terça-feira, 14 de junho de 2011

Quatre-vingt-dix-sept

Ela passa boa parte do dia sentada na espaçosa poltrona que lhe dá uma visão meio torta da televisão refletindo a imagem do hotel e da praia. Sobre o assento, o colchão d’água lhe oferece conforto; sobre o colo, a manta aquece seu corpo, mesmo que a temperatura a dispense. Às suas costas, fica a varanda, de onde vem a luz, o cheiro de maresia e as ilusões térmicas. Dali, cada vez mais silenciosa, ela comanda seu pequeno reino. Aliás, entre olhares fulminantes de reprovação ou de amor, o silêncio sempre foi o porto seguro da Bastilha que criou em torno de si mesma. A poltrona é seu trono há mais de três anos, quando deixou de andar. A partir dessa perda, ainda lúcida, teve que aceitar o fim de sua autossuficiência, confiar em desconhecidos braços fortes e entregar seu corpo para o asseio – uma dura prova de humildade para a responsável pela fortaleza erguida em Copacabana.

Ao longo desses três anos, a lucidez vem sofrendo uma lenta e constante redução de disponibilidade, cada vez mais restrita às horas de maior insolação. Os olhos acompanham esse ritmo e o sono vem mais cedo, vai mais tarde. A miudeza do tempo que sobra desperta nela uma criança, que prefere os grunhidos para chamar a atenção, embora não tenha perdido a capacidade de falar. Ao contrário, as ordens não cessaram; também não as perguntas sobre quem saiu, aonde foi e a que horas volta. Muitas vezes, a nobre fidalga prefere o francês que a acompanhante se acostumou a entender. Os caprichos vão além: procura renovar a infância em travesseiros ou pinguins de pelúcia. Só outra criança, a bisneta, parece trazer equilíbrio à desordem. A visita dela justifica a persistência da lucidez, encanta a ponto de prolongar as horas miúdas. A menina transforma o minuto em doce.

A complexidade do título que revela a sua idade (em francês, quatro vezes vinte mais dezessete) é a mesma das relações que ela mantém dentro seu território, cercado por fortes laços de família. Aos noventa e sete anos, ela resiste de fato porque ainda tem o controle sobre as vidas ao seu redor. Embora não tenha mais noção dos dias, muito menos se lembre de que hoje é seu aniversário, ali vale o calendário ditado por ela. As decisões tomadas jamais ignoram sua agenda de remédios e desejos. Assim, o mundo continua girando à sua feição. Absolutamente consciente do respeito que merece, faz valer sua força de chefe de estado e mantém o reino em suas mãos. Também por amor, ninguém ousa desafiá-la. E a rainha Mami sobre-vive.

Um comentário:

  1. Mami fofucha... nem tão "Bastilha"assim...
    Afinal ganhei muitos beijos carinhosos de avó, mesmo sendo chamada de "maluquinha" e outros adjetivos que demonatravam que apesar da aparente dureza, tinha um humor pras nossas bagunças e invenções!!
    Que bom que Alice vive isso...
    Parabéns pra Mami, e pra todos vocês, família de Amor!!

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