom senso.

O nascimento de Alice me afastou ainda mais dos estádios, mas foi a proximidade com a política do clube que matou o futebol pela quarta vez. Conselheiro por dois mandatos, deixei de ir progressivamente aos jogos até a fatídica Libertadores de 2008 – uma exceção, recompensada pelos últimos momentos mágicos que vivi.

Depois, a bola se limitou a rolar online ou em pequenas comemorações com os amigos. Nem os títulos brasileiros de 2010 e 2012 foram capazes de mudar essa situação. A ida ao Maracanã se tornou eventual. Levei Alice apenas duas vezes: uma delas ainda em 2008, na despedida do Thiago Silva; a outra em 2015, contra o Goiás e na companhia de outros amigos com suas crianças. A primeira foi uma estupidez (ela tinha 3 anos); da segunda, não me arrependo.

Desde as eliminatórias da Copa de 2014, de uma certa maneira, troquei o Fluminense pela seleção francesa. E, nos últimos anos, fui a mais jogos da Superliga de vôlei feminino que aos estádios de futebol.

Há pouco tempo compreendi que o futebol morreu de vez naquele mesmo ano de 2015. Tinha prometido levar o Diogo, meu sobrinho Winarski, para fazer sua estreia no maior do mundo (hoje em dia, meio acanhado apesar de mais moderno). Chamei meu pai. Fomos os três. Chegamos atrasados, e ganhamos um presente inédito: debaixo de chuva, subimos a rampa do Maracanã no carrinho elétrico que ofereceram para levar o senhor idoso que nos acompanhava. Chovia muito, muito mesmo, mas foi divertido, apesar da derrota contra a Chapecoense.

Aquele jogo foi o último de pai e filho nos estádios. Ali, tudo o que eu entendia por futebol quando era criança foi finalmente sepultado.

quarta-feira, 28 de outubro de 2020

Uma Conversa Inesquecível

A conversa foi no domingo.

Amarante saiu de casa carregando tristeza e solidão. Uma tristeza jamais sentida. Uma solidão agravada pelas circunstâncias: um grupo de trabalho muito restrito, uma turma de mestrado sem liga e a pandemia.

Sem opções, saiu de dentro de si para buscar os velhos amigos no mundo possível – o virtual.

De sexta para sábado, aproveitou-se de uma piada publicada em um grupo de amigos do colégio. E, de madrugada, encontrou socorro e ouvidos.

Em outro momento, já na tarde sábado, de repente, uma mensagem surgiu na tela do celular: sonhei com você! Foi o que bastou para se abrir, ganhar carinho e choques de sinceridade.

Amarante começou a entender, de novo, que os velhos amigos permanecem conectados, mesmo que a vida os afaste e uma tela os separe.

Sim, ele saiu de casa no domingo. Depois de chorar muito ao telefone no sábado, havia aceitado o convite para o almoço, abrindo uma rara exceção naquele estranho ano de 2020.

Foram horas de conversa entre três pessoas. Os dois melhores amigos e a esposa do anfitrião. Amarante recebeu mais do que esperava: amor em forma de diagnóstico. A análise foi surpreendente de muitas maneiras. As diversas hipóteses que faziam girar sua cabeça foram confirmadas, e acabaram se tornando, no fim da tarde, um rascunho de uma dissertação sobre quase tudo o que se passa com ele.

Naquele domingo, Amarante reencontrou o amor. E não foi só o amor deles pelo compadre e parceiro de outros domingos em que se reuniam em família para juntar as crianças. Foi o amor dela por ele, um amor que deu aos dois velhos amigos uma conversa inesquecível. Uma conversa que preparou Amarante para a outra, mais dolorosa, que se daria à noite, com a filha.

Todas as perdas de agora são importantes demais. Daquilo que lhe é essencial, sobraram a filha e a caneta. Por isso, a dor persiste e, às vezes, se sobrepõe à razão.

Amarante está longe de entender tudo o que sente agora, por que sente, e por que, afinal, ainda a ama. Teima, ou apenas não consegue deixar de desejar que haja um retorno. Tenta, ao menos, afastá-la do texto, deixando-a aparecer apenas no penúltimo parágrafo.

Também reconhece que tem medo do que será, do que virá; e nem por isso se sente fraco. É chão que falta, não força. Pressente que, quando acontecer, seja lá o que for, ele se lembrará daquela conversa franca e amorosa, e os anos serão recontados a partir daquele domingo.