segunda-feira, 25 de julho de 2011

Marca d’Água

As luzes do escritório foram se apagando aos poucos. Agora restava apenas a do corredor dos elevadores e a da sala onde ele ainda trabalhava. Eram 2 horas da madrugada. Do lado de fora, ouviam-se apenas os raros passos do segurança que cumpria a rotina de rondas a cada hora. Desde o fim do expediente ele teclava sem parar para atender à solicitação de antecipação do prazo contratual. Conforme combinado com seu chefe, o relatório deveria estar na caixa de entrada de e-mails do cliente antes das 8 da manhã. Após a entrega da pizza, encomendada por telefone, tinha desligado o celular. Com os pés encostados na parede, o corpo bem fundo na cadeira, os punhos doloridos apoiados na mesa, ele estava absolutamente focado nas letras que saltavam na tela e no sentido que tinha que dar ao texto.

Levantou-se então para buscar um copo d’água e aliviar a desagradável sensação de boca seca. Quando voltou ao seu posto, jogou o copo vazio no lixo e resolveu abrir um portal de notícias em busca dos resultados das partidas de futebol que tinha perdido naquela noite. Tentou assistir aos vídeos com os gols da rodada, mas o acesso estava bloqueado. Pela última vez, decidido a recomeçar o relatório, seus olhos acompanharam as outras notícias trazidas pelo movimento da barra de rolagem. Ao lado da foto da modelo eleita musa do campeonato, uma propaganda chamou sua atenção. Dizia: IMPRIMA AQUI A SUA MARCA. E, em letras menores: como deixar sua assinatura em apresentações e relatórios.

Deixou a curiosidade de lado, na janela minimizada no canto da tela, e voltou à tarefa que o absorvia. Àquela hora já não rendia como antes, as frases truncavam e os parágrafos eram reticentes. Faltava a conclusão, talvez o único capítulo que o cliente se daria ao trabalho de ler. Irritado, varreu a mesa de trabalho com o braço fazendo interromper o silêncio da madrugada com o tilintar das canetas e o baque do grampeador contra o chão. Em queda mais lenta, as páginas do relatório já impressas se misturavam em torno da cadeira, trazendo a mixórdia da tela para o escritório. Estava disposto a desistir quando se lembrou da promessa encontrada no site de notícias esportivas.

A primeira janela se abriu sobre a conclusão inacabada, escondendo-a. Ansioso, ele clicou na propaganda apostando suas fichas numa solução improvável. Outra janela se abriu: era um céu de estrelas. Com o mouse, ele procurou links na página em cada uma delas. Notou enfim que o movimento da seta sobre a imagem modificava a sua cor: o céu clareava, como se o sol estivesse nascendo por trás do monitor. Hipnotizado, percebeu que as ideias também se conformavam na sua mente e as conclusões combinavam com o óbvio. Com o arquivo de texto ainda atrás do céu avermelhado que preenchia a tela, voltou a teclar sem parar até o sol nascer de fato no horizonte e o sono derrotá-lo.

Seus olhos se abriram lentamente quando percebeu algum movimento. Era a faxineira que, muito nervosa, tentava colocar o mouse de volta no lugar e, ao mesmo tempo, tirava o telefone da base. Sobre a mesa, o teclado virado de cabeça para baixo o intrigava. A moça ainda tagarelava ao telefone, num idioma incompreensível, quando seus olhares se encontraram. Ela emudeceu, depois gritou e saiu correndo em direção à porta. Ele pode ver então o corpo inerte de um homem sem rosto sentado à sua frente. Antes de seus olhos se fecharem novamente, ele observou pela janela o céu carregado de nuvens escuras. Só teve tempo de piscar: era o seu chefe, com os olhos esbugalhados e a mão sobre o mouse. Do lado de fora começava a chover.

segunda-feira, 18 de julho de 2011

Amargos, Doces e Maduros

Cheguei às 18h30, ela ainda estava na aula de dança. Aguardei do lado de fora, com o ombro apoiado no muro, pensando em nada, apenas respirando o meu próprio cansaço. A recepção foi mal-humorada, de cara emburrada, com um você interrogativo e decepcionado. Ela esperava a avó, queria a mãe, queria pipoca. Dei um ombro para cada mochila: a dela pesava mais que minha. Pediu para esperar a amiga, que não vinha, demorava. O nervosismo passou dos olhos às mãos quando eu disse que tínhamos que ir e os dedinhos apertaram meu braço. A minha irritação superou o nervosismo dela, falei grosso e ela começou a chorar. Estava instaurada a crise, da forma mais desagradável – na rua, na frente da escola, ao lado do pipoqueiro. Não cedi, nem à pipoca, e os dedinhos se fecharam. Os socos encontraram os meus braços e as mochilas caídas. Contei até dez, tirei a televisão por duas noites e puxando-a pelo braço dei a ordem final. Ela resistiu, fincou os pés no chão. Eu parti sem olhar para trás, com um tchau seco. Ela chorou ainda mais alto e desistiu de ficar. Passou a me seguir, balbuciando papai cem vezes e deixando lágrimas pelo caminho. Encontrou a minha mão, que já esperava a dela. Não a deixei falar. Despejei minha insatisfação: eu não posso buscar você todos os dias; quando eu venho, eu fico muito feliz, porque vou encontrar minha filha, porque vou ganhar um beijo dela; e você me recebe assim, com raiva, fazendo escândalo, chorando.

Por que você faz isso? Não sei falar disso, pai. Percorremos o resto de caminho em silêncio.

Cheguei às 18h30, ela já tinha saído da aula de dança. Carregava a mochila pesada sorrindo. Largou-a no caminho para fazer um V com os dedos, na direção dos olhos dela e depois dos meus, sem deixar de mostrar os dentes que tem e os que não tem mais. Beijou-me com um abraço do tamanho do mundo e a mochila esquecida chegou pelas mãos de outra menina. Andamos de mãos dadas o tempo todo. Ela procurava desviar das tampas dos bueiros aos saltos e pedia que eu a imitasse. Foi cantando pelo caminho em inglês embromado até passarmos pela sorveteria, quando observou o quanto estava boazinha naquele dia. Completou a frase pedindo confirmação, com olhinhos pidões. Ela mereceu o sorvete e cantou o abecedário no resto de caminho. Abri a porta de casa para ela dizer o quanto amava a mãe e também a Rapunzel. Deitou de bruços no sofá, com o rosto virado para o lado da televisão. Ficou assim, quietinha, hipnotizada. Antes da hora, que ela já reconhece quando o ponteiro maior chega ao número 6 depois das oito da noite, ela admitiu a derrota para o cansaço. Aquela foi uma das raras vezes em que pediu para dormir.

Você está cansada, filha? Tô muito cansada, pai. É porque estou fazendo trabalhinhos muito difíceis na escola. Eu sei, são as letrinhas que começam a se juntar.

terça-feira, 12 de julho de 2011

Os Carros Eram Solteiros

Em priscas eras, os motores roncavam: qual é a boa de hoje?

O Escort vermelho tinha teto solar. Fazia o tipo romântico, gostava de um barzinho, um banquinho e um violão. Podia demorar até duas horas entre sair de casa e chegar ao destino escolhido. Sem limitações mecânicas ou defeitos de qualquer tipo, a demora era explicada pela distância percorrida: ele tinha o estranho hábito de esquentar os motores na Ponte Rio-Niterói. Às vezes, ficávamos todos por lá. Quase sempre acabávamos a noite num posto da Gávea para abastecer. Ele, vestido em três cores, cantando o hino do Fluminense.

A tenda árabe era o segredo do sucesso do velho Santana: o forro rasgado do teto tornava seu charme irresistível. As opções de música ambiente eram infinitas: as fitas cassete se escondiam por baixo dos bancos e até no porta-malas, junto com livros do curso de Direito, uma bola de futebol murcha para a pelada de sábado em Ilha de Guaratiba e outras desarrumações. Era o líder, nosso rei, o mais animado da turma. Dava festas memoráveis no seu cafofo de nome francês. E ele não precisava tomar chope para duvidarem de seu senso de direção.

Velho mesmo era o Belina. Vinho tinto e cabeludo, usava aneis nas quatro rodas e curtia um rock pesado. Muito educado, sempre pedia licença para colocar Pantera nos alto-falantes. Trafegava sempre na mais perfeita paz, dizem, a não mais que 30 km/h. Preferia os porões, as vagas menos óbvias perto das boates fora de moda; mas não trocava nada por um sossegado bate-papo. Hoje, seus pneus estão carecas.

Eu era um Gol azul metálico da primeira geração. O meu som era aquele que tocava no rádio: pura preguiça de gravar uma fita. Minha prioridade era o roteiro diário que unia Copacabana ao Fundão. Às vezes, revezava com um Fusca mostarda, que partia das Laranjeiras e era companhia frequente nos estacionamentos da faculdade e dos cinemas. Ele fazia tanto sucesso na ilha que virou time de futebol.

Em tempos modernos, eu seria ainda mais requisitado no turno da noite – a boa seria terminá-la sóbrio, sem risco de ser apreendido na blitz da lei seca. E nosso roteiro daria inveja ao Relâmpago McQueen.

terça-feira, 5 de julho de 2011

Desapego e Cura

Dia de limpeza. Às vésperas do aniversário de 6 anos de Alice, chega o momento de praticar o desapego e reinventar espaços no quarto entulhado para as novidades que virão em breve. Deixamos as escolhas nas mãos dela, embora seja inevitável interferir às vezes – nós queremos nos livrar das tralhas e eu tenho alguma dificuldade de me separar de objetos que contam alguma história. A maior parte dos brinquedos e livros será doada, mas algumas coisas permanecerão guardadas no armário da despensa para os primos que ainda não vieram.

Para não me separar das histórias, decido registrá-las.

Dessa vez, partem Beto e Sandra. Boneco de pernas cumpridas, ele foi o primeiro brinquedo tricolor a que Alice deu atenção e vida. Herdou o nome da namorada de cabelos azuis, chamada Beta (homenagem a melhor amiga adulta que a menina tem), e que agora fica sozinha. Não sabemos de onde veio a inspiração para o nome, mas Sandra fazia parte desse trio, até hoje, inseparável. Ficavam juntos no canto da cama enquanto Alice estava na creche; saíam da cama para dormir no sofá da sala, onde eram cuidadosamente perfilados de bruços. Nos últimos meses, já um tanto esquecidos, eles habitavam a estante.

Quando entro no quarto e faço beiço, ela não hesita: papai está triste. E conclui: é o Beto.

Com eles, parte também a porca rosa que carrega os filhos ainda pernetas na barriga fechada com zíper. Presente da avó, será oferecida à própria antes de ganhar outro rumo. Alice vibra com a ideia.

Nane conta a história da cegonha que veio da Alsácia como presente de sorte, por causa de um beijo que Alice deu na barriga da madrinha. Também para sensibilizá-la, explica que, nas histórias que as pessoas contam, a ave leva os bebês para as suas mamães. Com todo esse apelo, ela é escolhida para ficar, claro. Também fica o macaco – meu primeiro presente, comprado no dia em que soubemos que teríamos uma menina. Quando anuncia a decisão, Alice levanta as sobrancelhas antes de sorrir para mim.

Falta ainda a caixa que guarda cadernos, livros de colorir, canetas e lápis. Faltam ainda os livros, que podem carregar histórias dentro de histórias, além de pontos de vista diversos para um mesmo conto.

Encontrei a cura. Vou sempre aguardar as escolhas para contar o que eu não quiser esquecer e, assim, fazer de recordações uma carta de despedida.