quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

Palmo e Meio, Aqui é o meu Lugar

Se olharmos com carinho para o passado, vamos reconhecer, provavelmente em alguma escola por que passamos, uma segunda casa. A minha ficava em Copacabana, onde morava com meus pais, tinha um muro amarelo e uma rampa comprida logo na entrada. As crianças vestiam jardineiras azuis e amarelas. A dona da escola parecia frágil de tão pequena, mas tinha voz de quem dá as ordens, reúne o rebanho e põe todo mundo para crescer. Tinha uma filha que seria herdeira daquela responsabilidade toda. E, claro, um coração enorme.

Seis anos atrás, quando saímos para procurar uma creche para Alice, era isso que eu esperava encontrar. Era isso que eu queria que ela tivesse: uma segunda casa.

Sábado passado Alice nos deu mais uma prova de que acertamos na escolha. Em meio às expectativas de cada uma das apresentações de fim de ano, nós nos emocionamos pela primeira vez com o que se repete todos os anos: o hino da Palmo e Meio. Alice chorava, mas não parava de cantar. Ela chorava porque sabia que aquela seria a última vez. E em todas as vezes que os nossos olhares se cruzaram, ela limpou o rosto e sorriu. Era o sorriso banguela mais lindo do mundo, que agradecia e já sentia saudades.

É por isso que não tenho dúvidas de que cada um dos alunos do primeiro ano já pode dizer que teve sua segunda casa: uma creche de muro rosa que ficava em Botafogo, onde usavam camisas cinza com duas crianças bordadas – os Palminhos. Era Dona Rosário quem cuidava da casa e tinha aquela mesma voz de quem dá as ordens, reúne o rebanho e põe todo mundo para crescer. Tinha também uma herdeira, Marina, e um coração em que cabiam todas as nossas crianças.

Naquela casa os nossos filhos aprenderam muito, inclusive a conviver com as diferenças da melhor forma possível: com naturalidade. Fizeram amigos para a vida inteira e nos deram novos amigos. Graças às nossas crianças, somos hoje pessoas melhores.

E como tudo na vida tem um fim, eles têm agora que aprender a dizer adeus sem se esquecer de dizer obrigado.

Eu faço este agradecimento, embora um tanto pessoal, em nome de todos os pais.

O maior dos agradecimentos virá mais tarde, quando as crianças já crescidas disserem com orgulho: Eu estudei na Palmo e Meio... Foi a Magda que me ensinou a escrever... Minha professora preferida se chamava Néa... Aprendi minhas primeiras palavras em inglês com a Michele... Até hoje eu me lembro das músicas da Cacau...

E se alguém perguntar – mas, afinal, onde fica mesmo essa escola? –, eles dirão sempre sorrindo: fica aqui, no meu coração.

quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

As Crônicas de Alice

Se escrevo tanto sobre minha filha, é porque me realizo como pai. Nas pequenas coisas, até numa saída repentina para tomar um sorvete.

Passamos aquele fim de tarde juntos, durante pouco mais de uma hora fomos ao Jardim Botânico e voltamos. Fomos de carro – péssima ideia, estava difícil achar uma vaga e não há criança que se silencie diante do tédio; por isso, prefiro passear a pé, de ônibus, de metrô, mesmo que ela reclame de dores nas pernas e tenha a cara-de-pau de pedir colo. Ao volante não posso fazer nada diante da ladainha da insatisfação.

Essa é a parte ruim da história, que ficou para trás quando fechei a porta do carro e ela me deu a mão.

Na sorveteria Alice provou os sabores mais diferentes: panetone, por exemplo. Mas preferiu manga, depois de estranhar bastante a minha escolha – tamarindo. Puxou uma cadeira de plástico para perto da rua porque estava com frio, para fugir do ventinho do ar condicionado. Puxou outra para que eu me sentasse ao seu lado. Lá ficou quietinha, quase sem falar, apenas saboreando o sorvete. São detalhes como esse, pequenas coisas, que ficam na minha cabeça e fazem perdurar a sensação de felicidade.

Enquanto escolhíamos os sabores e comprávamos uma caixa para a mamãe, que tinha ficado em casa, a vendedora quis conversa , achou que conhecia a menina. Eu disse que não costumávamos circular por ali, mas fiquei pensando , pai bobo que sou, se alguém pode se esquecer da minha filha quando a moça disse que podia ser de outro lugar.

Assim que saímos, de impulso, perguntei à criança se não queria entrar na livraria que ficava ao lado. Ela topou. São vontades como essa, de virar páginas e reconhecer as capas, que me fazem sorrir, ter certeza de que terei sempre companhia.

Ali ela se fartou com as coleções. Encontrou todas as que conhece, de Judy Moody a Harry Potter. Pediu para ver cada um dos volumes, em alguns casos empilhados uns sobre os outros. Com paciência, segurando a sacola com a caixa de sorvete, eu me equilibrava para desfazer as pilhas, mostrar os livros e reorganizar tudo de novo. Ela só parou com a brincadeira quando viu o primeiro dos livros de uma série chamada Monster High. Juntou as mãos, fez aquela carinha do gato de botas do desenho do Shrek e deixou os olhinhos pidões brilharem.

– Liga pra mamãe, pai?

– Por quê? Você quer o livro, não quer?

– Sim. Não tinha esse quando eu saí com a mamãe.

– A gente não precisa ligar pra ela. Eu vou comprar, tá bom?

O agradecimento veio da melhor forma possível: ela disse que também me daria um livro. Escolhi então o meu presente e me dirigi ao caixa. Enquanto abria a carteira, resolvi perguntar se ela tinha trazido dinheiro. A carinha dela, toda sem graça, dizendo que tinha esquecido, tentando se justificar, foi impagável. São instantes como esse, pequenas lembranças, que explicam as crônicas de Alice.

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Sempre Sofrido

As cuidadoras pediram demissão há três semanas. Imagina o desespero: eles têm um mês para substituí-las. A procura é difícil, as entrevistas angustiantes, as negociações sem fim, ou com um fim indesejado. Calejada, mas muito cansada, a nora se esforça para se manter de pé e tomar as decisões: conhece os riscos, físicos e financeiros, de uma escolha errada. As novas acompanhantes precisam ser fortes para aguentar o peso, ter boa referência e um olhar sincero para diminuir as chances de um futuro encontro no tribunal. Já se sabe que não há transparência nessas relações, e todas as alternativas são cercadas de dúvidas: em geral, elas mesmas não querem assinar carteira; e, para piorar, não são sequer suficientemente treinadas. O filho se antecipa, radicaliza, desconfia, instala câmeras, impõe novas regras ao cotidiano: eles não a deixam sozinha em casa, mesmo com alguma cuidadora presente. A imobilidade se torna uma doença contagiosa.

Há poucos dias deu infiltração no vizinho. Vão começar a quebrar o banheiro na segunda-feira. Onde ela vai tomar banho? Neste caso, resta apenas a criatividade das gambiarras, extensões que levem a água para onde seja possível se acomodar. A nora pede socorro, chora. O filho se revolta, bate nas paredes. Não há o que fazer.

É domingo, fim da tarde. Ouve-se fogos e a comemoração nas ruas. O telefone toca. A nora atende, abre um sorriso para dizer: Ganhamos! Passa para o filho, que mal consegue falar. A alegria momentânea se mistura às dores permanentes: Você viu? Sempre sofrido. O aparelho chega enfim as mãos trêmulas daquela que centraliza as atenções:

– É o seu neto – anuncia o filho.

Ela se esforça, mas não entende uma palavra do que o neto diz. No fundo, porém, sabe bem o motivo da conversa:

– O seu pai está muito feliz – ela afirma.

É domingo, início da noite. O neto veste a camisa tricolor e sai às ruas para curtir um pouco aquela vitória. A nora já se prepara para dormir. E o filho liga a televisão: quer ver e rever os gols, assistir a todas as resenhas esportivas, acompanhar a chegada do time campeão brasileiro ao aeroporto. Todos querem se esquecer de que amanhã é segunda.

domingo, 28 de outubro de 2012

Oficinas e Confissões

Desde o início de agosto estou frequentando uma oficina de romance. Para quem acompanha meu blog, pode parecer estranho: minhas publicações costumam ser concisas, crônicas em sua maior parte. Porém, tenho um rascunho de um livro que poucos leram. O texto é autobiográfico, foi construído durante outra oficina que fiz no ano passado. Quero agora descobrir se o que então escrevi é só um exercício de autoficção, uma experiência de autoconhecimento. Pode ser, ou não. A oficina de romance me ajudou a pensar no projeto. Até então eu tinha deixado a coisa fluir e, de fato, não tenho muito problema com a escrita criativa. As ideias vêm e colam no papel. O blog me ajuda muito com isso. O blog é o meu laboratório; por isso, não penso em publicar o que está lá. Depois do fim da oficina de autoficção, revisei o meu rascunho umas três vezes, investindo mais na coerência da história e no cuidado com a linguagem. Agora tento dar corpo à história, trabalhar os personagens, falar mais deles ou fazê-los falar. O caminho é muito longo porque o tempo é curto. E não bastam as brechas que tenho durante o dia. Essas só servem para o blog, para os devaneios diminutos. O que eu guardo comigo é algo maior, que exige algum sacrifício, compreensão de quem está ao meu lado. Faço contas também (os números não me largam): talvez seja um romance do tamanho de um conto, uma novela, algo indefinido. Mas isso é o que menos importa. O que vale é tentar, ainda que o tempo seja limitado pela própria oficina, que propõe a leitura de clássicos. Li a metade do primeiro livro de Dom Quixote em agosto e me diverti muito; mergulhei no crime de Raskolnikov no mês seguinte e não consegui largar; e agora sigo os passos de Josef K. em seu processo. Logo no início do curso eu me dei conta que li poucos romances e muitos contos dos autores clássicos, inclusive Kafka. Durante o segundo mês, tive certeza de que Dostoievski é essencial, obrigatório. E acabei demorando dois meses para recomeçar a escrever. Assim, tudo o que a professora Carola Saavedra leu até agora foi o que Ana Letícia Leal tinha lido um ano atrás, com algumas revisões, mas um esboço ainda. E não é só o tempo que limita meus passos. Há outra grande questão envolvendo o meu livro – gosto de tratá-lo assim, embora não saiba ainda onde pode chegar: é mais fácil, em um primeiro momento, escrever sobre personagens conhecidos, usando seus nomes verdadeiros e boa parte de suas características, de seus trejeitos. Entretanto, depois vem a dúvida, a culpa. Embora poucos tenham lido até agora, eu já escolhi expor a minha família. Por isso, pode ser, ou não, que seja apenas um exercício. De tolerância, com certeza: é uma oportunidade de me colocar no lugar de cada uma das pessoas que me importam tanto. Decidi que por enquanto vou em frente, vou enfrentar meus próprios pudores antes de recorrer à ficção, antes de trocar os nomes e revisar motivos se me parecer necessário. Daqui a alguns anos, quando você comprar o meu livro, é possível que leia uma história bem diferente da que tenho hoje, e que seja resultado de outra experiência, de ideias adormecidas. Porque eu quero que você leia um livro meu, voltei a investir no meu rascunho nos dois últimos fins de semana, trabalhei muito os capítulos iniciais. Mesmo que os detetives selvagens de Roberto Bolaño me absorvam no último mês, não vou deixar a oportunidade passar. Tenho que aproveitar o final do curso. É um compromisso. E agora você pode ser meu cúmplice ou fiscal, como preferir.

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

A Escolha da Vez

Nós nos sentamos na segunda fileira do auditório lotado. Como a maioria, éramos três: pais e filha. E tudo era novidade: aquele espaço enorme, aquela gente, o protocolo. Ali ouvimos o improviso da coordenadora, as perguntas dos outros pais e as respostas dadas em nome da escola. Nada muito diferente do primeiro encontro, semanas antes, sem as crianças. Por isso, até começarem a chamá-las, por nome e sobrenome, deixamo-nos levar pelo tempo com certa parcimônia.

Na vez dela, sentimos um aperto no coração, e os meus olhos chegaram a marejar. Ela estava nervosa, claro; apertava o estojo com a mão, mantinha o seu olhar conectado ao nosso. Premiada pela ordem alfabética, foi a primeira de seu grupo, um dos três que formavam a turma de candidatos ao segundo ano do ensino fundamental. Por isso, ganhou a companhia da professora que puxava a fila e lhe ofereceu a mão. E, parecendo mais calma, partiu sozinha, carregando nome, sobrenome e algo mais.

Embora a nossa decisão já estivesse tomada e não fosse ela por aquela escola, investimos na experiência: as provas duraram a manhã inteira. Um pequeno vestibular: antes do lanche, português; depois, matemática. Enquanto ela se virava com as questões postas no papel, nós esperávamos ansiosos no pátio, lembrando as primeiras conquistas, fazendo conjecturas sobre o futuro, querendo muito acertar de novo. Como daquela vez, seis anos atrás, quando escolhemos a Creche Palmo e Meio; como há um ano, quando insistimos que lá mesmo ela fosse alfabetizada.

Passados dez dias daquela aventura por um mundo muito maior do que aquele que ela conhece, estamos suficientemente seguros. Depois de descartar alternativas, levar duas quase até o fim, vimos a nossa pequena menina tirar de letra as avaliações, enfrentar a sua primeira relação candidato-vaga e, quanto orgulho, conquistar sua maior vitória: o direito de escolher. Entre uma escola e outra, ela nos confirmou que a vontade dela é também a nossa. Agora, resta comemorar com ela o fim de uma etapa, agradecer a todos que nos ajudaram, e aguardar o que vem por aí no ritmo que tem que ser: um degrau de cada vez, um palmo atrás do outro. 

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

O Mistério de Cosme e Damião

Estávamos apenas os dois em casa no domingo. Mamãe viajava. Pegamos o ônibus de manhã para irmos à Primavera dos Livros. E ela reconheceu o caminho que fizemos de outra vez, para o meu trabalho, nas férias de julho. Assim que chegamos, perguntou qual era o nome daquele lugar, o Museu da República. Durante todo o dia, repetimos algumas vezes a palavra república para que ela não caísse no esquecimento. Ali, no Museu da República, Alice se divertiu atravessando as pequenas pontes sobre o lago, indo até as pedras, para ver a tartaruga mais de perto. Brincou também no parquinho e andou pelos estandes procurando por amigos. Encontramos Marcelo autografando seu Palladinum; e eu encontrei os livros que queria.

Voltamos de metrô e almoçamos no shopping das escadas rolantes. A comida portuguesa me fez acreditar que ela fosse escolher bacalhau, mas Alice preferiu frango. Recusou os doces, e eu fiquei babando. Pediu sorvete de sobremesa, de iogurte rosa e branco, com granulados coloridos e marshmallows. Ela me ofereceu diversas colheradas quando sentamos em um banco nos corredores do primeiro piso: É, pai, esquecemos de pegar outra colher. Partimos antes de terminarmos o pote; desta vez, caminhando.

Resolvemos entrar na Casa de Rui Barbosa. E ela fez algumas perguntas enquanto passeávamos pelo jardim. Quem era? Eu mostrei o busto logo na entrada. Mas o que ele fazia? Tentei não explicar muito: era uma pessoa importante, que seu bisavô conhecia, o bisavô que tinha o nome igual ao meu. E ele nasceu muito antes de você? E do vovô? Continuou, e depois ela quis entrar na casa, para ver o banheiro e os sofás que havia na sala. Eu disse que achava melhor deixar para depois, quando aprendesse sobre ele na escola, nas aulas de história. Ela entendeu e, ainda no jardim, trouxe o assunto dos irmãos. Aqueles que morreram. Um deles se chamava... o nome dele se parecia com Daniel. Eram gêmeos. Era o Damião.

Depois de deixar a casa, passamos pela Igreja de Santo Inácio e pela vila onde mamãe tinha morado quando criança, antes de chegar ao Museu do Índio. Até lá, rendeu muito a história de Cosme e seu irmão. A professora não tinha dito como eles tinham morrido, e Alice estava curiosa. Eu respondi somente que eles tinham sido mortos por homens muito maus. Não bastou: disse que podíamos perguntar para a vovó, ou procurar na Internet. Só esqueceu o assunto quando avistou os painéis pendurados na grade do museu.

Sobre os índios, mais perguntas, todas orientadas pelas fotografias que contornavam a casa. Como eles tomam banho? No rio. Eles não usam xampu? Não. O que comem? Peixe, que pescam no rio. E de sobremesa? Ela mesma respondeu: Fruta, né, pai? Não terminou aí. Ficou muito intrigada com o nome da exposição: Presença Invisível. Por que invisível, se eu estou vendo? O que é invisível aqui? O ambiente escuro das salas e o segurança, que caminhava de um lado para outro, aparecia e desaparecia, só vieram a aumentar o mistério. Ele é da polícia, não vai deixar eu mexer nos carimbos, né? Foi difícil convencer, mas ela saiu com os braços tatuados com as pinturas indígenas. Chegou assim na loja, para conhecer um índio de verdade. Ele perguntou do que ela mais tinha gostado no museu, depois mostrou os anéis e os colares de açaí.

Saímos de lá um pouco antes das quatro da tarde, ela com um anel no dedo. Em casa, voltou a perguntar sobre a morte de Cosme e Damião. Procurei na Internet, li que existem algumas versões, talvez tenham sido afogados, queimados, não se sabe. Ela não se satisfez: Depois pergunta pra vovó, tá? Mais uma vez, insistiu: Estou muito curiosa, pai.

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Outras Questões Essenciais

Dias depois, eram quase seis horas da tarde quando ela retomou a onda de perguntas sem fim. Eu não tinha voltado do trabalho e coube à Nane lidar com questões ainda mais cabeludas, que tiveram origem na lembrança das falecidas cachorrinhas da família, que moravam em Iguaba e, na verdade, Alice pouco via.

– Estou muito triste. Eu amava a Tula e a Princesa, sabe?... Mamãe, e a Fibi? Ela também vai morrer? – choramingou.

Fibi cresceu junto com Alice, mora com a titia, ainda late bastante, mas agora tem as barbas bem branquinhas. Nane respondeu o que ela já sabe, que todos nós vamos morrer um dia.

– Mas eu não quero que você morra, mãe! – disse e desatou a chorar.

Depois que se recuperou dos soluços e conseguiu se acalmar, continuou disparando:

– Deus está aqui? Ele é invisível? Está ouvindo a nossa conversa?

A cada resposta afirmativa, ela se animava. Às vezes, repetia as perguntas para ter certeza; outras vezes, dava voltas, antes de encontrar uma pergunta mais interessante:

– E eu posso conversar com Ele?

Nane disse que sim, que era só falar baixinho. Alice contou então que ia pedir a Deus que deixasse a mãe viver até os 190 anos. Eu também teria esse privilégio duvidoso.

Pensar nos pais bem velhinhos trouxe o assunto da morte de volta:

– Tipo: o que acontece quando a gente morre?

A curiosidade de Alice com cemitérios já vem de algum tempo e pode ter a ver também com a turma do Penadinho. Já estamos devendo inclusive uma visita ao São João Batista, que fica bem perto de casa. Por isso, foi mais fácil para Nane falar sobre o destino da matéria e não entrar nos detalhes do espírito e da fé. Ela respondeu que somos enterrados.

– O vovô está no cemitério, né?

– Sim, mas ele não está aqui perto. O vovô Ed está em São Paulo.

– Hum... E o Michael Jackson, ele está aqui?

E foi assim que terminou a segunda série de questões essenciais da Alice.

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Questões Essenciais

Eram quase onze horas e Alice ainda estava acordada. Resolvi deitar ao seu lado para tentar ajudar, perguntei o que estava acontecendo, por que não conseguia dormir, e ela desandou a perguntar:

– Antes... bem antes, tinha planeta? Como eles começaram, pai?

Falei dos cientistas, de pesquisas e da explosão que deu origem a tudo. Também das estrelas. E disse que o sol era uma estrela.

– Mas ele é assim... – com o dedo, ela desenhou um círculo no escuro e continuou – pai, eu queria saber mais duas coisas.

Ela queria saber sobre a origem dos armários. Fácil: um homem, que precisava guardar suas coisas, teve uma grande ideia, fez um desenho, cortou madeira e mãos à obra! Assim que relacionei a madeira à árvore, ela foi ao xis da questão:

– Eu sei, pai. Mas, e a semente?

Escapei de mais explicações quando ela ensaiou o sinal da cruz. Já que havia um interesse óbvio sobre as origens das coisas, preferi falar da Santíssima Trindade. Quando cheguei ao Espírito Santo, os olhos de Hermione brilharam:

– Deus tem magia?!

A curiosidade parecia interminável. Ela tinha dito que seriam mais duas perguntas, mas, naquele ritmo, poderiam chegar a vinte. Era por isso que não conseguia dormir: a cabecinha não parava de trabalhar.

– Teve guerra aqui?

Contei que tivemos poucas guerras no Brasil. E ainda que, quando o vovô era criança, aconteceu a maior delas, na França e em outros países que ficam bem longe.

– Teve gente que morreu por isso?

Não menti e aproveitei para tentar encerrar a conversa. Não era hora de pensar em tanta coisa. Insisti: ela tinha que descansar a cabecinha para conseguir dormir. Não adiantou, e o assunto mudou de novo.

– Antes eram índios que moravam aqui. Onde eles moram agora?

Alice respondeu antes de mim: os índios vivem em uma ilha. Em seguida, junto com a tribo, ela trouxe sérios questionamentos sobre os pés do curupira e a perna do saci. Não aguentei tanta imaginação e quase implorei pelo fim da história. Ela propôs o seguinte:

– Pai, a gente pode ver os planetas na Internet e visitar os índios na ilha deles.

Já decidi que o Planetário e o Museu do Índio vão entrar na agenda da Alice. Os temas de guerra e paz podem esperar.

domingo, 9 de setembro de 2012

Os Anos de Amarante

Passa da meia-noite. Amarante espera que todos estejam dormindo para entrar no banheiro. Minutos depois de receber os primeiros beijos pelo seu aniversário, acende a luz e fixa os olhos no espelho, como há muito tempo não fazia.

Os cabelos escassos já o incomodam, embora tenham volume suficiente para um disfarce que não pareça ridículo. Por outro lado, os fios brancos estão bem distribuídos, não alteram ainda a cor do conjunto. Entretanto, são bastante revoltados, resistem muito à escova. Amarante procura pela pinça e escolhe alguns para arrancar.

A barba é crise antiga – a pele é sensível demais às lâminas. Fica assim, por fazer, desde sempre, até que alguma dermatite se manifeste na pele oleosa. Adia o quanto pode, mas agora, além da vermelhidão e da coceira, há pelos brancos em quantidade. Eles se concentram à direita do queixo e marcam uma assimetria desagradável no rosto. Amarante decide se antecipar e raspá-los para as comemorações.

Para não perturbar o sono da mulher e da filha, Amarante deixa o barbeador elétrico na gaveta. Escolhe as lâminas, e a cada passagem delas, dá um passo para um reencontro inesperado com sua juventude. Quando restam pelos grudados na bochecha, alguma espuma nas orelhas e um pequeno ferimento no pescoço, a versão que surge no espelho puxa assunto:

– Quantos anos?

– Quase trinta e oito. Nasci às duas da manhã.

– São dezoito de diferença...

– O que você faz aqui?

– Queria saber aonde você chegou, depois de tanto tempo.

– Aonde a sua obediência me levou. Você, afinal, tem medo do quê?

– Não tenho medo, só não gosto de errar. Aliás, se esta fosse uma chance de interferir com o seu passado, o que você me diria?

– Perca o medo de errar! Mas não tente ir contra a sua natureza. Você daria um péssimo rebelde.

– O que mais?

– Afinal, é uma chance de mudar ou não? E quem vai mudar, eu ou você?

– Você não vai me responder?

– Use melhor as suas horas. Faça as suas escolhas e preencha o seu tempo. Pare de se lamentar.

– Não entendi. Eu já faço tanta coisa...

– Você acha que faz. Na verdade, você faz muito da mesma coisa e não é feliz. Não tenha medo de sentir prazer. O que você faria com prazer?

– Ler um livro. Escrever uma história.

– Escreva, então! É importante produzir. Também tem medo de se expor? Aliás, de onde vem esse medo? Por que você não quer errar?

– As pessoas parecem tão tristes, tão insatisfeitas. Eu me sinto como um fio de esperança. É uma espécie de missão, entende? Por isso, não quero decepcionar ninguém.

– E acha mesmo que a sua insatisfação vai torná-las mais felizes?

– Chega! Cansei desse papo. E você, fez alguma coisa para mudar?

– Não fiz até correr o risco de perder o que conquistei de mais importante. Desde então, eu me esforço para fazer tudo ao mesmo tempo: o que eu quero e o que eu preciso fazer. Sofro de excessos, mas não por excessos. É melhor assim.

– O que é tão importante para você?

– Aquilo que escolhi conquistar.

– Algo que eu possa ver?

– Não, estão dormindo.

– Ah! Mas, afinal, vamos chegar a algum lugar?

– Não sei. Falta tempo para escrever tudo o que você deixou de escrever. Além disso, tenho hoje responsabilidades que você não tem. Daqui a dois anos, aos quarenta, quando eu tiver menos cabelos e a barba estiver totalmente branca, podemos reescrever esta conversa. Combinado?

As referências às marcas do tempo desviam a atenção de Amarante para um quisto sob o olho esquerdo, e o jovem no espelho não tem tempo de responder, desaparece deixando os registros do diálogo para trás.

– O médico disse que não era tersol, que vai ficar assim – ele fala sozinho agora.

E pouco importa que ninguém perceba – Amarante não consegue tirar os olhos da pequena saliência que se destaca ao lado do canal lacrimal. Por isso, decide apagar a luz antes mesmo de limpar o rosto. Carrega todos os excessos para cama. Está cansado, mas não dá chance à insônia: hoje vive ansioso, mas dorme sereno.

domingo, 2 de setembro de 2012

Dalila em Meia Conversa

Quando o celular da mulher que estava sentada ao meu lado tocou, abri os olhos e parei para prestar atenção:

Filha, você não está me entendendo... isso que você fez foi burrice. Por que cortou o cabelo? O Johnny vai ficar irritado quando souber. Ele disse que precisava de uma menina loira com cabelo na cintura. Não era no pescoço; era na cintura! E só tirou as fotos porque eu insisti. Você não lembra? O prazo já tinha terminado. Era domingo, esqueceu? Agora, se você for chamada, podem até recusar o seu teste. Nunca mais você terá outra chance. E quando ele souber, vai me esculachar. Perdi a cartada. Que burrice, Dalila! Era a chance da sua vida. Pra trabalhar na TV, ganhar muito dinheiro. Não é isso que você quer? O quê? O que você está me dizendo? De preto?! Não bastava cortar, você tinha pintar também! É o fim. Pra mudar o visual, sei. Eu preciso repetir, Dalila? Ele precisava de uma menina loira com cabelo na cintura. Você não entendeu mesmo... Liga pra ele. É, diz pra ele que cortou o cabelo, que pintou o cabelo, que queria acabar comigo. Como eu posso ficar calma, Dalila? Não, você não vai falar com seu pai. Eu não quero que ele se meta na sua vida. Filha, aquela novela dá uma projeção enorme, é o caminho do sucesso! Era, né? Não, não estou dizendo que você já perdeu a chance, mas está se esforçando bastante pra isso. Mas se você perder o teste, vai se ver comigo. Já combinou com a Mabel? Ela sabe onde pega o ônibus. Então, tá esperando o quê? Liga logo pra ela, menina. Não tenho dinheiro pra táxi. Já disse, esquece o seu pai. O que você já falou com ele? Pra que fazer um curso de interpretação? Não precisa disso. Primeiro, põe uma peruca e faz o teste. Não, não estou brincando. Depois que for selecionada, e estiver ganhando muito dinheiro, pode fazer o que quiser. E eu não tenho dinheiro pra pagar! Não, já disse que quero o seu pai fora dessa conversa. Ele paga uma mixaria de pensão. Não vai pagar seu curso, não quero que ele pague. Por hoje chega, Dalila. Só falta você aparecer com uma tatuagem agora. Hein? Você tem uma tatuagem? Não acredito no que você está me dizendo! Você se superou agora. Eu devo estar sonhando. Que tatuagem, menina? Quando você fez? Atrás da orelha, Dalila? E você cortou o cabelo pra mostrar a tatuagem... Deve estar quase careca, então. Duas estrelas: uma verde e outra dourada... Não acredito mesmo, Dalila. Você pirou de vez. Pelo amor de Deus, chega! Se você não quer se dar bem, é problema seu. Mas não vem me pedir dinheiro, não, tá? Vou chegar tarde hoje. Amanhã a gente se fala. Isso, depois do teste. E se não tiver teste, é melhor você não aparecer. Tchau, Dalila.

A mulher desligou o celular e deu um suspiro. O meu suspiro veio em seguida, foi ainda maior que o dela. Acho que ela percebeu.

Depois que desci do ônibus, sentei no banco da praça, tirei o caderno da mochila e desandei a escrever. Pretendia que fosse um tratado contra aquela mãe. Desisti: arranquei a folha e amassei.

Mais tarde, em casa, voltei ao tema: preferi colorir a meia conversa com um pouco de imaginação, decidi dar personalidade à Dalila, acreditar que a filha tem salvação.

quarta-feira, 22 de agosto de 2012

Alice Vai ao Corcovado

Alice nasceu em Santa Tereza, no Hospital Silvestre, mais perto do Corcovado do que imagina. Conhece o Cristo da varanda aqui de casa. Sabe que às vezes ele se esconde atrás das nuvens que, quando estão escuras, trazem muita chuva. Sabe também que, em dias de muito calor, nós nos escondemos dele, atrás do toldo que bloqueia a luz do sol e entristece a sala. Desde muito pequena, participa com gosto desse jogo de gato e rato. E prefere encontrá-lo à noite, quando fica iluminado e, em ocasiões especiais, muda até de cor.

Nos tempos em que preferia os gestos às palavras, Alice juntava as pernas e abria os braços para mostrar o Cristo às visitas. Mais tarde, quando as palavras já saíam em profusão, a cidade se transformou em projeto na escola e ela passou a reconhecer os monumentos, a falar da Lapa como se frequentasse a boemia, a mostrar intimidade com a gafieira. Já conhecia então o Pão de Açúcar, por duas vezes tinha andado de bondinho, mas faltava ir ao Corcovado e dar fim àquela brincadeira de pique-esconde.

A oportunidade apareceu no domingo passado, de supetão. Primos paulistas muito queridos estavam no Rio e, de manhã, fizeram a proposta por telefone. Topamos sem hesitar: enfim Alice vai ao Corcovado!

Chegamos ao Cosme Velho em torno de uma hora da tarde e tivemos logo uma frustração: ingressos para o trenzinho só para dali a duas horas. Decidimos aceitar a única alternativa de transporte disponível, lamentando muito o fato de Alice perder o passeio de trem. Mas ela nem se importou, disse que não tinha problema, pois seria também sua primeira vez dentro de uma van.

Com o estômago felizmente vazio, suportou bem as curvas morro acima. Quando preferimos evitar a fila dos elevadores, encarou com coragem a escadaria e nos fez prometer voltar às lojinhas de bugigangas. Misturada aos turistas, Alice tirou fotos dos primos e do Cristo. No meu colo, avistou o clube à beira da Lagoa e o prédio onde moramos – e quando achou, telefonou para titia, que também mora ali, dois andares abaixo, para distribuir acenos com animação, quase aos gritos (que o titio garante ter escutado).

Acabou merecendo o pingente que compramos no caminho de volta, antes de enjoar na descida, reclamar de dor de cabeça, lembrar-se da fome, antes de perceber que a parte boa do passeio tinha terminado.

domingo, 12 de agosto de 2012

Dezenas

A caminho da escola, de mãos entrelaçadas, mal conversamos. Às vezes, sinto muito pelo desperdício de tempo, por não aproveitarmos o momento que temos sozinhos. Contudo, pela manhã, mais que em qualquer outra hora do dia, eu prefiro o silêncio; e ela também não quer muito papo, prefere cantar alguma música, já ensaia até assobiar, sempre arrastando a mochila com rodinhas.

Eu permaneço calado, tentando pensar em alguma coisa que talvez nos aproxime em momento tão improvável. Parece sempre muito cedo para raciocinar, mas encontro espaço para a obsessão da semana: as dezenas que teimam em entrar na cabeça de Alice.

A ideia de aproveitar a numeração dos prédios só funciona quando chegamos à esquina da rua onde fica a creche. Até ali, apenas os números centenários das portarias da Voluntários. O número da casa que fica na calçada oposta, um laboratório, é oitenta e oito. Ela diz que não vê, a árvore esconde; um cachorro late e distrai a menina. Para seguir em frente, eu garanto que vamos encontrar outros números.

Agora afobada, ela encontra a casa oitenta e nove. Eu confirmo a dezena: muito bem, é oitenta! Mas o número que vem depois não é o nove... Ela mesma se corrige: é oitenta e dois. Dali em diante, Alice interrompe o passeio diversas vezes. E eu ignoro a pressa habitual e espero, com muita paciência, que ela diga cada um dos números – quase todos certos. A hesitação aparece apenas quando ela confunde o sessenta com o setenta, e vice-versa.

Depois do beijo de despedida, fico com o sorriso banguela e as dezenas na cabeça. Não tenho certeza ainda de que o problema está resolvido. Retorno pelo mesmo caminho revivendo os números, satisfeito com o interesse dela e com o tempo que passamos juntos. Até chegar ao ponto de ônibus, curto uma ingênua sensação de dever cumprido. Quando encontro o meu assento, coloco os fones de ouvidos e tento adiar as lembranças dos compromissos que tenho pela frente.

Volto tarde para casa. Alice já está deitada, mas levanta assim que ouve a minha voz. Finge que não me vê, pergunta para Nane se vou demorar, diz que precisa falar comigo.  Quando dá as costas, ganha o meu abraço surpresa e sorri com a gengiva. Vamos juntos até a cama, onde deito com ela por alguns minutos. Ela pede algum carinho antes de eu ir embora.

À mesa, Nane tem novidades. Conversamos enquanto eu preparo um lanche e ela ainda trabalha. Diz que na agenda da escola veio um elogio para Alice – parece que ela foi muito bem no dever de matemática. Desta vez, aquela mesma ingênua sensação de dever cumprido toma conta de mim: será que foram as dezenas que encontramos pelo caminho? 

quarta-feira, 1 de agosto de 2012

Milagres Fotográficos

Texto de ficção baseado em trabalho premiado do fotógrafo Pedro Trindade,
que mantém o site www.ecoclics.com.br

Para ver a foto, CLIQUE AQUI


Manoel, o guia contratado por Pedro em Paraty, insistiu com a história do velho com o cajado na mão. Garantiu que era figura rabiscada pelos índios em uma gruta há muito mais tempo que qualquer um pudesse imaginar. Vendeu, assim, o passeio para o fotógrafo. Combinou que partiriam na manhã seguinte, bem cedo porque a caminhada era longa. Não contava, porém, com o imprevisto: a febre da filha começou depois do jantar e não cedeu de madrugada. No início da manhã, antes de ir ao pronto-socorro, chamou José, que saía de mochila para a escola.

José, filho do vizinho, decidiu matar a aula para ganhar um trocado. Não contou a Manoel que conhecia a trilha mas nunca tinha entrado na gruta. Também não revelou que morria de medo das histórias que contavam sobre a antiga pintura. Diziam que era um profeta, e que ele transformava a vida dos visitantes. Ainda assim, sem tirar a mochila nas costas, saiu para encontrar o fotógrafo. Na recepção do hotel, explicou o motivo da ausência do guia e disse que era seu substituto. Quando chegaram à praia, na metade do caminho, pararam para lanchar. Ali viu Iracema pela primeira vez.

Iracema, a bela moça que molhava os pés sentada sobre uma pedra, estava sozinha. Viu os estranhos se aproximarem, mas fingiu desinteresse. Quando eles puxaram assunto, desandou a falar. Estava ali para descansar enquanto um casal de amigos procurava por uma gruta no fim da trilha. Disse que lá tinham um encontro com Deus. Gostou muito do sorriso de José, que permanecia calado. Entendeu a coincidência como destino e acabou aceitando o convite de caminharem juntos ao encontro de seus amigos. Assim que descobriu que Pedro era fotógrafo, parou de provocar o menino e ofereceu-se para posar.

Pedro, o turista que confiou na promessa de Manoel, não escondeu a frustração quando percebeu que José se afastou, confessando em silêncio que não sabia onde ficava o desenho. Aproveitou-se do desejo de Iracema para tirar muitas fotos e não dar a viagem como perdida. Escolheu primeiro uma moldura de pedras com algumas frestas de luz. Depois, enquadrou o vão de entrada da gruta à esquerda e chamou a modelo para posar. Clicou sua melhor foto depois de um passo que a moça deu, logo que ela virou o rosto, antes de ouvir o chamado de seus amigos que tinham acabado de encontrar José.

A surpresa aconteceu dias depois, quando Pedro revelou as fotografias tiradas em Paraty. O velho estava lá, sobre a moldura de pedras, pouco acima de onde Iracema fazia a pose, e com o tal cajado na mão. Sabe-se que aquela foto rendeu a Pedro um prêmio internacional. Dizem que deu a Iracema e José um primeiro amor. E há quem acredite até que curou a filha de Manoel.

terça-feira, 24 de julho de 2012

Entrevista com Mami

A lucidez sai do nevoeiro à medida que o dia avança. Há dias melhores que outros. Aquele era um bom dia. Tão bom que valia a tentativa, ou a petulância. Fiz a entrevista com a câmera do celular à mesa do almoço.

Comecei pela pergunta óbvia: qual o seu nome? A audição já não funciona como antes, tive que repetir: qual o seu nome? É Mamiiiiii. Foi assim, com a vogal mais prolongada que o normal. E quantos anos você tem? A primeira resposta foi uma gargalhada, entre sarcástica e incrédula. Depois, veio a sentença: Que desaforo! Ele quer saber a minha idade, disse ainda inconformada. Mami continuou rindo até que eu perguntei do namorado. Ela fechou a cara: eu não tenho namorado.

Mudei o foco das perguntas: Qual o nome da sua bisneta? Ah! Deve ser a meninota. Qual o nome dela? Mimi. Ela chamava a minha irmã de Mimi. Eu corrigi: é Alice. E ela repetiu, separando as sílabas: A-li-ce.

Meu pai insistiu com assuntos aleatórios, gracejos que fazemos na intimidade da família. Mais uma vez, ela reagiu: Que horror! Você está me confundindo. Naquele momento, a sobremesa chegou à mesa e meu pai deixou as bobagens de lado. Entre os doces de coco e de manga, ela preferiu o segundo.

A entrevista já durava mais de três minutos, parecia suficientemente extensa para a lucidez dela e para a memória do meu celular. Por isso, resolvi voltar ao desafio e às perguntas relevantes: O que estamos comemorando hoje? A resposta foi imediata e parecia óbvia: o aniversário de seu pai. E o que mais? E da França também. Vencido o 14 de julho, mais um, interrompi a gravação.

domingo, 15 de julho de 2012

Bigode e Barriga

11 de dezembro de 1983

Mais de quarenta minutos do segundo tempo de um jogo sem gols. Estávamos sentados nas cadeiras azuis, atrás da baliza que fica à direita das cabines de rádio. Era dali que assistíamos à maioria das partidas. Eu tinha nove anos, as aulas do terceiro ano primário já haviam terminado, e futebol era uma brincadeira quase solitária, de pai e filho – meus amigos não eram tricolores. Restava pouco tempo para que o placar se alterasse. Por isso, eu tinha certeza de que era hora de ir embora. Era sempre assim: em jogos de duas torcidas, clássicos cariocas, saíamos antes do fim porque meu pai temia cruzar com os adversários em torno do estádio. Mas naquele dia, foi diferente quando trocamos os olhares e perguntei: Vamos? Não sei se era a companhia do amigo rubro-negro, não sei se era a esperança ignorando o medo... Ele decidiu ficar.

Dali, daquelas cadeiras azuis que o Maracanã não tem mais, era impossível distinguir as linhas divisórias do campo. Dali, não tínhamos qualquer noção de profundidade. Vimos, entretanto, aos quarenta e tantos minutos, o mulato de uniforme branco correr em nossa direção. A bola subiu e desceu para encontrar seus pés. Não percebemos quando ele chutou porque o goleiro encobria nossa visão. Vimos apenas a rede estufar de leve. Não guardo outras imagens que as da televisão: um Assis incrédulo, com o bigode sorrindo, tão feliz quanto qualquer um de nós.

25 de junho de 1995

Estávamos de novo sentados nas cadeiras azuis, mais próximos à bandeirinha de escanteio; como sempre, à direita das cabines. O futebol não era mais uma brincadeira restrita ao pai e ao filho. No estádio, minha irmã e meu irmão nos faziam companhia. Na faculdade, o Fla x Flu dos churrascos era um grande barato. Mas o tempo cruel tinha deixado os tricolores quase dez anos sem título. E, naquele ano, o adversário comemorava o centenário, tinha técnico e elenco, mas não tinha ainda nos vencido. Abrimos dois gols de vantagem no primeiro tempo, eles empataram no segundo. Logo depois do segundo gol, uma expulsão me fez reviver a hora de partir. Daquela vez, eram três filhos para cuidar, não havia amigo rubro-negro ao lado, não havia esperança que ignorasse o medo. Ele concordou quando perguntei: Vamos? Saímos.

Andamos lentamente em direção ao carro, que estava estacionado a algumas quadras do Maracanã. Assim que atravessamos a rua Conde de Bonfim, ouvimos o burburinho de comemoração que vinha do estádio. Trocamos olhares até encontrar a certeza: um tricolor, com radinho de pilha na mão, pulava sozinho no meio da rua deserta. Sofremos os minutos finais tentando escutar outros radinhos pelo caminho, nas portarias e nos bares. Quando chegamos ao carro, o jogo tinha acabado. Meu irmão chorava. Colocamos as bandeiras nas janelas e ouvimos uma dezena de vezes o gol de barriga que não vimos. E a festa continuou assim, repetitiva, nas Laranjeiras.

14 de julho de 2012

Recordar é viver. Saudações tricolores e um feliz aniversário, pai.

domingo, 8 de julho de 2012

Champignons Não Falam Inglês

Em meio à peregrinação pelos maravilhosos castelos do Vale do Loire, arrumamos tempo para um passeio gastronômico bem diferente. Eram quase quatro horas da tarde quando chegamos a Bourré. Vínhamos de um encontro com Tintim e Milou em Moulinsart, ou melhor, no Castelo de Chéverny. Embora estivesse nos planos, a visita àquelas cavernas geladas, onde ainda se cultiva cogumelos manualmente, dependia muito dos tempos gastos nos castelos e nos deslocamentos.

Os casais de ingleses chegaram depois, em quatro bicicletas, e estacionaram na sombra, entre as árvores e o carro que alugamos para toda a viagem. Sentaram-se nas cadeiras de plástico do restaurante que funcionava apenas para o almoço e, como nós, ficaram esperando pela guia. Quando ela apareceu, eles perguntaram em inglês onde ficava a bilheteria. Nane rompeu o silêncio para responder e mostrar onde havíamos comprado os ingressos. Eles agradeceram, pagaram pelos seus e logo retornaram para acompanhar a pequena expedição.

Quando tiveram certeza de que a guia só falava francês, os ingleses ficaram bastante decepcionados. Acabamos nos oferecendo para tentar ajudar, o que não foi tarefa das mais fáceis. A cada espécie de cogumelo, a guia discursava sem interrupção, trazendo informações que não conseguíamos absorver integralmente: sobre o sabor do Shii Také e a textura do Pleurote, sobre a mistura orgânica compactada em troncos que era utilizada para o cultivo do Champignon de Paris, e também sobre a principal atração daquela Cave Champignonnière – o Pied Bleu, espécie pela qual são responsáveis por 45% da produção mundial. Enquanto eu me preocupava em registrar o que era possível, Nane já se adiantava e matava saudades de falar inglês.

Mas a primeira parte da visita não se limitava aos cogumelos. As rochas utilizadas na construção dos castelos da região, inclusive Chambord, tinham sido retiradas das frias cavernas que visitávamos. Havia ali uma pequena exposição de instrumentos e explicações sobre métodos medievais para a extração do tuffeau, além de outras relacionadas às condições de trabalho na época. Seguimos tentando explicar o que era possível aos nossos amigos. Nane chegou a dizer para eles não acreditarem em tudo que dizíamos. Eles acharam graça, e acabamos dando muitas risadas juntos até o fim do passeio.

As informações sobre aquelas rochas calcáreas serviram de introdução à segunda parte do passeio – a cidadela subterrânea. É obra de um artista plástico, que levou quase três anos para ser concluída e pretende preservar as condições originais das construções da região do Vale do Loire. Rica em detalhes, as esculturas incluem, por exemplo, um gato pulando janela e mãos abrindo portas.

Terminada a visita, enfrentamos o risco de um choque térmico na saída das cavernas. Trocamos a temperatura de 13ºC pelos quase 30ºC de uma primavera francesa com jeito de verão. Compramos um vidro de mousseline de Pied Bleu na loja e nos despedimos da agradável companhia dos amigos ingleses, os únicos que fizemos em toda a viagem. De lá fomos para a deliciosa cidade de Amboise em busca de alternativas para o lanche da noite que faríamos no quarto do hotel.

domingo, 1 de julho de 2012

Retirantes

As crianças fazem fila. Carregam trouxinhas sobre o ombro direito e usam lenços vermelhos presos com caixas de fósforo em torno do pescoço. Os meninos vêm com chapéus de cangaceiros, camisas brancas e jeans remendados. As meninas, por sua vez, têm enfeites no cabelo, usam saias multicoloridas e repetem a simplicidade do branco em suas blusas. 

As crianças caminham pelo pátio para formar um círculo antes de se sentarem. Ainda em silêncio, uma a uma, deixam as trouxas no centro da roda fazendo um amontoado delas. E, quando a música começa, elas soltam a voz. Fazem dos lenços uma fogueira igual à de São João, cantam o sofrimento da seca e o adeus à Rosinha. Desenham corações com os dedos, que batem em seguida as asas brancas do sertão.

É a penúltima apresentação daquela turma em uma festa junina da creche Palmo e Meio.

Não tiramos os olhos de Alice, que já nos dizia durante a semana que aquele seria o dia mais feliz da vida dela. Quando falava da festa, reclamava dos cansativos ensaios e caprichava nos olhares de sabichona para falar de Luiz Gonzaga, agora amigo íntimo das cantorias no banheiro. Bastante irrequieta, não escondia a ansiedade.

Não tiramos os olhos de Alice porque ela não se limita agora a cantar. A interpretação da música está em gestos, caras e bocas. A judiação em seus braços é tão sofrida quanto a seca. Seus olhos tristes morrem de sede junto com o alazão. Sua mão bate forte no peito a promessa de voltar para o sertão. E nós não escondemos as lágrimas.

Na apresentação derradeira as crianças dançam forró. De cabo a rabo, com muita animação. Vixe, como eu estou feliz! São três vezes, porque na primeira os pais dançam também. E nós dançamos sem jeito e, claro, sem tirar os olhos de Alice.

Ao seu modo, aquelas crianças são retirantes também. Aos poucos, dão adeus a Rosário. No fim deste ano, quando estiverem prontas, vão bater suas asinhas brancas e partir. Enquanto isso, elas escrevem cartinhas para o correio do amor, leem frases no microfone, correm de um lado a outro, pedem água, tiram os sapatos, jogam a bola na boca do palhaço, trazem um brinde, correm um pouco mais.

Faltam ainda alguns meses de muito aprendizado, mas as crianças já batem no peito e prometem voltar.

E nós fazemos coro, agradecendo com os dedos adultos que também aprenderam a desenhar corações.

domingo, 24 de junho de 2012

Surpresas de um Desvio de Rota

Meus roteiros são bem amarrados, mas guardam uma folguinha para mudanças de planos. Havíamos reservado um hotel de rede situado uma hora e meia ao norte de Bordeaux, que deveria bastar como dormitório e teria a função de encurtar o trecho mais longo da viagem, entre os arredores de Saint Emilion e o castelo mais próximo no vale do Loire – Azay-Le-Rideau. No entanto, enquanto jantávamos pela segunda vez no inesquecível restaurante do Château de Sanse, decidimos não retornar a Bordeaux, onde planejávamos passar parte do dia seguinte, e antecipar a nossa chegada à desconhecida Angoulême, que sequer aparecia no Lonely Planet que eu carregava na mochila.

A pesquisa que Nane fez na Internet naquela mesma noite nos indicou algumas atrações da cidade. Na manhã seguinte, partimos em busca daquela que parecia ser a mais interessante delas: o Museu de Quadrinhos. Chegamos logo depois do almoço que improvisamos no hotel. O estacionamento estava vazio e os portões fechados. Para fazer hora, atravessamos a ponte sobre o rio Charante e encontramos outra das atrações: o Museu do Papel, construído nas instalações de uma antiga fábrica, onde havia funcionado também uma pequena usina hidrelétrica. Lá descobrimos uma exposição temporária de origamis que valeu o dia.

Nas salas escuras por que passamos, não havia cisnes nem outras dobraduras do Plimplim. Éric Joisel nos surpreendeu com personagens de O Senhor dos Anéis (sensacionais Gandalf e Balrog), um buquê de rosas brancas e vermelhas, um cavalo alado, um enorme rinoceronte, dentre outras obras, que podem ser vistas também na homepage do artista.

Voltamos em seguida para o primeiro museu, ainda vazio mas aberto. Nele, a exposição permanente serpenteava em um amplo salão, cheio de sofás e opções de leituras; a temporária ficava numa sala menor e era dedicada às crianças. A livraria anexa é também imperdível, sobretudo para os fãs, mesmo os que não leiam em francês ou os que tenham um conhecimento limitado do assunto, como eu. Ali os quadrinhos são tratados como a nona arte, livres dos preconceitos que, por exemplo, impediam meu pai de comprar revistinhas nas bancas. Ainda assim, as minhas preferências trazem a influência francófona dele: Tintim e Asterix sempre foram adoráveis exceções nas prateleiras da minha estante.

Depois de comprar livros para Alice e para mim, embora ainda estivesse cedo, tentamos chegar ao centro da cidade para procurar opções para o jantar. Acabamos desistindo porque ali eu me senti bastante desconfortável dirigindo: havia ladeiras e cruzamentos confusos até para o GPS. Andamos em círculos durante algum tempo até voltar para o hotel para pesquisar restaurantes nos arredores. Optamos por um que acabou dando um belo fechamento ao dia mais improvável de nossa viagem: o La Margelle, na localidade de l'Isle d'Espagnac, onde, longe de turistas, só ouvíamos francês nas mesas à nossa volta.

domingo, 17 de junho de 2012

Dîner au Château

Marcamos nosso jantar para as oito horas da noite. Vínhamos de um longo dia de viagem, iniciada em Carcassonne pela manhã, interrompida em Moissac para conhecer a Abadia de São Pedro, almoçar e comprar um cabo novo para o GPS na loja de uma companhia telefônica. De fato, sair da A62, estrada que leva a Bordeaux, e chegar ao Château de Sanse sem orientação teria sido tarefa muito difícil, mesmo com um mapa rodoviário. A partir dali, as estradas se estreitavam, as placas desapareciam e a paisagem ganhava a maravilhosa monotonia dos vinhedos. Com o aparelho funcionando, chegamos sem contratempos ao destino, com tempo para descansar um pouco, comprar queijos em uma Chèvrerie, dar um mergulho na piscina e aguardar a hora do jantar.

Estávamos hospedados em uma pequena torre, com uma sala de estar no térreo, quarto e banheiro no andar de cima. O restaurante ficava no meio do caminho que levava à piscina e o céu azul da noite francesa garantia que o jantar seria servido na varanda, de onde se via muito verde, parreiras infinitas, e se ouvia pouco além do silêncio. Recebidos por uma irlandesa muito simpática, escolhemos menus diferentes e uma garrafa de Bordeaux “La Jalgue” 2005. Antes das entradas, experimentamos uma interessante guacamole de pepino como amuse-bouche e aproveitamos para conversar sobre os planos para dia seguinte: Castillon la Bataille e Saint Emilion pela manhã e um passeio pela cidade de Bordeaux depois do almoço.

O vinho chegou e eu engasguei ao provar. Foi engraçado, rimos bastante com o garçom e ficamos ainda mais relaxados para curtir o jantar. Quando vieram as entradas, o assunto passou a ser guiado exclusivamente pelo paladar: finalmente eu me deliciava com ostras e Nane provava suculentos raviólis mediterrâneos. Os pratos principais nos fizeram repetir uma expressão, adaptada do português mais chulo, que usávamos para definir, com a ajuda evidente do álcool, as melhores sensações daquela refeição: du carraille. Eu escolhi o filé de porco preparado com sálvia e legumes imperdíveis. Nane preferiu um vitelo ao molho de mostarda e batatas divinas. Tudo foi fotografado, tudo estava perfeito.

No entanto, faltavam ainda as sobremesas. Já passavam das dez horas, as velas estavam acesas, mas ainda havia vestígios de raios solares no céu. O merengue de mirtilo com sorvete de avelãs da Nane ajudou a iluminar o ambiente. A minha escolha, por sua vez, trazia um belo resumo de doces preferidos: biscoito de amêndoas, fatias de pera cozidas com lavanda e sorvete spéculoos. Quando o êxtase gastronômico chegou ao fim, deixamos a mesa leves demais e caminhamos com cuidado até a torre. Com mais cuidado, subimos a escada até o quarto e nos deitamos. Ali, por mais de um motivo óbvio, demoramos muito a dormir. E antes de meus olhos fecharem, eu tive certeza de que escreveria sobre a melhor refeição da minha vida – experiência que fizemos questão de repetir no dia seguinte.

segunda-feira, 11 de junho de 2012

Muita Saudade

Não estou vendo a mamãe. A gente também não via, mas já ouvia muito bem aquela voz que tanto nos fazia falta. As imagens sempre demoravam a aparecer, e quando apareciam... Oooooooi, mamãe! Agora estou vendo você. E cadê o papai? Eu estava ao lado, mas até então fora do esquadro da tela. Oi, Papaizinho! Sabe, estou com muita, muita, muita saudade de vocês. Eu contava o número de vezes que Alice intensificava a saudade e também quantas vezes ela usava o vocativo preferido, às vezes reticente, para ganhar tempo, para se lembrar de tudo o que tinha vontade de contar e prolongar a conversa: Mamãe... mamãe, olha como o meu dente está mole. Acho que vai cair antes de vocês chegarem. A gente, claro, pediu para ela mostrar. Ela se aproximou, mostrando a gengiva, já bastante banguela, com o dedo balançando o dente.

Olha, titia, o papai está dançando atrás da mamãe! Ele é malucão, né? Estou com muita, muita saudade. Posso dar um abraço em vocês? Alice abriu os braços e os cabelos se aproximaram da câmera. Foi ainda mais complicado, mas a gente fez igual. Mamãe... mamãe, estou com saudade de ler história com o papai. E até com saudades da bronca dele. Mamãe, o papai não fala por quê? Eu apareci de novo, dizendo alguma coisa, e ela fez um carinho na tela. Eu perguntei se podia contar um segredo. Ela sorriu, aproximou a orelha da tela e sussurrou: O que é? Já sei: você comprou um livro pra mim? Eu confirmei, e Nane emendou perguntando da escola: se estava tudo bem, se tinha novidades. A festa junina, mãe. E eu já sei a música que a gente vai dançar. Nane disse que a titia podia mandar o dinheiro na agenda. Depois, a gente perguntou da escola e também se estava aprendendo muitas coisas novas. Já fiz o dever de hoje, mamãe. Sabe com quem? Com o titio. Faço todos os dias com ele.

De repente, o silêncio chegou aumentando a saudade. Para nós dois bastava ficar ali, olhando pra ela, mas Alice logo encontrou assunto. Mamãe, eu estou com uma bolinha na perna. Acho que é um molúsculo. Nane falou para ela não se preocupar, não devia ser, não era molusco. Ela insistiu: Mas é molúsculo, mãe! Para que ela deixasse a cisma de lado, a gente perguntou se ela tinha gostado das fotos. Era uma foto por dia para ela no Facebook. Mamãe, gostei muito da foto do papai na piscina. A água estava muito gelada, pai? Você ficou com frio? Mamãe, eu gostei de todas as fotos. Você viu a minha foto? Eu também coloquei uma foto, aquela com as unhas pintadas... Foi a vovó que pintou, mãe.

Quando o silêncio ameaçava voltar, Nane teve a idéia de mostrar o quarto do hotel para ela. É outro hotel, mamãe? Era. O que é isso aí em cima? Era um enfeite da cama. Já foram quantos hotéis? Cinco, faltavam dois. E depois? Vocês vão para Paris, mamãe?! A gente viu que os olhinhos brilharam. Vocês vão?! O sorriso se abriu, e Nane perguntou se ela queria alguma coisa de lá. Se ela continuasse se comportando, talvez merecesse um presente especial. Alice pensou, levantou as sobrancelhas e abriu ainda mais sorriso antes de dizer: Quero sim... Xampus novos, mamãe!!!

quinta-feira, 10 de maio de 2012

O Siso e a Catarata

Segui as instruções: tomei dois comprimidos do antibiótico um par de horas antes da cirurgia. Eu já tinha experiência em arrancar dentes: foram quatro na adolescência, para abrir espaço na arcada, fazer descer os caninos que teimavam em parecer dentes de vampiro. Mas era minha primeira vez com um siso. E são tantas as histórias ouvidas por aí que, não nego, fiquei apreensivo. Graças aos dentes arrancados há mais de vinte anos, os meus sisos se acomodaram de maneira aceitável no espaço que encontraram. Não tinham me dado muito problema até então. Lembro-me vagamente das dores provocadas por um deles, que nasceu revoltado, coisa resolvida rapidamente com um anti-inflamatório. Agora, um deles pedia socorro – caso para canal. Decidi tirar.

Fiquei sonolento ainda no trabalho. Resolvi então pegar um táxi do Centro para Copacabana. Como de costume, cheguei um pouco mais cedo no consultório, antes das 18h. No entanto, daquela vez havia uma razão: eu tinha que assinar os cheques pré-datados de todo o tratamento, que ia muito além da extração. Confesso que tive muitas dificuldades para fazê-lo. Não acertei uma assinatura sequer, ficaram todas interrompidas, estranhas mesmo. Pelo menos, elas não pareciam falsificadas e os valores estavam certos. Acho que a dose dupla de antibiótico me deu um barato, não estava me sentindo normal, estava aéreo. Estranho...

Mas não estava tão bêbado como meu pai no dia em que fez a cirurgia de catarata. Naquele dia, quando cheguei ao hospital, disseram-me que ele teria que esperar mais o que normal para sair. Por causa do nervosismo, tiveram que sossegar o leão antes da cirurgia. Assim que entrei no quarto, pude constatar o quanto ainda estava grogue: chamava uma enorme enfermeira de gatinha.  Ele me pediu para ligar a televisão, uma daquelas antigas de catorze polegadas, que pegava a Globo, a Band e nada mais.  A novela das oito não interessou. Mesmo com alguma interferência na imagem, preferiu a Tiazinha, nome que deu a todas as modelos que apareceram com trajes diminutos nos comerciais de tele-sexo. Eu ri sozinho.

De tempos em tempos, enquanto esperava minha mãe voltar de casa, eu tentava puxar assunto para verificar se os efeitos das drogas calmantes tinham passado. Como a minha capacidade criativa tinha limite, perguntei finalmente como tinha sido a cirurgia, e se ele estava se sentindo bem. Entre risadas, ele devolveu a pergunta: O que você acha? E respondeu em seguida: Colocaram o seu pai de sapatilhas, toquinha e um vestido aberto nas costas. Você acha que eu estou bem? Boas intenções eles não tinham, meu filho.

Quando minha mãe chegou, ele já estava sóbrio e pudemos partir.

E não pensem que me esqueci do siso. Para meu espanto, saiu muito fácil, em menos de dez segundos estava na mão do dentista.

segunda-feira, 30 de abril de 2012

O Vento

Era um domingo quando minha avó morreu. A professora de geografia morreu no dia das crianças. Foi enterrada no dia seguinte e, por isso, eu não fui trabalhar naquela segunda-feira. Acordei cedo mesmo assim e encontrei minha mãe e minha tia em uma das capelas do cemitério São João Batista. Estavam sozinhas, cansadas e quase felizes, porque toda a dor tinha passado, todos os meses de sofrimento eram página virada. Ali restava apenas saudade.

Sentei entre as duas para contar que tinha escrito um texto para Esbelta. Pedi que lessem. Se não se opusessem, eu colocaria o papel na entrada da capela, ao lado do nome dela. E fiz assim. Minha avó tinha uma história que merecia ser contada, que eu resumi em poucas linhas em uma noite de insônia, meses antes, quando ela ainda estava em coma e eu não imaginava mais que pudesse voltar a sorrir ou suportar tanta dor.

O título era Esbelta e o Globo Terrestre.

O texto falava de seus olhinhos meio puxados e de uma viagem ao Japão (era China, esclareceu um primo). Citava o conhecimento que tinha sobre as ramificações de sua árvore genealógica e o sobrenome alemão: Sommer. Trazia recordações das manhãs em que estudávamos juntos para as provas de geografia e do maior presente que dela ganhei: o globo. Descrevia seu corpo franzino como um desenho de criança, como se minha filha tivesse feito a bisavó com alguns tracinhos. Relacionava as quantidades de bisnetas (eram quatro), netos (dez) e filhos (três, mais um série incontável de alunos). E a história de Esbelta, quase toda passada na cidade do Rio de Janeiro, terminava em uma aventura perto das estrelas.

Hoje também é domingo, mas não há motivo especial na data para que eu volte a escrever sobre ela. Pode ser a saudade restou no primeiro parágrafo e que às vezes chega a mim nos olhares da minha mãe e da minha tia. E, se agora não estou com elas, deve ser a ventania insistente – que bate as portas, derruba as coisas, brinca de embaralhar o tempo e as minhas lembranças.

Esbelta tinha muito medo de que o vento a levasse. Hoje ele a trouxe de volta.

segunda-feira, 23 de abril de 2012

Sábado

A menina desfila pelos corredores de saia lilás e blusa branca. Caminha ao lado dos pais, mas segue independente. Segura a bolsinha com o braço direito, que permanece firme, deixando a mãozinha pendente. Ela está numa feira de livros infanto-juvenis e carrega consigo um caderno de anotações aleatórias, onde escreve as palavras que aprendeu na escola. Procura livros cheios de letrinhas pelo caminho. Recusa folhear inclusive aqueles que parecem mais apropriados à sua idade, com ilustrações e frases mais curtas. Quer ser adolescente antes mesmo de terminar a alfabetização.

Ela entra em casa cheia de livros novos, de todos os tipos e tamanhos. Vai para o quarto com a mãe selecionar para doação os livros de bebê que ainda restam. Volta para sala para curtir as novidades, procurar palavras, ler ao lado do pai. E, de repente, todos se lembram de que ela tem dever de casa para fazer. É o navio que passa, a neve que cai, o ninho que está vazio, o novo que deixou de ser, o número da vez, o não para a televisão. Ela copia as palavras, preenche as lacunas. Aprende o que é um novelo. E hesita apenas na leitura das sílabas do mês de novembro, ainda distante e complicado.

A menina termina a tarefa e procura por outro caderninho, que trouxe da escola: uma agenda telefônica feita à mão, onde cada página é dedicada a um amigo, também às auxiliares e à professora. Em cada uma delas, um nome, um desenho e um número. Acostumada com conversas em viva-voz com as avós e as tias, redescobre o telefone: encaixa a orelha para ouvir melhor, entender as diferenças entre os sinais de linha e de ocupado, perceber que as vozes podem mudar à distância.

Ela transforma mais essa novidade em obsessão. Tecla números sem parar até encontrar alguém que atenda ao chamado. Depois que consegue, ela e o amigo intercalam ligações, para falar do tempo de hoje e da festa de domingo, para tentar encontrar outros colegas e dividir as proezas. Assim que percebe a curiosidade dos pais, esconde-se no quarto, atrás de privacidade, para contar segredos, para exercitar o dom especial de falar sem parar.

Os pais da menina se divertem com a novidade que traz recordações. A mãe garante que nunca foi chegada a um papo ao telefone. O pai lembra que monopolizava o aparelho nas noites de domingo, depois das partidas de futebol. Tempos em que ainda discavam os números, usavam fichas, desenrolavam o fio e colocavam o fone no gancho. E assistiam com enorme curiosidade às vídeo-conferências da família Jetson.

Eles se divertem até o ponto da obsessão. E diante da impossibilidade de controlar o momento de excitação, aproveitam para rever com a filha as regras de comunicação, para fixar as aulas de boa educação. Antes que ela perca o costume de dizer por favor, engula palavras ao falar e desapareça com as letras ao teclar. Antes que ela peça uma extensão no quarto, um celular no bolso, ou um tablet.

A menina agora pede os controles. Quer ver televisão antes que o sábado termine.

domingo, 15 de abril de 2012

Vitrines da Livraria Sauret

Havia muitas fotos naquela gaveta da escrivaninha da minha avó. Levei todas comigo, depois devolvi. Estão agora digitalizadas e gravadas numa pasta do meu computador a que dei o nome óbvio de Livraria Sauret. São fotos em preto e branco da vitrine da loja no início da década de quarenta.

Curioso, analiso uma a uma. A porta de entrada envidraçada da livraria fica à esquerda, tem revistas e jornais pendurados do lado de dentro. Naquele canto recuado, meu pai e meu avô aparecem abraçados em duas fotos. Quando a foto não mostra a porta, concentro-me na vitrine, procuro por detalhes e acabo descobrindo uma silhueta sobre o vidro quando aproximo a imagem na tela. Deve ser coincidência, mas aquela sombra, que inclui a câmera, é visível apenas na ausência do meu avô.

Eu me pego investigando a fundo quando separo as fotos em dois conjuntos. São as roupas que meu pai veste que orientam a distribuição. Encontro no ombro de meu avô uma referência da passagem do tempo: entre as duas fotos em que eles aparecem lado a lado, é evidente que o menino cresceu. E não tenho dúvida de que os conjuntos marcam datas muito importantes; por isso, busco indícios na arrumação da vitrine que possam me ajudar a precisá-las.

No primeiro conjunto, meu pai está vestido com calças compridas escuras e camisa branca, enfeitada com uma enorme gravata borboleta também escura. Ele não sorri, mas é sapeca: em uma das fotos, esconde-se atrás da vitrine. Em outra, está do lado esquerdo, perto da porta, apontando para o quadro que fica logo abaixo do letreiro. Ali se vê o herói da minha avó: o General De Gaulle. Em torno, apesar do reflexo sobre o vidro, identifico vestígios da guerra: à direita, um pano quadrado de seda com o rosto do general centralizado sobre o mapa da França; mais abaixo, ladeado por quatro figuras simétricas sem nitidez, outro retrato me mostra soldados carregando um pavilhão. Entre este quadro e o do general, há uma flâmula triangular com a Cruz de Lorena – com suas duas barras horizontais, ela é o símbolo da Resistência Francesa.

Brinco de adivinhar as cores: o pano de seda e a flâmula são predominantemente vermelhos. Tenho vontade também de descobrir que livros são aqueles distribuídos no chão – sobre um deles, repousa uma cruz de madeira, outra Cruz de Lorena. Os livros em exposição também contornam a vitrine pelo lado direito até a altura do pano. A disposição das peças naquele espaço é quase uma obra de arte, cheia de detalhes trabalhados pelas mãos francesas da minha avó. Continuo a brincadeira de adivinhação: estamos em 1941, em plena guerra, no dia da inauguração da livraria.

No segundo conjunto, meu pai usa roupas menos formais: além de calças compridas, veste um pulôver de listras verticais que esconde uma camisa clara, da qual se vê apenas o colarinho. O visual da vitrine é mais sóbrio, também arrumada em detalhes por mãos apaixonadas. Desta vez, não há livros no chão ou em lugar algum. De Gaulle permanece no alto e uma fita tricolor envolve o mesmo quadro dos soldados patriotas, que permanece logo abaixo. De cada lado desse quadro, destacam-se duas delicadas pinturas: há flores de um lado e uma bailarina de outro. Não se vê mais a toalha, nem a flâmula. A ausência da cruz confirma que aquele não é mais um acampamento resistente, nem esconde mais a casamata dos franceses em Copacabana.

Insisto ainda em adivinhar as cores: abaixo do letreiro, por trás da foto do herói, o bandô cuidadosamente dobrado em semicírculos é azul, a cor preferida da minha avó. Elegante em todas as fotos, ela mantém o semblante sereno. Meu pai é o único que sorri. O dia especial se revela tanto na alegria dele quanto na falta de livros para vender. A vitrine posa orgulhosa para a foto porque estamos em 1944, Paris foi libertada e a guerra chegou ao fim.

sexta-feira, 6 de abril de 2012

Oz e Otolina

Na hora de dormir, é difícil vencer as opções ilimitadas de seriados pré-adolescentes que passam na televisão. Os episódios se repetem muito, mas Alice não se importa, sempre pede mais um, mesmo sabendo que não abrimos exceção – durante a semana, ela vai se deitar sempre às 20h30. Dependendo da reação que ela tenha ao cumprimento da regra e da velocidade do longo processo que a leva para cama, prometemos a recompensa da leitura.

No último dia das crianças, tive uma vontade enorme de comprar um presente para Alice. Pode parecer estranho, eu sei. Mas ela é uma criança que ganha tudo, de todos, porque é única na família. Eu precisava de um presente com selo, um presente do papai. Como o interesse dela pelas letrinhas vinha crescendo e o ano da alfabetização se aproximava, resolvi comprar um livro diferente daqueles que costumávamos ler antes de dormir. Escolhi O Mágico de Oz, em uma edição de poucos desenhos e muitas letras.

Acreditei nas vantagens de Alice conhecer o filme e ter visto uma peça encenada pela prima americana. No meio de tantas letras, talvez se tornasse interessante tentar reconhecer aquelas imagens na minha narrativa. Ela logo aprendeu que o livro era dividido em capítulos, que faríamos a pausa entre um e outro, que podíamos usar o marcador de livros do Harry Potter para não nos esquecermos de onde paramos. Foi divertido, mas confesso que o silêncio dela me incomodava um pouco.

Eu tinha dúvidas de que ela estivesse mesmo prestando a atenção; por isso, com as luzes já apagadas, eu fazia perguntas sobre a história, e ela respondia a todas elas. Ainda assim, não tinha certeza de que ela gostava mesmo do livro – às vezes, fazia pouco caso, não queria ler, preferia a televisão. A leitura durou quase quatro meses e, mesmo nos últimos capítulos, jamais assisti àquela manifestação de ansiedade típica de quem quer saber o que vai acontecer. Culpa do livro, talvez (menos leve que o filme); de Oz (que engana as pessoas, e engana por quê, pai?); ou da minha escolha por um livro com final conhecido.

Depois de Dorothy e Totó, sem qualquer selo do papai, veio Otolina e a Gata Amarela. A identificação de Alice com a protagonista foi imediata: Otolina faz planos em seus cadernos e se interessa por resolver mistérios. O livro intercala textos e figuras repletas de detalhes, desperta a curiosidade entre capítulos, não dá vontade de largar. Estamos no fim do segundo livro, Otolina na Escola. Hoje, ainda suado, recém chegado da aula de tênis, contrariando a regra das terças, eu ofereci a leitura do capítulo nove. Não foi suficiente: ela implorou para ler duas páginas do último capítulo. E ainda ousou dizer que a página do título não contava.

Cedi em parte: li as duas páginas que ela queria; porém, sem dar margem a embromações – que são coisas de Oz, o charlatão. Cedi porque estamos nos divertindo muito e, dessa forma, a recompensa da leitura é compartilhada. E não precisamos mesmo obedecer a todas as regras. Afinal, qual o motivo de parar no fim do capítulo, se temos o marcador do Harry Potter?

quarta-feira, 28 de março de 2012

Bertalha com Ovo

Nunca mais comprei bertalha. Ela fazia parte do variado cardápio das papinhas, feitas com legumes e verduras cozidos, depois triturados à manivela. Naqueles tempos, talvez os únicos de uma Alice fofinha, de poucas costelas, a minha ida solitária ao mercado de hortifrutis era obrigatória – sempre aos sábados, pela manhã, procurava comprar os mais variados ingredientes.

A primeira carninha é inesquecível, para quem experimenta e para os pais que limpam as fraldas. No alto do cadeirão, Alice pedia “aínha” mastigando as letras e enrugando o nariz. Lambuzava-se ali, colorindo as bochechas de beterraba.

Nas primeiras refeições à mesa, ela ficava sentada sobre um assento que a colocava mais próxima do prato. Já sabia dizer não, fazer cara de nojo, pedir para separarmos os verdinhos na borda do prato. Sabia também que preferia degustar a deglutir. Por isso, as costelinhas salientes. O cardápio da creche, onde comia bem melhor, era preparado por nutricionista e nos deixava mais sossegados. O pediatra, por sua vez, apenas aconselhava um reforço de azeite e castanhas ao longo do dia.

Eu me esforçava. Tentava misturar tudo: cenoura ralada, o arroz feito na panela elétrica, o feijão da vovó, o frango em cubos que eu temperava com limão e a farofa. Mas sempre havia o rejeitado da vez. Tentava outra vez, separando então os itens da refeição em diversas tigelas para um jogo de múltipla escolha: o milho aqui, o pepino lá, o arroz reforçado com cereais direto no prato. Porém, o resultado era pior: Alice tendia sempre para a alternativa “d” – nenhuma das acima.

A pior fase passou; aliás, não merecia tanto espaço porque foi sempre entremeada por descobertas surpreendentes: o bacalhau (não só o bolinho), o meu queijo brie (que vovozão comprava para esperar a visita da neta), o patê de fígado (que trouxe uma das reações mais marcantes, do tipo: Quero mais! Já acabou? Quem comeu? Foi o papai, né?).

Hoje ela come sem parar, ainda cisma com a berinjela (e, insisto, não sabe o que está perdendo) e também com a cebola, mas apenas quando percebe a sua presença. Ela já não nos espera oferecer, começa a pedir para experimentar. Foi assim há alguns dias, para meu orgulho e das nossas companhias gastronômicas.

No restaurante Primeira Pá, chinês de verdade, enquanto nos divertíamos com as barreiras do idioma, Alice brincava de gilar o tampo de vidro atrás do shoyo para encharcar o gyoza. Fez cara feia para os mexilhões e o toucinho, mas continuava se sentindo desafiada por aquele ovo estranho, de clara que parecia uma gelatina marrom e gema acinzentada. Destemida, quis provar.

O ovo milenar faz parte agora do cardápio de descobertas da Alice.

domingo, 18 de março de 2012

Um Cenário por Semana

Sábado passado, com Nane em curso, levei Alice para passarmos o dia com meus pais. Assim que chegamos, pedi a escada para reencontrar meus velhos brinquedos no apartamento da minha avó, que divide o andar com o deles. As caixas azuis permaneciam amontoadas no alto do armário do quarto onde fica o computador da família.

Eram muitas caixas de Playmobil para escolher. Sugeri as de naves espaciais, e ela aprovou. Desci com as duas naves que tinha: a maior delas, em forma de octógono; e a mais interessante, parecida com um ônibus espacial. Ao contrário de outros conjuntos em que já havia mexido há uns dois anos, aqueles estavam completos e preservados, apesar de algumas peças amareladas, adesivos perdendo a cola e as borrachas dos pneus bastante suadas.

Espalhamos os bonecos no chão do quarto e inventamos juntos algumas histórias. Ela ficou fascinada quando desmontei o ônibus espacial, transformei a parte central em escritório lunar e acoplei um módulo menor a ele. Toda vez que eu me desligava ou ameaçava parar, ela insistia: E agora, pai? Vai, brinca!

Quando ficou à vontade para criar seus próprios roteiros, eu me vi criança brincando no chão de tacos. Tirei uma foto, que rendeu muitos comentários no Facebook – meus amigos também se viram crianças, brincando com os mesmos bonecos ou desejando aquelas aventuras espaciais. Meu pai se empolgou com a cena, queria levá-la no dia seguinte à exposição de Playmobil no Museu Militar Conde de Linhares, em São Cristóvão, mas acabamos deixando o programa para o outro fim de semana.

Enquanto Alice se divertia sozinha, fomos para a biblioteca, no quarto ao lado, para procurar vestígios da livraria da minha avó. Meu pai me mostrou os carimbos que havia separado, acabamos encontrando um diário de viagem de meu avô e muitas fotos nas gavetas, mais do que eu poderia imaginar. Ali, ele se viu criança, apontando para a vitrine da loja; na companhia de amiguinhas francesas de quem ele lembrava os nomes e sobrenomes; fazendo pose ao lado do carro do pai; ou em casa, também sozinho, brincando no chão da sala com o trem elétrico.

Ontem, na exposição, três gerações sonhavam com uma casa onde houvesse um quarto de brinquedos que só precisassem ser guardados para as mudanças de cenários: o forte apache atacado por índios, o castelo da princesa protegido por arqueiros... um para cada semana.

quarta-feira, 7 de março de 2012

As Etiquetas da Livraria Sauret

Não queríamos saber de carnaval. Por isso, a geladeira cheia, os filmes alugados e os livros espalhados na sala. Uma festa no sábado era o único compromisso. Assim, sobrava tempo para eu preparar uma guacamole na sexta à noite e fazer um salmão para o almoço de quarta. Também para terminar os livros que permaneciam há algum tempo na cabeceira; e para vermos juntos filmes quase esquecidos – como o Pequeno Nicolau, programa família da tarde de segunda.

Na terça-feira, deixamos Alice passar o dia no clube com uma amiga e optamos por almoçar fora. Quando voltamos, ligamos o ar condicionado da sala e os respectivos notebooks. Sobre a estante, restava apenas Meia-Noite em Paris para assistirmos. Decidimos esperar, já que a devolução estava marcada para quinta, e aproveitar o tempo para planejar as férias, sonhar um pouco e comprar as passagens.

Abri os sites das companhias aéreas para pesquisar preços e destinos que satisfizessem nossos planos, desta vez, exclusivamente franceses – por isso também, o filme podia esperar, para ser bem saboreado depois das decisões tomadas. Enquanto eu tentava descobrir as melhores opções para a viagem, checava também os acessos ao meu blog. Confesso que a página de estatísticas vicia, e as origens de tráfego que ela registra sempre me deixam curioso. Naquele dia, identifiquei uma busca feita pelo Google que me surpreendeu.

Alguém procurava pela Livraria Sauret, que pertencia à minha avó e havia ocupado por mais de trinta anos, entre as décadas de 1940 e 1970, a loja 5 do Copacabana Palace, de frente para a praia.

Eu dividi a surpresa com meu pai ao telefone e, ao mesmo tempo, repeti a pesquisa do leitor desconhecido. Com o nome da loja entre aspas, não eram muitos os resultados do site: primeiro, levavam a um livro chamado A Etiqueta de Livros no Brasil, de Ubiratan Machado; depois, a dois textos do meu blog; mais adiante, a páginas do Diário Oficial. Logo que terminei a conversa com papai, comprei o livro em promoção na Internet.

Minutos depois, o leitor se identificou, quando comentou um de meus textos. Ali, percebi que a viagem ao passado não teria volta. Mandei um e-mail para ele, liguei de novo para meu pai, deixando o sonho da viagem futura congelado em outros sites e a Nane esperando por algum tempo.

A Livraria Sauret traz boas lembranças para Claude. Nas mensagens que trocamos, ele conta dos tempos em que saía com a revistinha do Mickey quando seu pai ia comprar o Paris-Match; da época em que iam até uma das lojas vizinhas, da Western Telegraph, para entrarem contato com a família na França em datas especiais.

Infelizmente eu não conheci a livraria, tinha menos de dois anos quando fechou. Para mim, a livraria era apenas um quarto transformado em biblioteca. Agora, uma fonte de ideias – e meu pai promete remexer as gavetas em busca das etiquetas originais, carimbos, notícias de jornal. Enquanto elas não amadurecem, procuro um lugar para guardar o livro encomendado. Na página 240, as etiquetas com a Cruz de Lorena parecem pedir para voltar para casa – um cantinho francês, uma livraria em Copacabana, uma biblioteca dentro de um quarto.

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Em Queda Livre

Como ainda não me acostumei às asas, pouso sobre uma lápide para ajeitá-las.

Não guardo muitas lembranças, mesmo as mais recentes, mas acho que nasci em queda livre.

Olho para minha sombra para confirmar a hora: não é meio-dia, mas o calor já é insuportável. Ao fundo vem um cortejo: umas vinte pessoas e o defunto.

Noto que um louva-a-deus me espreita.

Saio dali para me proteger e sigo em direção àquela gente em fila, de cabeça baixa, braços cruzados, as mãos guardadas. Aproximo-me para distinguir os rostos, mas descubro que é impossível. Paro então, sem ser ameaçado, sobre a fita vermelha que prende a maior cabeleira do grupo.

Deixo a carona para retornar à mesma lápide, onde fico para assistir à despedida. Faço voos curtos para escutar o que dizem, mas os lábios se mexem quase em silêncio. E não parece o caso de cantar a música preferida daquele que parte.

O louva-a-deus esfrega as patas enquanto reza.

Ignoro o predador para matar um desejo: eu sempre quis ser uma mosca para saber o que os outros diziam na minha ausência, o que tramavam. Para meu azar, aqui todos se calam.

As pétalas de rosa acompanham a descida do caixão. O vento as faz perderem o rumo e uma delas quase me atinge. Mas eu insisto: circulo por narizes e sobrancelhas. Ouço de perto os soluços que se repetem sob os óculos escuros que se debruçam sobre o túmulo. Chego tão perto que vejo alguma ameaça nas lágrimas que brotam da armação. Para fugir de um banho, eu me afasto e atravesso o estreito espaço de indiscrição entre um bigode e uma orelha:

– Suicidou-se. Jogou-se do décimo andar.

Quando volto, sobre o caixão, entrego-me ao louva-a-deus.

domingo, 12 de fevereiro de 2012

Jogo de Reservas

Quando Petit deu nome francês àquela grande vitória, canarinhos sem rumo começaram a telefonar em busca de tarifas promocionais para seus voos.

– Reservas Rio Sul e Nordeste, Richard em treinamento, boa noite!

O amigo que conheci no curso preparatório foi o primeiro a atender. Com o dedo pronto para aceitar a chamada, eu esperava minha vez. Faltavam ainda alguns minutos para o fim do expediente.

Horas antes tínhamos ocupado as baias internas para assistir ao jogo. Acreditávamos que poucos se atreveriam a aproveitar as horas de alienação coletiva para garantir uma reserva com tarifa promocional. Ainda assim, mal virávamos as cadeiras; para que os nossos olhos alcançassem a TV, nossos pescoços sofriam um pouco.

Minha história como agente de reservas foi curta, durou cerca de três meses. Eu me aborrecia porque odiava falar ao telefone, porque não sabia bem o que fazer com o diploma de engenharia, porque as folgas eram raras naqueles tempos de tanta oferta. Ser obrigado a ver os jogos do Brasil no trabalho me entristecia, estava longe das companhias habituais: a namorada, os amigos e a família. Em se tratando de uma final em Paris, contra a França, eu me sentia ainda pior. Daria qualquer coisa para estar em casa ao lado da minha avó.

Quando perguntavam por qual seleção torceria, Mami se limitava a dizer que queria ver os netos felizes; afirmava também que aquela seleção não era lá muito francesa. Eram formas de desviar o assunto: ela não trocaria nada pelo prazer de ouvir a Marselhesa vitoriosa cantada no Parc de Princes

Em 1998, a minha final ideal enfim aconteceu. Alimentado pela seleção de Telê e o futebol de Platini, o sonho transformado em realidade trazia consigo emoções conflitantes também para mim. Eu torci pelo Brasil com a certeza de que a vitória da França de Zidane seria bem mais que um consolo. E lamentava muito não estar ao lado da Mami para presenciar suas reações discretamente emocionadas.

Naquele domingo, parte de um bom time de reservas, torci pelo Brasil como neto de francesa

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Palavras Encantadas do País das Maravilhas

Buá
Verbo de origem musical, derivado de “ensaboar”.
Alice entra no chuveiro, senta no banquinho e espera o carinho da mãe. O asseio vem com música: Nane ensaboa a mulata. A criança é muito pequena, não se cuida sozinha, mas recria o verbo do banho. Ensaboando tem o som reduzido. Buando é o gerúndio que ela apreende. Tomar banho se escreve buá – minha filha não escorrega o erre e acentua a vogal temática com firmeza.

Cambote
Substantivo masculino, parte do corpo do pai.
Alice pede para brincar comigo. Quer dar voltas no ar até ficar tonta, ou ser levada pelos pés com os cabelos lambendo o chão. Eu não tenho mais pique: proponho uma dança, mas a valsa no colo dura pouco. A criança insiste, quer ir além: estar mais perto do céu parece ser a solução. Cambote é pescoço e pode ser escada. Felizmente, ela é miúda e as dores que vêm à noite não atrapalham o meu sono.

Estremida
Adjetivo sazonal, dos meses mais frios.
Depois da aula de natação, batendo os dentes, Alice pede a toalha. Faz questão de mostrar os pelinhos eriçados e diz: olha como eu estou estremida, pai! Arrepiada foi a primeira palavra que ganhou sinônimo no glossário de palavras encantadas.

Mandora
Substantivo feminino de personalidade forte.
O que sai da garganta da menina é uma ordem: eu sou a mandora, pai! A palavra não contém erro de digitação, e trocar letras não será suficiente para explicar seu significado. No sofá, estamos prontos para começar o jogo; temos os controles enlaçados nos pulsos e a tela aguarda nossas primeiras decisões. Alice é o jogador número 1, vai comandar a brincadeira. Mandora significa líder.

Desfiloso
Adjetivo indefinido.
Alice vê o cartaz na saída do cinema e repete a propaganda da televisão: já está nas lojas, mãe! Nane explica que é o quarto de uma série de filmes e convida a menina para ver o primeiro. Ela aceita, desde que seja na mesma tarde. Alguns dias depois, curada da ansiedade e ainda curtindo as férias, reconhece os Piratas da Disney. Sobre Jack Sparrow, a filhota comenta: ele é muito desfiloso.

domingo, 22 de janeiro de 2012

Aqui é o Metrô

Deixei o carro na garagem na manhã de sexta, feriado do padroeiro. Peguei o ônibus na Real Grandeza para atravessar o túnel e descer a Siqueira Campos recordando os tempos de escola, daquele último ano do primeiro grau, quando éramos quatro ou cinco andando pelas ruas na volta para casa. Saltei perto na estação do metrô para matar a estranha saudade de caminhar em Copacabana – gente demais, desordem demais para o meu gosto. Parei para tomar meio litro de mate com menta – fazia calor, também demais para mim. Virei na esquina da Nossa Senhora de Copacabana, em frente à praça, para experimentar as novidades de um roteiro quase esquecido. Entre a papelaria e o cinema Ricamar, que só existem na memória, encontrei um foco de resistência: o Traiteurs de France. Ali, no último desvio antes do meu destino, comprei uma caixinha de macarons para os meus pais.

Alice me esperava. Mais cedo, ao telefone, ela tinha recusado a conversa. Não queria voltar para casa, sequer me ouvir. O passa-fora no pai valeu uma bronca e uma ameaça: perder a oportunidade de saber quais eram os meus planos para aquele dia.

Deixamos meus pais depois de assistir a um desenho animado. Pegamos o elevador social porque o outro não funcionava. Subimos a Rodolfo Dantas contra a correnteza, contra o fluxo de quem se dirigia à praia para aproveitar o dia ensolarado. Caminhamos até a estação Cardeal Arcoverde, onde anunciei: aqui é o metrô, filha. Carregamos o cartão e passamos pela roleta. Tudo era novidade: a escada rolante pareceu longa demais e o túnel colorido... maneiro, pai! As esteiras estavam desligadas, e assim mesmo passamos por elas. Mais a frente, de outra escada, vimos o trem partir: aquele vai para Ipanema, expliquei. Sentamo-nos nas cadeiras brancas para esperar a nossa vez, que demorou tempo bastante para curtirmos o silêncio e a ideia de que estávamos dentro de uma montanha. Terminamos contando quantas pessoas embarcariam com a gente: éramos sete.

Alice estava se divertindo. Mais cedo, ao telefone, acabei perguntando se ela queria conhecer o metrô. Arrependida, ela mudou de humor. Ansiosa, pediu desculpas. Eu mantive a bronca e, claro, o roteiro da aventura.

O vagão nos deixou na estação seguinte. A viagem durou o tempo de uma explicação sobre as cores dos assentos – Alice estava pronta para oferecer os nossos lugares de cor laranja. O calor nos aguardava do lado de fora da estação e mereceu a trilha sonora que cantamos para atravessar o deserto: Ala-la-ô-ooô-ooô. O caminho das calçadas estreitas de Botafogo é aquele que percorro ao menos três vezes por semana; Voluntários da Pátria é a rua que Alice reconhece nas esquinas, nas lojas e na casa do mistério – a visita à Igreja de São João Batista ficou para o domingo.

domingo, 15 de janeiro de 2012

Epifania

Foi uma decepção quando substituíram a surpresa pelo feijão. A irmã queria encontrar o anel da princesa; mas o gatinho de porcelana também servia. A avó francesa, que não comia feijoada, muito menos farofa, até fazia algumas concessões – a coroa vermelha do Medieval Times, por exemplo, durante muitos anos substituiu a dourada, que acabava rasgando com o tempo ou não era tão firme quanto deveria. Por isso, o consenso: feijão era demais, quase ultrajante. Antes fossem as favas de fato.

A Galette de Rois era comprada pertinho de casa, em Copacabana, e a celebração se dava no lanche do fim de tarde, depois que o pai chegava do trabalho. A mãe cortava as fatias e as colocava cuidadosamente nos pratos. Fazia sempre aquela cara de sonsa, de que não sabia onde estava a surpresa ou o feijão; como se estivesse procurando, chegava a cavoucar o recheio para disfarçar. Porém, a conspiração ia muito além da teoria, as duas crianças mais velhas tinham certeza.

Ficou óbvio quando começaram a aparecer convidados: o prato sorteado era daquele amigo que nunca havia participado da brincadeira. Ou, se fosse o caso da irmã levar o namorado, o feijão seria dela, claro. A princesa colocaria então a coroa na cabeça do consorte, momento que valia também a cara de decepção do pai, o presunçoso rei do pedaço. O irmão mais velho achava graça, enquanto raspava o recheio e deixava as casquinhas de lado.

À namorada, o rapaz teve que avisar: fazia parte do pacote pagar micos como aquele e o convite era quase uma intimação. Escolhida rainha, ela acabou gostando da ideia, tanto que se casou com o tal, um nobre franco-tupiniquim de meia tigela.

Neste 6 de janeiro, em sua própria casa, atrás de uma sobremesa, ele encontra meia romã sobre a pia da cozinha e sente falta da avó sentada à cabeceira dirigindo a cerimônia. Lembra-se do irmão mais novo, temporão, e dela tentando equilibrar a coroa entre bochechas para uma foto. E também da estreia da filha, que girava os olhos sem quase mexer a cabeça, tentando entender os motivos daqueles singelos sorrisos a sua volta, os mesmos que ela vê agora refletidos no rosto do pai enquanto aguarda impaciente o doce que pediu.