quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

A Cicatriz de Mione

Ocorreu em janeiro de 2007. O famigerado V, de quem não ousamos escrever o nome, utilizou-se de cruéis artimanhas para atacar uma pequena feiticeira, filha de trouxas, que mora no bairro de Botafogo em terras cariocas. A fim de protegê-la, não a chamaremos aqui pelo seu nome de batismo cristão. Na época, Mione tinha apenas um ano e sete meses e mal havia iniciado sua educação em creche muito especial, simpática à cúpula de Hogwarts. Caminhava ainda sem firmeza, balançando lateralmente, os pés cegos tateando o chão. Não se sabe exatamente se tropeçou, foi empurrada ou enfeitiçada. Sabe-se apenas que chorou muito quando o lado direto da testa encontrou a parede áspera com violência.

O galo que o pai encontrou quando chegou em casa era enorme. A testa arroxeada brilhava. Cercada de carinho, ela dormiu bem, mas no dia seguinte telefonaram da creche para avisar que ela tinha febre. A mãe foi buscá-la mais cedo; e, como o pediatra só estaria disponível no dia seguinte, levou-a ao pronto socorro, onde a menina foi medicada com analgésico. A noite foi longa, a febre não passou. Na manhã seguinte, no consultório, os dedos do médico não encontraram a esperada resistência na área machucada. Mione tinha um abscesso. As bactérias haviam se instalado ali através de uma pequena ferida causada pela aspereza da superfície da parede. Acredita-se que o aparente acaso tenha sido obra do famigerado.

Para evitar uma internação, doses cavalares de antibiótico foram ministradas. O roxo dava lugar ao vermelho na testa da criança e a vermelhidão se espalhava em direção aos olhos. Com o passar dos dias, o efeito do antibiótico era perceptível, porém lento. No fim de semana, um novo susto. Irritadiça, Mione se contorcia no carrinho durante um passeio ao shopping. Não se sabe se por descuido, por acúmulo de energia proveniente da irritação ou por intervenção maligna, o cinto que a prendia se soltou e ela caiu com a cara no chão. A preocupação era com a região molenga da testa, mas foram os lábios que incharam e os dentes que se coloriram de vermelho. Depois de alguma dificuldade para conseguir gelo numa lanchonete, o desespero levou os três ao hospital. Felizmente, o local crítico não tinha sido atingido, mas tudo indicava que uma drenagem seria mesmo necessária.

Ela aconteceu na segunda-feira à tarde, após nova visita ao pediatra. O pai, trouxa em mais de um sentido, não presenciou o sofrido procedimento por que Mione passou; ficou sabendo mais tarde, por telefone. À noite encontrou a pequena com a cabeça enfaixada. Solidários, pai e mãe também enfaixaram as cabeças. Uma foto com o pai é o único registro do fato, além da cicatriz quase imperceptível que os longos cabelos ajudam a esconder. Diferentemente da que foi desenhada na testa de Harry, ela sorri em forma de lua, como se estivesse desafiando o impronunciável, tirando onda mesmo.

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Intervalos de Verão

Toda serelepe, ela volta do quarto com a caneta e o caderninho. Quer ver o desenho que passa na tela. Deixa o caderno de lado, aberto, o nome dela escrito umas tantas vezes em meio aos rabiscos, inclusive tentativas corajosas com letra cursiva. Perde logo interesse pela TV e quer folhas de papel. Desenha. Com a tesoura, recorta, faz buraquinhos para os olhos e a boca. Depois pede aquela fita. O barbante? A mamãe dá os nós e o papai ganha a máscara. Faz muito calor e ela está só de calcinha. Sua tanto pelo bigodinho que pede para ligar o ar. Pai e mãe comemoram junto com ela. As portas vão se fechando e o friozinho vai tomando conta do ambiente. O verão é enquadrado pelo vidro da porta que dá para a varanda. Ela põe uma roupa, senta no sofá para ver um filme e papai vai para cozinha fazer o almoço. Lá não tem moleza, é quente e continua esquentando. Mamãe também não tem descanso: coloca as roupas no varal. O pai volta com os pratos feitos: peito de frango cortadinho, preparado com limão siciliano, e macarrão de arroz. A mãe desliga a televisão porque não é hora. Vejam só, quanta surpresa: a menina reclama; mas aceita a proposta do pai: música, que ela escolhe pela capa, em tons de rosa, e pelo som. O barulho das Chicas toca enquanto se come. O franguinho fica meio de lado, o macarrão some do prato e a pequena quer a licença. Fica mais um pouco, com o rosto virado para trás, desafiando. Vence quando a sobremesa vai ao sofá para ser dividida. É manga cortada em cubos, devorada em segundos. Barriga cheia, frio bom demais, e a borralheira quer ser princesa. A mãe traz o vestido de gala da Cinderela, faltando apenas o sapatinho de cristal. Descalça, ela dança a faixa que toca. São movimentos suaves para um rap. A saia gira e ela pede bis, mais uma e outra vez. Depois que entende de quem é o rap, ela passa a pedir pela música do amigo da creche, que é Silva também. Mas continua achando que o pai de família é porteiro, e não funkeiro. Quando as músicas acabam, ela desliga o som. Na tela, felizmente, não há nada melhor que a tesoura e os papéis, que se transformam desta vez em pezinhos com unhas pintadas de vermelho. Depois, mais barbante para amarrá-los sobre os pés verdadeiros. Do lado de fora, o céu azul é irresistível, até que as portas se abrem. O bafo implacável do verão coloca o vestido no cabide e expulsa os três de casa. Hora de sair, ver os amigos no fim de tarde. O trajeto é curto. A Lagoa é linda, e o ar do carro a deixa ainda mais linda. No banco de trás, com o caderninho no colo, ela registra tudo em letras sem fim – são palavras em forma de mola. Ela escreve o que ouviu dizer: domingo é dia de juntar as crianças, expor pequenas obras de arte, lambuzar-se de batom e lanchar com o dindão.

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Sebastian Bar

Eram dois os bares com esse nome. A gincana cultural que frequentei por mais de um ano acontecia no bar da rua Teresa Guimarães, em Botafogo, todas as quintas à noite. Tudo começou com um convite de um grande amigo logo depois do Carnaval. Era um ano complicado, que trazia todas as atribulações do fim de uma faculdade: a falta de tempo com o estágio, a correria do projeto final e a ansiedade relativa ao futuro profissional. Missão Impossível era o nome do jogo, embora tudo mais também merecesse esse nome. A música da série, depois atualizada com a estreia do filme, anunciava o início dos trabalhos: quatro rodadas das mais diversas perguntas, caipirinhas para mesa vencedora a cada rodada e (bons) prêmios no final para as três equipes com a maior pontuação. Momento de relaxar, passar horas brincado de sabe-tudo, desafiar o pouco tempo que sobrava e chegar em casa depois de uma hora da manhã, para acordar dali a cinco outras horas.

A minha equipe teve vários nomes – Mandrake e, sobretudo, LOUCA foram os que mais duraram. O último dos nomes era uma sigla, que revelava Lunáticos Observando Urubus Comendo Alface. Coisa louca mesmo, porém, era o tanto que tinha para acontecer naquele ano. Na mesa ao lado, pouco tempo depois da minha estreia, amigos da faculdade formaram outro time. Se para mim, Copacabana era uma vantagem; para eles, importava pouco se morassem em Laranjeiras ou Vista Alegre. Às vezes, imaginava que pudéssemos dividir a mesma mesa, mas isso já era o que fazíamos todos os dias nos trailers do Fundão, onde jogávamos também... muita conversa fora, com os mesmos objetivos desestressantes. Outra que carreguei para as noitadas de jogatina foi minha irmã blogueira, personagem frequente dos meus devaneios nostálgicos e quase vizinha de porta do bar.

Na primeira noite, a mesa estava cheia, com rostos bem conhecidos. Foi divertido, resolvi repetir. Na segunda noite, éramos apenas cinco pessoas defendendo a equipe Mandrake: eu, meu amigo e a namorada, a vizinha dele e sua amiga. Numa rápida pesquisa no calendário de 1996, é fácil descobrir a data: 7 de março. É interessante perceber que momentos importantes passam assim despercebidos. Talvez, porque eu estivesse ao lado dos amigos de sempre, que formavam o único casal da equipe naquela noite. E o que torna aquele dia tão relevante é que, há quase quinze anos, pela primeira vez, eu estava também ao lado do meu futuro: minha esposa e a madrinha da minha filha.