domingo, 21 de fevereiro de 2010

Cachinhos de Ouro, por Alice

Agora é a minha vez, pai. Era uma vez... o papai tá lendo jornal e a mamãe mexendo nas flores. O filho não está. Aqui ela lê as imagens. O ursinho é um traço pequeno, quase imperceptível. O livro é em inglês. Ela sabe, mas isso não faz diferença. Ela apenas identifica as letras. Mesmo assim, ensaia alguns sons e logo retorna ao português. Por que tem essas janelas? São quatro e ela mesma encontra explicação: da mamãe, do papai, do filho e da menininha. As duas primeiras páginas valem pelo livro inteiro. Ela ainda mantém a concentração. Tinha cadeira grande, cadeira média, cadeira do filho. E as camas. Agora ela conta a história, sem detalhes, com aparente pressa. Eu ajudo: o que eles iam tomar? Sopa. Eles saíram. A caixinha de ouro sentou na cadeira do papai. Corrijo: Cachinhos, de cabelo enroladinho. A cadeira dele é dura. A da mamãe é macia, a do filho é boa. E ajudo de novo: o que aconteceu com a cadeira? Ela quebrou. Depois, ignora a temperatura das sopas. Tenta o inglês de novo, algo como somebody to love. Com ritmo (Queen, graças a Glee). Caixinha dormiu. Vira as páginas e estala a língua. O que aconteceu, filha? Ela dormiu, pai. Já disse. E os ursos? Eles chegaram. O pai, a mãe e o filho. Aí... ela estala a língua de novo. Aí... ela cansou. A história é interrompida. Ela está satisfeita, abraça o livro e já aceita dormir. Mas não dorme. Eu saio do quarto. Ela ainda conversa com Caixinha, que saiu correndo da casa dos ursos. Ela pede música e eu volto. O Hoedown começa a tocar. Uma hora depois, a música para. Ela conversa com outros amigos. Eu vou à cozinha e abro a geladeira. Sinto falta do potinho de iogurte que restava. Alice e Cachinhos estão no quarto dividindo a mesma colher.

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Bendita Quarta-feira

Bom dia. Vamos consultar o roteiro dos blocos de hoje? Terça-feira de carnaval e de muito calor. Mais um dia daqueles! Muita animação? Nenhuma! Prefiro frio. Não gosto de multidão. Gosto de samba, mas não do que toca no carnaval, quando pouco se ouve além das marchas. Preciso saber dos blocos para fugir deles. Andar em paz pela cidade. Sem trânsito para chegar à casa meus pais. É aniversário do meu irmão e temos um almoço com hora marcada para terminar: antes dos blocos.

Saibam que, apesar da propaganda em torno da repressão, o cheiro de mijo está em toda parte. Junto ao portão da garagem, diz o porteiro, as meninas se agacham e mal se dão conta da câmera. Ele se diverte. É o big brother daqui. Da mesma forma, um lixo.

No carnaval do Rio, samba-enredo, alegorias e adereços são iguais todos os anos. Os destaques também: são os gringos que vem para se divertir e nada acrescentar, são os jogadores de futebol insinuando que a vitória perdoa qualquer irresponsabilidade, são as celebridades bissextas das comunidades.

Pra quem não quer ou não pode enfrentar horas de estrada, a melhor opção é ficar em casa, com ar-condicionado ligado, brincando de cinema. Ou dividir com amigos queridos, exilados que vêm matar saudades do Rio, o desconforto de um baile infantil e a busca por uma mesa de bar, uma daquelas para jogar conversa fora.

Bendita seja a quarta-feira de cinzas.

sábado, 6 de fevereiro de 2010

Antes do Sono

Estávamos os três no quarto dela, arrumando os livros. Ela aceitou a idéia de dar alguns para quem não tem, ou para bebês que ainda não sejam uma menina grande. Separamos em pilhas os que ela não queria mais e os de que mais gosta. Quando viu a bruxa Fofim, não hesitou: desse o papai gosta.

Ela dorme com música. Antes da música, quando já estou em casa, lemos um livro. Se não, mamãe canta para ela e, depois, deixa o CD tocar. Quando a vez é minha, procuro interpretar as histórias que leio. Como não consigo esconder as minhas preferências, ela rapidamente aprende o meu gosto. Mas, respeito o dela. Sejam princesas ou princesas, leio com voz de sapo, lobo e, claro, princesas.

Quando termino minha leitura, ela pede a vez. Repete a história do seu jeito, estalando a língua entre as frases, narrando com incontáveis “aís”. Faço perguntas para ajudar. Ela perde a paciência e fecha o livro pedindo que eu conte outra. Porém, é hora de dormir.

Minha maior dificuldade é convencê-la de que, com a luz já apagada, eu posso ainda contar histórias da minha cabeça. Muitas vezes, antes mesmo que eu consiga dar a opção, ela corta o meu barato: papai, da sua cabeça não! Então, é hora de dormir.

Lembro-me do tempo que minha avó, quando meus pais não estavam em casa, posicionava a cadeira estrategicamente no corredor e contava histórias da cabeça dela para mim e minha irmã, que dormíamos em quartos diferentes. O personagem principal se chamava Pedro. Era um modelo de criança. Pelo menos, não tinha os nossos defeitos.

Já a vaca Vitória era a preferida da outra avó, a mesma que gostava das balas e de pipoca. E, depois que a luz apaga aqui, isso é o melhor que consigo: fazê-la rir do pum na panela e acabar a história, porque já é hora. Saio do quarto, o CD toca e ela canta, às vezes dança, até dormir.