quinta-feira, 26 de setembro de 2013

Manhã de Rádio e Circo

O pequeno atraso daquela manhã teve um motivo bem diferente. Eu já estava vestido para o trabalho, calça social e camisa de botão de manga curta, e Nane pronta para começar a traduzir. Alice, por sua vez, já tinha cumprido sua rotina – com o uniforme de Hogwarts, dentes escovados e cabelo arrumado. Antes de levá-la para a escola, reunimos a família na sala para ouvir o rádio, quase à moda antiga. Na verdade, era um improviso. No volume máximo, o aparelho de mp3 estava jogado no braço do sofá. Os fones de ouvido serviam de antena e caixinhas de som.

Sintonizados na estação Roquete Pinto, esperávamos começar um novo programa chamado Entrelinhas. Para falar de literatura, estreava a nossa amiga Frini. Alice sorriu quando ouviu a voz dela. Perguntou o que aconteceria se ela ligasse outro aparelho, se a tia Frini também estaria lá. E eu me dei conta que o rádio é ainda um mistério para minha filha.

Saímos de casa para a nossa caminhada diária até a escola. Em geral, ela vai cantando e quem puxa assunto sou eu. A criança é sincera, se não quer papo, diz que não quer falar disso ou daquilo. Porém, falar sobre circo, sobre o trabalho que tinham feito em sala de aula naquela mesma semana, parecia interessante. Deu corda, contou uma história terrível de um menino que morrera no zoológico atacado por um leão, emendou com o fato de que não havia mais números com animais no circo. Disse:

– Eles eram muito maltratados, pai. Então alguém assinou uma lei, igual a dos escravos, sabe?... Não sei se foi o prefeito.

Perguntei se ela lembrava que a gente tinha ido ao circo juntos, contei que na minha época ainda havia bichos. Talvez influenciado pela experiência de ouvir rádio em família, acabei sugerindo que víssemos um filme antigo no fim de semana – tinha pensado nos irmãos Marx. Ela gostou da ideia, mas estava se lembrando do trailer que tinha visto no cinema, da menina que andava na corda bamba – filme baseado no livro da Lygia Bojunga, que estreia em outubro.

Naquela manhã, felizmente pra mim, a conversa rendeu. Depois que nos despedimos, com o abraço e o beijo de sempre, coloquei os fones no ouvido, os mesmos que, mais cedo, tinham servidos de caixinhas de som. O aparelho escolheu Cindy Lauper e a música dos Goonies. Lembrei-me ali do show do Bruce no Rock in Rio, da minha amiga Aninha, das fitas cassete daqueles anos 80. E me veio à cabeça, do nada, que a lei Áurea era de um século diferente, mas também dos anos 80.

quarta-feira, 4 de setembro de 2013

Jesus e Tito

Prometi a mim mesmo que não compraria livros durante a viagem que fizemos à California em 2011. O Kindle tinha sido encomendado pela Internet junto com outros dois antigos objetos de desejo. Todos foram entregues na casa de primos, onde ficamos hospedados, ao norte de San Francisco. Parecia suficiente. Contudo, não entrar em livrarias para resistir à promessa foi um grande equívoco: na última semana, quando encontramos uma loja da Borders em liquidação perto de Anaheim, a abstinência literária já era insuportável. Ali, não houve jeito, a oportunidade devorou a promessa. Saímos da loja com seis novas companhias, incluindo McEwan e Oates, e alguma preocupação a mais com o peso das malas.

É sempre assim: se o país fala uma das línguas que consigo ler, tenho que arrumar tempo para as livrarias e guardar espaço para os livros. Aliás, já que, de maneira geral, falo muito pouco, é graças aos livros que não esqueço os idiomas que aprendi.

Em outra ocasião, na primeira visita que fiz a Paris, as prioridades eram outras, mas incapazes de excluir as livrarias da programação. Na tarde que deixamos para as compras, passeando pelos Champs Elisées, resolvemos escolher uma livraria para descansar os pés. Perdi algum tempo nas mesas e prateleiras porque não tinha pensado antes em algum autor especial. Procurando a esmo, sem me dar ao trabalho de pedir alguma referência, meus olhos escolheram um título, Jésus et Tito, de um livro escrito por um bósnio radicado na França chamado Velibor Colic. O nome do meu pai, Tito, serviu como chamariz, e o texto da quarta capa me deu motivo para comprá-lo: quando criança, antes de sonhar em ser poeta, Velibor queria ser jogador de futebol, de preferência, negro e brasileiro.

Tempos depois, quando enfim coloquei o livro na minha cabeceira, acabei descobrindo uma leitura das mais prazerosas. Em capítulos curtos, o livro traz um painel de memórias da infância e da adolescência do autor, onde os dois personagens do título estão diretamente identificados com seus pais. Jesus representa a religião da família de sua mãe; e Tito, o Marechal iugoslavo, as convicções de seu pai.

Neste caso, ou acaso, meu instinto foi certeiro. Ele encontrou no título daquele livro referências da minha avó: no idioma, na crença e no filho.