domingo, 17 de novembro de 2013

Loreena

Foram cinco meses de espera, desde aquele dia de maio na cama do hotel em Amsterdã. A notícia chegou pelo Facebook, e a confirmação veio no e-mail enviado por Quinlan Road, site da Loreena McKennitt.

Não era somente o anúncio de seus primeiros shows no Brasil – era um convite. Junto com a mensagem vinha uma senha para os fãs comprarem seus ingressos, antes mesmo dos clientes do cartão de crédito que patrocinam as casas de espetáculos no Rio e em São Paulo. Compramos ali mesmo os quatro ingressos a que tínhamos direito. Ter o privilégio de ficar na segunda fila foi o resultado do respeito da artista pelos seus fãs.

Para Nane, o sonho já durava uns vinte anos, tempo superior a nossa história. E parecia mesmo improvável que Loreena viesse ao Brasil. Por isso, de alguns anos para cá, eu procurava acompanhar a sua agenda, tentava coincidir o roteiro de uma de nossas viagens de férias com os shows dela na Europa ou Estados Unidos.

A noite de terça-feira, 29 de outubro, foi ainda de espera, no trânsito quase insuportável de Botafogo até a Barra. Mesmo assim, chegamos mais de uma hora antes, pudemos fazer um lanche sem muita pressa e chegar aos nossos lugares com tempo para curtir o resto de expectativa, com a harpa da Loreena bem à nossa frente.

O segurança, que estava sentado de costas para o palco, não acreditou quando ela começou a cantar. Tirou os olhos da plateia e esticou o pescoço para checar de onde vinha, de quem era aquela voz. E o show que ali começou só não foi perfeito por causa da falta de educação de uma parte menor do público.

Nem todos ouviram, ou levaram a sério, o pedido feito pela cantora e anunciado pela produção do show, minutos antes do início, de que não fossem utilizadas câmeras durante a apresentação. Não bastou também dizer que haveria uma música na segunda parte em que seriam permitidas as fotos e as filmagens. Não foi suficiente ela explicar, entre uma música e outra, por que os flashes atrapalhavam os músicos, nem fazer um breve discurso sobre as desvantagens de estar tecnologicamente conectado e acabar perdendo a conexão com a essência, naquele caso, da música que era tocada. Contrariada mais uma vez, Loreena interrompeu sua apresentação, o que acabou gerando certa tensão dali até o final.

Apesar disso, porém, nada me fará esquecer a experiência de ouvir ao vivo a mesma voz das gravações e acompanhar os músicos de tão perto, de escutar o som das gaitas de fole e do hurdi gurdi, de ter a chance de perceber a relação serena de Brian Hughes com a guitarra ou o alaúde, a concentração de Hugh Marsh antes de atacar seu fantástico violino, e o envolvimento quase sexual de Caroline Lavelle com o cello, numa dança ritmada sem fim. Convencido de que Loreena tem toda razão, acabei me entregando ao momento e à música. E a lembrança é o único registro que tenho.

Nada me fará esquecer também o olhar de êxtase da Nane, felicidade que não parecia tão óbvia desde o dia em que ela me contou que estava grávida. No longo caminho de volta para casa, por causa do elevado fechado e de uma blitz da Lei Seca, decidimos que haverá uma segunda vez, no Canadá, terra natal da cantora, ou onde quer que os nossos caminhos se cruzem.

terça-feira, 22 de outubro de 2013

Aos Dezoito

– Tudo o que eu queria era estar longe dali – disse para mim, deitado na rede que servia de divã. Esparramado, com uma das pernas pendentes para o lado de dentro do apartamento, fez ali algumas confissões. Eu estava no sofá. Não era o analista. Anotei, portanto, só o que me interessava.

Aos dezoito, Amarante escrevia crônicas esportivas depois das resenhas de domingo. Porém, os pedaços de papel rasgado não davam crédito nem ao desejo. Ninguém lia aquelas bobagens. Ele jogava tudo no lixo. Naquela época, sonhava também com as Olimpíadas em Barcelona. O presente de aniversário, no entanto, foi muito mais útil: um carro para ir à faculdade.

– Meu pai dizia que eu merecia o presente, que a faculdade não era paga. Embora preferisse os jogos, fiquei com o Gol. – E com um suspiro, completou – Bom para sair à noite com os amigos. Quer saber, bom mesmo para ir embora do Fundão.

Amarante rabiscava outras bobagens nas aulas de filosofia da natureza. Antes de se inscrever na disciplina, achava que poderia ser divertido, uma distração para o cálculo e a física. Porém, as aulas de filosofia eram repetitivas, quase um feitiço do tempo, mas o professor sequer se parecia com o Bill Murray. Por isso, escrevia, sem rimas, alguma poesia. A maioria delas está guardada numa pasta de couro.

– São impublicáveis – respondeu quando insisti que me mostrasse. – Servem agora para eu reconhecer aquele eu de dezoito anos. Um cara esquisito.

Gostava mesmo de escrever contos, a qualquer hora, no escritório do apartamento da avó, onde ficava o computador. Na escrivaninha, usava lápis e borracha para o primeiro rascunho; depois, um editor de textos chamado Pangloss. A tela ainda era preta, e as letrinhas verdes faziam doer os olhos. Era ali que, durante horas, as histórias ganhavam corpo. Enquanto bolava os programas em Pascal para a faculdade, as horas também passavam, mas pareciam perdidas.

– Um dia eu bati com o carro, indo pro Fundão bem cedo e morrendo de sono. Fiquei revoltado. Resolvi matar todas as aulas do dia. Passei a manhã no escritório, escrevendo. – Amarante levantou a cabeça, apoiou o pé no chão e perguntou, olhando fundo nos meus olhos – Eu era, ou não era, um sujeito estranho?

Lia muito. E de tudo. Com Holden Caufield, eram duas agulhas no palheiro – caso típico de quem leu o livro de Salinger na hora certa. O estudante de engenharia leu também As Veias Abertas da América Latina, A História da Riqueza do Homem, O Homem e seus Símbolos, dentre outras, neste caso, divagações. E passava horas na biblioteca da avó pinçando qualquer coisa, folheando inclusive os livros didáticos de latim do colégio de seu pai, antes de voltar aos livros de guerra e espionagem.

Perto de casa, tinha aulas de francês. Embora se identificasse mais com o idioma da avó, preferia as de inglês, porque o curso de treinamento para professores oferecia dois módulos imperdíveis: Drama e Literatura. Sófocles e Poe. Shakespeare e Joyce.

– Aliás, não sei por que estou fazendo drama. Graças à engenharia, posso pagar os seus serviços – concluiu, antes de me dispensar. – Agora quero ler um pouquinho.

quinta-feira, 26 de setembro de 2013

Manhã de Rádio e Circo

O pequeno atraso daquela manhã teve um motivo bem diferente. Eu já estava vestido para o trabalho, calça social e camisa de botão de manga curta, e Nane pronta para começar a traduzir. Alice, por sua vez, já tinha cumprido sua rotina – com o uniforme de Hogwarts, dentes escovados e cabelo arrumado. Antes de levá-la para a escola, reunimos a família na sala para ouvir o rádio, quase à moda antiga. Na verdade, era um improviso. No volume máximo, o aparelho de mp3 estava jogado no braço do sofá. Os fones de ouvido serviam de antena e caixinhas de som.

Sintonizados na estação Roquete Pinto, esperávamos começar um novo programa chamado Entrelinhas. Para falar de literatura, estreava a nossa amiga Frini. Alice sorriu quando ouviu a voz dela. Perguntou o que aconteceria se ela ligasse outro aparelho, se a tia Frini também estaria lá. E eu me dei conta que o rádio é ainda um mistério para minha filha.

Saímos de casa para a nossa caminhada diária até a escola. Em geral, ela vai cantando e quem puxa assunto sou eu. A criança é sincera, se não quer papo, diz que não quer falar disso ou daquilo. Porém, falar sobre circo, sobre o trabalho que tinham feito em sala de aula naquela mesma semana, parecia interessante. Deu corda, contou uma história terrível de um menino que morrera no zoológico atacado por um leão, emendou com o fato de que não havia mais números com animais no circo. Disse:

– Eles eram muito maltratados, pai. Então alguém assinou uma lei, igual a dos escravos, sabe?... Não sei se foi o prefeito.

Perguntei se ela lembrava que a gente tinha ido ao circo juntos, contei que na minha época ainda havia bichos. Talvez influenciado pela experiência de ouvir rádio em família, acabei sugerindo que víssemos um filme antigo no fim de semana – tinha pensado nos irmãos Marx. Ela gostou da ideia, mas estava se lembrando do trailer que tinha visto no cinema, da menina que andava na corda bamba – filme baseado no livro da Lygia Bojunga, que estreia em outubro.

Naquela manhã, felizmente pra mim, a conversa rendeu. Depois que nos despedimos, com o abraço e o beijo de sempre, coloquei os fones no ouvido, os mesmos que, mais cedo, tinham servidos de caixinhas de som. O aparelho escolheu Cindy Lauper e a música dos Goonies. Lembrei-me ali do show do Bruce no Rock in Rio, da minha amiga Aninha, das fitas cassete daqueles anos 80. E me veio à cabeça, do nada, que a lei Áurea era de um século diferente, mas também dos anos 80.

quarta-feira, 4 de setembro de 2013

Jesus e Tito

Prometi a mim mesmo que não compraria livros durante a viagem que fizemos à California em 2011. O Kindle tinha sido encomendado pela Internet junto com outros dois antigos objetos de desejo. Todos foram entregues na casa de primos, onde ficamos hospedados, ao norte de San Francisco. Parecia suficiente. Contudo, não entrar em livrarias para resistir à promessa foi um grande equívoco: na última semana, quando encontramos uma loja da Borders em liquidação perto de Anaheim, a abstinência literária já era insuportável. Ali, não houve jeito, a oportunidade devorou a promessa. Saímos da loja com seis novas companhias, incluindo McEwan e Oates, e alguma preocupação a mais com o peso das malas.

É sempre assim: se o país fala uma das línguas que consigo ler, tenho que arrumar tempo para as livrarias e guardar espaço para os livros. Aliás, já que, de maneira geral, falo muito pouco, é graças aos livros que não esqueço os idiomas que aprendi.

Em outra ocasião, na primeira visita que fiz a Paris, as prioridades eram outras, mas incapazes de excluir as livrarias da programação. Na tarde que deixamos para as compras, passeando pelos Champs Elisées, resolvemos escolher uma livraria para descansar os pés. Perdi algum tempo nas mesas e prateleiras porque não tinha pensado antes em algum autor especial. Procurando a esmo, sem me dar ao trabalho de pedir alguma referência, meus olhos escolheram um título, Jésus et Tito, de um livro escrito por um bósnio radicado na França chamado Velibor Colic. O nome do meu pai, Tito, serviu como chamariz, e o texto da quarta capa me deu motivo para comprá-lo: quando criança, antes de sonhar em ser poeta, Velibor queria ser jogador de futebol, de preferência, negro e brasileiro.

Tempos depois, quando enfim coloquei o livro na minha cabeceira, acabei descobrindo uma leitura das mais prazerosas. Em capítulos curtos, o livro traz um painel de memórias da infância e da adolescência do autor, onde os dois personagens do título estão diretamente identificados com seus pais. Jesus representa a religião da família de sua mãe; e Tito, o Marechal iugoslavo, as convicções de seu pai.

Neste caso, ou acaso, meu instinto foi certeiro. Ele encontrou no título daquele livro referências da minha avó: no idioma, na crença e no filho.

domingo, 18 de agosto de 2013

Lições de Amsterdã

Chegamos a Amsterdã no fim de um domingo e logo sentimos a diferença. Não há tantas placas assim, a língua é estranha, mas em todo canto tem um balcão de informações, onde alguém de bom-humor e em ótimo inglês faz de tudo para ajudar. Seguindo as instruções, pegamos o trem e saltamos na primeira estação para fazer a baldeação.

Dali, a viagem seguiu pela linha 1 do tramway até bem perto do hotel. Logo que saímos, arrastando as malas que já vinham mais pesadas com os vinhos italianos, começamos a reparar que cada uma das pistas da larga avenida servia a um meio de transporte diferente: carros, bicicletas e os próprios tramways, que curiosamente dividiam seu espaço com os táxis.

O hotel era, na verdade, um Bed and Breakfeast discreto, embora muito bem localizado. Antes mesmo de tocarmos a campainha, uma moça esbanjando simpatia abriu a porta dizendo que já estava esperando por nós. Ieke não se deu ao trabalho de checar qualquer informação pessoal. Subimos as escadas até o segundo piso do Flynt, onde ficavam três quartos, a cozinha e a mesa do café da manhã. Em quinze minutos, ela deu todas as dicas possíveis e, a meu pedido, indicou o restaurante onde acabamos jantando.

Ao longo dos dias fizemos quase todos os passeios óbvios. Sobretudo para quem dispensa os áudio-guias, o Museu Van Gogh, por exemplo, beira a perfeição no que diz respeito à informação e à comunicação visual. Para cada quadro, há uma história. Se o objetivo é mostrar as influências de outro pintor, há dois quadros: um de Van Gogh, o outro do colega. Se tirar fotos é proibido, a sinalização é precisa e específica. Na Casa de Anne Frank, por outro lado, somos envolvidos por um roteiro de intolerância, medo, ceticismo e lágrimas. Ao final do itinerário questões sobre preconceito nos fazem pensar, e as únicas respostas possíveis (yes or no) nunca parecem suficientes; em alguns casos, nem mesmo definitivas.

Desde a primeira vez, em 2010, quando passamos por Haia, Delft, Keukenhof, Kinderdijk e visitamos uma recém-nascida em Helmond, a Holanda nos ensina muita coisa. Por isso, fiquei obcecado pela foto que não tirei desta vez.

No segundo dia, pela manhã, pegamos um tramway até a Estação Central de Amsterdã e depois um ferry-boat para chegarmos ao EYE Filmmuseum. De lá, é possível assistir a uma grandiosa lição de coexistência e integração. Além da visão óbvia dos trens, tínhamos os enormes estacionamentos de bicicletas, os carros que chegam, os ônibus que partem; e, na água, diversos tipos de embarcação, dos bateau-mouches cheios de turistas aos navios de carga que seguem em direção ao porto.

Não tirei a foto, mas como não quero esquecê-la, resolvi escrever sobre ela, porque a minha cidade precisa de exemplos assim.

domingo, 4 de agosto de 2013

A Pequena Cinéfila

Alice ganhou um iPod de aniversário, e uma de suas mais novas diversões é brincar com o aplicativo do IMDB. Ela procura pelo filme a que acabou de assistir, identifica uma determinada atriz, por exemplo, e passa o tempo descobrindo em que outros filmes ela atuou. Foi assim com Catherine O'Hara: depois que vimos Beetlejuice, digitou “Fantasmas” e deu com Esqueceram de mim.

Aproveitando suas férias, preparamos uma programação de filmes que julgamos adequados para a idade dela, dando preferência ainda às nossas melhores lembranças de infância. Alguns deles, claro, adequados apenas com a nossa orientação. O próprio filme do Tim Burton, aliás, está longe de ser óbvio para uma criança de oito anos.

O que me deixa muito feliz é que Alice topa qualquer coisa. Mesmo que nem sempre pareça conectada à história, enfrenta ritmos e temas diferentes sem rejeições. No fim das contas, vale a pena arriscar. Por isso, fico mais tranquilo com as suas pequenas manias, como a Violetta, série do Disney Channel que faz questão de ver todos os dias – por causa da protagonista, sua mais recente obsessão é conhecer Buenos Aires.

Uma das experiências mais interessantes que tive com ela foi assistir a um filme iraniano chamado Filhos do Paraíso. À cena inicial do sapatinho, cujo conserto dura mais que o suficiente para uma criança pouco habituada à poesia, reagiu assim: É só isso? Não vai acontecer nada, pai? Pedi que tivesse paciência e fomos juntos até o fim. O filme é excelente, traz com simplicidade lições muito positivas e oferece também a oportunidade de contato com uma cultura e uma realidade econômica bem diferentes das que ela tem.

Outra de minhas tentativas foi Kamtchaka, filme argentino de que gosto muito. Para ela, o exército era a polícia, e quis entender por que a família estava se escondendo já que a função da “polícia” era protegê-los. Expliquei à minha maneira, evitando sentenças definitivas que pudessem alimentar a sua insegurança. Sobre a última cena, quando os pais se despedem dos filhos, Alice concluiu sozinha que eles nunca mais se veriam. Quis confirmar, e eu preferi não criar ilusões.

No fim de semana passado, da visita do Papa Francisco ao Rio de Janeiro, Alice me encheu de porquês durante a exibição de Irmão Sol, Irmã Lua e deu muitas gargalhadas com Mr. Bean. Ontem, depois de uma passadinha na Livraria Cultura, fomos a uma sessão infantil do Anima Mundi no Odeon. Hoje, ela é a minha melhor companhia.

quinta-feira, 25 de julho de 2013

Rodas

Gostamos muito de viajar de carro. Dividimos as tarefas assim: eu dirijo, Nane navega. E o GPS é o nosso melhor amigo. Só falta tratar com carinho: Errou o trajeto, amor? Não tem problema, eu resolvo isso pra você – confesso que não tirei a ideia da minha cabeça; o dono da graça é outro melhor amigo. Aliás, o GPS também é engraçado: há desembargadores em quase todas as ruas francesas e delegados nas italianas. Na lógica do aparelho, a Rue des Halles homenageia o Desembargador Halles; e a Via del Corso, o Delegado Corso.

Sempre alugamos carros de uma mesma categoria: a mais barata que ofereça espaço para as nossas malas. Em nossas breves experiências, os franceses foram mais generosos que os italianos: em Paris, pegamos uma Mercedes Classe B; em Nice, um Nissan Juke que, na verdade, não tinha o espaço de que precisávamos, mas foi inesquecível; e, em Bologna, um Opel Meriva de embreagem dura. Continuando com as comparações, achamos as estradas italianas mais apertadas; percebemos que os franceses correm, mas os italianos exageram. Somente os holandeses parecem obedecer aos limites de velocidade. Mas a Holanda é sempre um capítulo a parte.

Se, por um lado, temos que perder um tempo procurando por estacionamentos e aprender a lidar com as regras dos pedágios e as intrigantes informações nos postos de gasolina (do tipo: “The self service not to be bones”); por outro, o carro nos oferece uma liberdade sem preço. Se não gostamos, vamos embora de Tarascon. Caso contrário, podemos voltar a San Gimignano para tomar mais um sorvete.

Rodas não é apenas o título desta crônica. É o nome de um livro, feito sob encomenda, que meu pai escreveu com um amigo sobre a história do automóvel. Herdei dele o gosto por carros. A minha ligação, porém, é mais afetiva que aficionada. Não entendo quase nada da parte mecânica, já não reconheço mais marcas e modelos. A paixão por carros resiste junto às lembranças da minha infância: a minha coleção de Matchbox, as manhãs de domingo com Senna, Piquet e meu pai. Ainda assim, é impossível resistir a uma foto de um Citroën 2CV em ruas francesas, ou a um almoço no meio da fumaça durante um evento chamado Mille Miglia em Siena.

Por tudo isso, quando fizemos nossa opção pela Itália e concluímos que a melhor opção de voo da KLM nos levaria a Bologna, foi inevitável começar a viagem por Maranello, pelo Museo Ferrari, pelo simulador de um Fórmula 1, pelas fotos com a baratinha vermelha e os carros esportivos, antes mesmo do vinagre balsâmico.

domingo, 14 de julho de 2013

Ostia Antica

Ficamos ali, sentados, cerca de vinte minutos. Um banco qualquer nos jardins da Villa Borghese, uma dor de cabeça que era enxaqueca. Fazia o tempo de sempre – céu nublado, um sol tímido se alternando com alguma garoa. Enquanto eu me distraía com a habilidade dos motoristas de ônibus, que estacionavam de ré na ladeira, ela desistia. Aquele passeio ficaria para outras férias, ou nenhuma.

Ela insistiu, e nós nos despedimos na estação Ré di Roma, de onde voltaria sozinha para o hotel. A partir dali, segui em minha primeira aventura solitária em terras estrangeiras. Experiência começou depois que deixei o metrô algumas estações adiante, em Piramide, subi as escadas e esbarrei com a habitual falta de informações. Como só havia um trem na estação San Paolo, resolvi me aproximar. Ostia Antica? O condutor acenou com a cabeça, e eu entrei.

Para passar o tempo, observava as pessoas, buscava personagens. Só me chamou a atenção o grupo de adolescentes que se amontoavam nos bancos, as meninas sentadas no colo de seus namorados, muitos sorrisos e pouco falatório. Era sábado, deduzi assim que iam para as praias e que eu saltaria antes deles. Reflexo da ansiedade, da falta de ter com quem conversar, eu contava as estações restantes a cada parada, queria mesmo chegar logo ao meu destino.

O sol só apareceu quando cheguei ao parque arqueológico. Mas ventava muito, e era difícil manter aberto o folheto que comprei na bilheteria. Aquele mapa era suficiente – não queria uma aula de história. Aliás, quando viajo por aí, costumo dispensar explicações em demasia. Para mim, naquela cidade fantasma, bastava caminhar labirintos adentro, identificar as principais atrações numeradas no papel, tentar visualizar as imagens de uma época desconhecida, ou chegar ao porto e descobrir que o mar não passa mais ali.

Precisava registrar meus passos: tirei fotos de mim mesmo, até acertar, entre as ruínas e no teatro (contra o céu azul, para a lembrança ficar mais bonita).

Mais tarde, voltaram as nuvens e também a garoa. Em busca de abrigo, encontrei o museu e, depois, a lanchonete. Preferi comer apenas uma salada de frutas, para chegar com fome a Roma e caprichar no jantar. Mais de duas horas depois, voltei à estação de trem com um punhado de fotos para dividir e uma história a mais para escrever.

quarta-feira, 1 de maio de 2013

Ciúmes

Eram duas bolas tricolores. Era assim para evitar o ciúme entre irmãos. E o palco era a Lagoa Rodrigo de Freitas, de um memorável Fla x Flu. Ali, jogamos nossa primeira partida de futebol. Segundo as contas do meu afilhado, ele venceu por tantos gols quantas bolas foram parar na água naquele jogo de mais de setenta anos. Pedro vestia outro presente: uma camisa grená com o escudo branco e os dizeres óbvios – Eu sou tricolor. Meu pai diria que a partida tinha sido um jogo de titulares contra aspirantes do mesmo Fluminense.

Enquanto isso, Alice se divertia com as mães.

Pedro acabou deixando o irmão menor e as bolas tricolores, veio conosco para casa, e naquele dia brinquei de ser pai de menino. Na TV escolhemos desenhos de super-heróis. Sem largar o boneco do Hulk que havia trazido, me apresentou a versão troncudinha e diminuta de alguns vingadores em programas de vinte minutos, passados um atrás do outro. Quando ele desistiu dos filmes para simular brigas entre seus bonecos, criamos um novo herói: o Hulk perdeu a cabeça, ficou só pescoço e se transformou no Cara de Galinha.

Enquanto isso, Alice se distraía sozinha.

Depois, voltamos ao futebol e chamamos Alice para brincar. A mesa de botão saiu de trás do armário e foi para o chão. Pedro quis os tricolores. Alice também. Ele não sabia ainda como pegar na palheta. Ela quis mostrar que sabia. Um jogo de infantis contra os dente-de-leite, diria papai. Outro jogo em que o resultado era o que menos importava. Contudo, a cada vez que o dadinho encontrava a rede, Pedro me dirigia um olhar inquisidor antes de perguntar: foi gol?

Quando ele perdeu o interesse, Alice resolveu falar:

– Pai, agora é a minha vez. – O cenho franzido e os dedos apertados entre as mãos diziam tudo, mas ela precisava esclarecer – Você passou o dia inteiro brincando com o Pedro. Eu sou sua filha. Agora você vai brincar comigo.

Se Pedro se lembrará desse dia, não sei. Eu não vou me esquecer e espero repetir muitas vezes. Será mais fácil agora que seus pais estão voltando para o Rio depois de mais de oito anos de vida paulista.

Alice já esqueceu.

No dia seguinte, quando a convidei para sair, para comprarmos juntos um lanche gostoso, ela não deu bola, respondeu que estava cansada. E com dor no pé.

quinta-feira, 18 de abril de 2013

Pedras, Pratos e Outros Bichos

Fiquei muito surpreso quando me disseram pela segunda vez em menos de uma semana que o rim é o órgão do medo. Estava de novo num consultório, mas aquela não era uma sessão de terapia.

Eu vestia apenas uma cueca amarela e um avental azul que, aberto na frente, não cobria grande coisa. Estava deitado, de barriga para cima, enquanto a médica apertava o aparelho gelado contra a minha bexiga e me fazia perguntas. À primeira delas, respondi que estava apertado, mas dava para aguentar. Ela apontou então para o monitor para mostrar a bexiga cheia e o fluxo da urina, sem obstáculos, em direção à uretra. Confirmou o que a ausência de dores já indicava: a pedra tinha sido expelida.

Quando voltei do banheiro, ela se concentrou nos rins e acabou encontrando outra pedra, também pequena e que ainda permanece quietinha no lado esquerdo. Veio então com a tal história da medicina chinesa e dos órgãos relacionados às emoções. Parecia curiosa sobre os meus medos. Era simpática, e eu não me importei de contar como tinha sido a minha última sessão de terapia.

Naquela sessão, expliquei, a imagem que se formou na minha mente foi a do equilibrista que precisa manter os pratinhos rodando. E as reflexões em torno da imagem me levaram ao maior dos meus medos: o fracasso. Concluímos que a queda de qualquer um dos pratos seria suficiente para caracterizar o meu insucesso. Por isso, para manter os pratinhos rodando, estou sempre atento, não costumo relaxar e agora produzo pedras.

Mais tarde, tentando aprofundar a questão, fiquei imaginando quais seriam os pratos do equilibrista e como eles apareceriam em sonho: os mais delicados, de muitos sabores, frutos do meu amor por uma mulher e uma menina; o mais pesado, de arroz, feijão, da responsabilidade profissional e financeira; o menos previsível de todos, da sopa de letrinhas e da espuma criativa. Pensei ainda em pratos sobre o quais não tenho qualquer controle, mas não saem da minha vista e ficam na borda da mesa – pratos com cheiro de infância.

Procurando diversão, lembrei-me de Hogwarts, das aulas do Professor Lupin, dos alunos enfrentando seus medos. Revi a imagem do equilibrista, vi os pratos caindo, pensei num feitiço. Ridículo!

Não menos ridículo foi o que me aconteceu dias depois. Eu quase esqueci a dor extrema que enfrentei com o cálculo renal quando tive que passar pela tortura insuportável da coceira causada por um bicho folgado, que desenha caminhos através de pequenos túneis sob a pele. Um bicho geográfico, que não faço a menor ideia de como tenha parado aqui no meu polegar; ou ali, deixando a marca de um raio, igual ao do Harry, no lado esquerdo da minha barriga, naquela curva simpática que costumam chamar de pneu.

Sei que agora, buscando ajuda da medicina tradicional ou chinesa, da feitiçaria britânica que seja, tenho que cuidar do óbvio: se o equilibrista cair, ficam as pedras, os bichos, mas talvez não sobrem os pratos que contam a minha história.

domingo, 31 de março de 2013

Bonitinha

– Fica um pouco aqui? – Alice já estava deitada quando fez o pedido. E a luz do abajur iluminava metade do rosto dela.
– Tá bom – concordei enquanto colocava o cobertor por cima das pernas magrinhas.
– Papai, conta aquela história de quando vocês se conheceram?
– Eu e sua mãe? – Sabia que sim, então emendei assim que encostei a cabeça no travesseiro – A gente se conheceu num bar. Você sabe o que é um bar?
– Não.
– É um tipo de restaurante, que tem muita bebida e umas comidinhas para beliscar. Às vezes, tem música também.
– Sei – ela respondia sem se mexer, acho que pensando na próxima pergunta.
– Nesse bar tinha um jogo de perguntas – continuei. – O Luiz Sérgio, aquele amigo do papai, me convidou um dia. Você sabe quem ele é, não sabe?
– Sim.
– Então, sua mãe era vizinha dele, gostava de ir ao barzinho também. E a gente jogava no mesmo time. Aliás, no dia em que conheci sua mãe, conheci sua dindinha também. – Eu queria continuar, porém, naquele momento, Alice preferiu mudar de assunto. Parecia saber aonde queria chegar.
– Pai, agora conta aquela de quando a mamãe te falou que estava grávida?
– Conto. – Só parei para respirar. – Ela dava aulas de inglês, trabalhava até tarde, só chegava em casa depois das nove da noite. Sempre muito cansada, com o rosto quase triste.
– Triste?
– De cansaço, filha. Mas ela entrou em casa sorrindo naquele dia. Disse que tinha um presente pra mim.
– Era eu.
– Era – confirmei. – E ela falou que o presente estava embrulhado, mas eu só poderia abrir dali a nove meses. Eu só entendi que ela estava grávida quando ela apontou para o umbigo, assim... – depois de me acomodar sobre o cobertor, levantei a camisa para repetir o gesto da Nane.
– Eu já sei o que você falou! – foi assim, de repente, que a agitação tomou conta dela – Você disse pra ela que estava feliz, muito feliz, que sempre quis ter uma filha. – Alice se virou para me abraçar.
– Fiquei muito feliz, mas eu não sabia ainda que era uma menina – afirmei, achando graça da frase que ela criou para a situação. Àquela altura, estávamos deitados de lado, olhos nos olhos.
– Como foi quando você soube que era eu?
– Sua a mãe foi fazer um exame que dá para ver as formas do bebê na televisão. A imagem é escura, e só os médicos sabem dizer quais as partes do corpo a gente está vendo. – Às vezes, é difícil explicar as coisas. No entanto, segui em frente – A médica mostrou sua cabeça, suas mãozinhas. Dava até para ver os dedinhos. Depois a gente ficou torcendo para você não fechar as pernas, para saber logo se era um menino levado ou uma mocinha sapeca.
– E você queria uma menina, né?
– Muito. Quando a médica falou, fiquei tão emocionado que até chorei.
– Ah! Que bonitinho. – Ganhei outro abraço e um carinho na cabeça.

domingo, 17 de março de 2013

Um Perfil Curioso

Manoel de Barros diz que poesia não é para compreender, mas para incorporar. O conceito vale para arte de forma geral. É coisa íntima, às vezes inexplicável. Por isso, sou capaz de juntar na minha lista de preferências livros tão diferentes quanto Sagarana de Guimarães Rosa e A Peste de Camus. Ou filmes, como A Outra História Americana, de Tony Kaye, que tem uma fantástica atuação de Edward Norton, e Primavera, Verão, Outono, Inverno... e Primavera, de Ki-duk Kim.

Os livros citados foram lidos na adolescência, junto com os tantos de espionagem que eu adorava e aqueles da série Vagalume que marcaram a minha geração. Com Sagarana, descobri prazer numa leitura mais lenta, aprendi a valorizar a linguagem e a arte do texto. A Peste me fez pensar como nunca, e acabei envolvido pelas questões do Doutor Rieux e do Padre Paneloux. O livro de Camus, aliás, é um dos raros que li duas vezes, em tempos diferentes, mas com emoções parecidas.

Nos tempos de estudante de engenharia, e mesmo nos primeiros anos de formado, muito dedicado aos estudos e ao trabalho, foi mais fácil optar pelos filmes e também pelos contos. Naquela época, em que li toda a coleção Mar de Histórias e misturava Mia Couto com Raymond Carver (um dos poucos que me fez chorar), assisti ao filme de Tony Kaye. A violência que fazia algumas pessoas abandonar o cinema não tirou minha vontade de aplaudi-lo de pé. Mesma sensação de deslumbre que tive em casa com o filme coreano.

Em meio às coletâneas de contos, ainda antes de minha filha nascer, voltei a buscar leituras mais longas: Crônica de uma Morte Anunciada, de García Marquez, me trouxe de volta a vontade de escrever; Memorial do Convento, de Saramago, a leitura de romances; e O Senhor dos Anéis, as madrugadas insones.

Nenhuma das preferências relacionadas até aqui, porém, falam tanto de mim quanto os livros que gostaria de ter escrito e os filmes que gostaria de ter feito. Tentando fazer uma lista deles, deparo-me com um perfil curioso: sou judeu e argentino. Amós Oz, Jonathan Safran Foer e sua mulher Nicole Krauss provocam em mim a urgência de mergulhar na história da minha família, especialmente a que está ligada às raízes católica e francesa. Por outro lado, é à maneira argentina dos filmes estrelados por Ricardo Darín que gostaria de construir meus diálogos e caracterizar relacionamentos.

Pantera no Porão, de Oz, Extremamente Alto e Incrivelmente Perto, de Foer, A História do Amor, de Krauss, e o filme Kamchatka têm em comum o ponto de vista da criança curiosa que ainda sou. Ela é protagonista ou narradora de quase tudo o que escrevo.

domingo, 3 de março de 2013

Abobrinhas

Na noite de domingo liguei a televisão para assistir ao Oscar sem ter visto qualquer um de seus principais concorrentes. Confesso que sinto muita falta de ir ao cinema, ou de alugar três ou quatro filmes para ver no fim de semana. Tenho saudades também de me arriscar no Festival do Rio. Enquanto Alice esteve na rotina comer-chorar-dormir, eu ainda conseguia ver os filmes quando eram lançados em DVD, alguns sem a companhia da Nane. Quando começaram as festinhas infantis, nem isso. Agora só vamos ao cinema com ela, ou seja, dos indicados para o prêmio em 2013 vimos apenas os candidatos a melhor animação Valente e Detona Ralph, o curta Paperman, além dos nossos heróis da Terra Média e também os Vingadores. Isso porque felizmente Alice não tem medo de Orcs e cresceu tanto que já suspira pelo Thor.

Um dos raros momentos que temos para colocar alguns desejos em dia é o carnaval. Entrincheirados em casa por causa dos blocos e do calor, este ano acabamos descobrindo que só Netflix pode nos salvar ou, pelo menos, diminuir o enorme atraso. Dentre outros, vi com Nane o lindo filme japonês A Partida, vencedor do Oscar em 2009 e com Alice, A Felicidade não se Compra, de Frank Capra, indicado em... Vamos ao que importa: apesar da temática adulta, do preto e do branco, ela prestou atenção até o fim, entendeu o que bastava.

Voltando ao domingo passado, antes da cerimônia de premiação começar eu me perguntava para quem iria torcer. Afinal, tinha que encontrar alguma motivação para perder algumas horas de sono no início da semana. Apesar de não ligar muito para musicais, pensei em vestir a camisa azul por Jean Valjean e todos os miseráveis franceses. Outra opção eram os bastardos inglórios de Tarantino – vou sempre torcer por eles, mesmo que o nome do filme seja outro. Perdido entre miseráveis e bastardos, cogitei ainda vibrar com um Oscar para Haneke, mas que não fosse o de filme estrangeiro: presente de meu pai, Kon Tiki foi um livro inesquecível que devorei há muitos anos. Para melhor ator, não consegui escolher, embora ache que Denzel Washington precisa ganhar mais alguns para compensar os que perdeu com Hurricane e Malcom X.

No fim das contas, estava mesmo precisando fazer um pouco de coisa nenhuma. Enquanto Alice dormia e Nane trabalhava, eu escrevia abobrinhas na Oscar Conference da minha amiga Aninha no Facebook. Não fossem os amigos (neste caso, as amigas do Bradley, que foram bastante compreensivas com a falta que Scarlett me fez), teria dormido muito antes do fim. O ano precisava recomeçar assim, às duas horas da manhã, sem pretensões. E o blog precisava de um texto mais leve para deixar para trás os momentos tristes e tensos de janeiro.

terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

Pontos de Vista

A experiência da recente cirurgia por que Alice passou pode ser contada sob dois pontos de vista: o da ansiedade dos pais e o da coragem da filha. Como pretendo escrever um texto informativo, optei por seguir a primeira linha. Eram as nossas dúvidas permanentes que explicavam tanta ansiedade. Afinal, já convivíamos com o problema havia sete anos e nunca tivemos certeza de que estávamos lidando com ele da melhor forma possível.

Foram médicos diferentes, por exemplo, que fizeram as sondagens no canal lacrimal do olho direito já que as massagens não faziam efeito. Na primeira, Alice tinha apenas sete meses. A segunda sondagem foi realizada seis meses depois, durou mais tempo que a primeira e exigiu uma sedação mais pesada. Como os procedimentos não tiveram sucesso, aprendemos a conviver com lenços de papel, chumaços de algodão molhados com soro e colírios para os momentos de infecção. Tobrex foi o primeiro deles.

Acontecia o seguinte... Como havia alguma obstrução no canal, as lágrimas não escoavam em direção ao nariz. O líquido acumulado perto do olho provocava um lacrimejar constante e tornava o local suscetível às infecções. Quando estas ocorriam, as lágrimas ficavam cada vez mais espessas até ganhar uma coloração amarelada. Às vezes, Alice acordava com os cílios grudados e o olho fechado. E, se a infecção se agravava, a olheira chegava a ficar avermelhada. No entanto, o uso de colírios sempre resolveu (já usávamos o Biamotil) e nunca tivemos que enfrentar algo pior.

Não deixamos, porém, de procurar oftalmologistas, especialistas ou não, dentro ou fora dos planos de saúde. Alguns deles, menos sensíveis, chegaram a nos assustar com as descrições da solução cirúrgica, que envolveria quebrar o osso do nariz, e associações entre o uso frequente de colírios e o risco de glaucoma. Outros nos indicaram um procedimento chamado dacriocistografia, que consiste basicamente de um exame feito com contraste para identificar o local e a extensão da obstrução. Como exigia sedação, foi difícil encontrar uma clínica que fizesse. Acabamos deixando essa ideia de lado.

Passamos ainda por uma inusitada entrevista em que o doutor, quase aposentado, muito desinteressado, sequer olhou para a criança que acabara de completar 5 anos. Felizmente, pouco tempo depois, o pediatra da Alice nos indicou o Dr. Carlos, que nos deu esperança de que ela pudesse escapar da cirurgia e nos reensinou a massagem. Voltamos também ao Tobrex. E, de fato, durante os 9 meses seguintes, a frequência das infecções diminuiu bastante, contudo, somente até o inverno chegar com os resfriados, o nariz entupido e as secreções.

Em dezembro passado, voltamos ao Dr. Carlos. Ele futucou o canal lacrimal com uma seringa enorme e, com outra, injetou uma quantidade considerável de soro, mas Alice não sentiu o líquido descer pela garganta. Levando em conta todo o histórico, acabou dando o braço a torcer. Para fazer a cirurgia, indicou um antigo professor que, por sua vez, nos fez chegar ao Dr. Leonardo. E todos acharam o exame com contraste dispensável.

A decisão foi tomada rapidamente porque precisávamos aproveitar o período de férias e dar tempo para Alice se recuperar antes do início das aulas na nova escola. Sofremos com os procedimentos burocráticos, principalmente do plano de saúde, que vimos agravados pelo fato de que a equipe médica não era cooperada. Chegamos inclusive a assinar um absurdo termo de ciência, onde nos responsabilizávamos pelos honorários e por quaisquer problemas resultantes da cirurgia. Era condição para a autorização.

Alice foi operada às 19 horas do dia 22 de janeiro na Clínica Pediátrica do Centro Médico da Barra. A nossa espera angustiante no quarto durou cerca de 2 horas e a dacriocistorrinostomia, cerca de 50 minutos. Quando retornou, Alice chorava e tremia muito. Era efeito da sedação. Recebeu alta na mesma noite e, assim, às 23h30 já estávamos em casa. Só reclamou de alguma dor na mesma noite e na manhã seguinte. Com três pontos no contorno da olheira arroxeada, foi inevitável a identificação com a Frankie Stein, boneca da coleção Monster High. Isso resolveu em parte o problema da vaidade e da vergonha de sair de casa.

Ela tirou os pontos uma semana depois. Permanece com um tubinho de silicone quase imperceptível dentro do novo canal lacrimal e que deve ser retirado dentro de um mês. O tubo dá forma ao canal e evita que ele se feche com a cicatrização. Não há garantia que a solução funcione para sempre. No entanto, se tiver que repetir o procedimento, o caminho através do osso do nariz já está feito.

Agora não há quem pergunte se ela chorou ou por que estava chorando. Não há remela para espantar ninguém. Alice não sofre mais com a nossa intromissão insistente para a limpeza do olho, nem usa colírios. Está muito feliz; e nós, pais, bastante aliviados.

domingo, 27 de janeiro de 2013

Pílulas de Vida

– A gente pode começar, pai? – Aninha estava com os dedos sobre os dois botões do rádio toca-fitas para iniciar a gravação. Depois do jogo de mímica, as nossas mães tinham se retirado com as crianças menores: a irmã dela, Patrícia, e meu irmão, ainda um bebê, dormiam cedo. A farra da noite no sítio de Arcozelo começaria em seguida, com os sempre animados pais bigodudos, um carioca e o outro goiano.

Os bigodes, a fita BASF laranja e preta e um cometa que poucos conseguiam ver, mesmo no céu estrelado do interior do Rio de Janeiro, situam as minhas lembranças no tempo. Éramos pré-adolescentes, vivíamos os anos 80, ouvíamos Legião e Ultraje. Queríamos fazer um programa de rádio. Além de Aninha e eu, estavam minha irmã e, talvez, Melina ou Carol. Quem sabe uma delas não se lembra daquele dia?

Logo depois de autorizar o início da gravação, Maurício, o pai bigodudo da Aninha, introduziu o programa, deu um nome qualquer à rádio e anunciou a execução do hino nacional. Cantamos com tanto prazer que resolvemos continuar com os hinos e homenagear a pátria da minha avó marchando ao som da Marselhesa. Acho que foi naquela noite que o meu pai bigodudo deu ao goiano o apelido de Maurice Chevalier. Afinal, era o pai da Aninha dava o tom da nossa brincadeira, fazia-nos gargalhar em meio às representações de Vicente Celestino e às criativas propagandas que intercalavam as músicas que tocavam em nosso programa de rádio. Em portunhol invejável, ele dizia:

– Mientras los passaritos hacen piu piu, Melhoral demanda su dolor...

– A la puta que o pariu!!! – Éramos nós que completávamos, enchendo a boca para gritar um palavrão autorizado pelos pais.

Assim como Aninha escolheria minha mãe para ser madrinha de crisma, eu escolheria Maurice como meu padrinho alguns anos depois. Parecia natural. Era a maneira de formalizarmos a vontade de duas famílias estarem juntas para sempre e não nos esquecermos jamais dos jogos de mímicas e dos programas de rádio. Além disso, cercado pela aura complexa do pessimismo gaulês, eu também queria me deixar contagiar com aquela alegria descomplicada que vinha de Goiás Velho. E para falar a verdade, não tinha qualquer outra afinidade com ele, nem mesmo as futebolísticas.

Maurício, por exemplo, era médico, profissão que nunca passou pela minha cabeça. Por outro lado, acho que isso explicava suas preferências radiofônicas para os comerciais repetidos à exaustão com rimas imperfeitas:

– Pílulas de vida do Dr. Bode...

– Entram pela boca, saem por onde podem!

As minhas lembranças vêm assim: gota a gota, frase a frase, gargalhada a gargalhada. A saudade que sentimos, agora que Maurício nos deixou, vem como lição. Nós temos hoje a mesma responsabilidade que os nossos pais tinham quando fizemos aquela gravação, mas nada pode ser tão penoso que nos impeça de fazer graça, seja com frequentes referências jedi, como Aninha, ou vestindo uma fantasia do Harry Potter, como eu. Aliás, contra toda a minha timidez, há pouco mais de dois anos, num dia de muito calor, eu estava vestido assim (de sobretudo preto, cachecol vermelho e amarelo) quando o meu padrinho sorriu para mim pela última vez. Faz muito sentido, não faz?

domingo, 6 de janeiro de 2013

No Cemitério

A Aventura morreu. Acho que foi a maior perda que tivemos no ano que passou. Era uma árvore que ficava na Rua Visconde de Caravelas em Botafogo. Uma daquelas cujas raízes levantam a calçada e quase não deixam espaço para os pedestres. Foi a primeira aventura de Alice. Ela adorava passar por ali com seus pezinhos pequenos para desfrutar da sensação de desafio. Passávamos ali nos dias de natação, antes da escola. Já faz algum tempo, mas eu não me esqueço, e ela também não. Por isso, foi triste. E para afastar essa tristeza, procuramos juntos por outras aventuras, aproveitando as minhas férias obrigatórias de fim de ano e a necessidade da Nane de adiantar suas traduções.

A primeira delas aconteceu na sexta-feira depois do Natal. Acordamos e ligamos para o meu pai. A ideia era sequestrá-lo por algumas horas, tirá-lo da prisão domiciliar que ele mesmo se impõe para não deixar a Mami, minha avó, muito sozinha. Minha mãe acabou assumindo o plantão da manhã e nós marcamos o encontro na Estação Cardeal Arcoverde, em Copacabana, de onde pegamos o metrô para a Cinelândia. O destino era a nova Livraria Cultura que agora ocupa o prédio do antigo Cine Vitória. Logo que chegamos, a pequena Alice reconheceu Shakespeare na estante graças a um livro que ganhou no aniversário. Ali meu pai provavelmente se lembrou dos tempos que frequentava o cinema, mas não falou muito sobre isso.

Ficamos tempo bastante para sentirmos fome. Eu preferia comer na rua para estender o passeio. Meu pai, por sua vez, estava preocupado com a hora – tinha que render minha mãe, que cuidava da Mami e tinha um compromisso no início da tarde. Alice resolveu o problema: estava com saudades da comida da vovó. Voltamos assim para Copacabana.

Depois do almoço acompanhamos minha mãe até a Siqueira Campos, onde tinha um encontro com uma amiga. Aproveitei para passar no Posto de Saúde e tomar a vacina da febre amarela que estava vencida. A espera foi curta, mas suficiente para Alice ficar entediada, não se impressionar com a espetada que levei e dizer que queria voltar para casa. No entanto, eu queria aproveitar todo o tempo que tínhamos à disposição. Resolvi, por isso, cumprir uma promessa antiga: uma visita ao cemitério São João Batista, que ela topou sem hesitar.

Eu já tinha perguntado à minha mãe qual das sepulturas da família seria a mais fácil de encontrar. Era a do meu avô: cerca de trinta passos além da entrada principal do cemitério, viramos à direita para encontrar o túmulo ao lado de uma escadinha de três degraus. Fazia um calor insuportável, mas Alice não parecia ligar. Conseguiu ler os dois primeiros nomes da assinatura de bronze que fica sobre a tampa do túmulo: Luiz Rodolpho, como eu. Mostrei que logo abaixo estava escrito engenheiro civil, também como eu. Em seguida, vinham as datas de nascimento (1877) e morte (1973, um ano antes de eu nascer). E Alice me fez um carinho quando expliquei que não tinha conhecido o meu avô.

Era então a vez dela querer mais. Passeou entre os túmulos, espiou mausoléus, perguntou sobre algumas estátuas, quis saber quem mais estava por lá – desta vez Alice se limitou à família e não perguntou do Michael Jackson. Àquela altura eu já não aguentava de tanto calor, sentia a pressão baixando, precisava sair dali. Antes, porém, ela me fez prometer que voltaria com a vovó para visitar a outra bisa. Só em seguida aceitou meu convite para terminarmos aquela aventura no supermercado em frente ao cemitério (para tomar um mate e tirar uma leve casquinha do ar condicionado).