terça-feira, 24 de julho de 2012

Entrevista com Mami

A lucidez sai do nevoeiro à medida que o dia avança. Há dias melhores que outros. Aquele era um bom dia. Tão bom que valia a tentativa, ou a petulância. Fiz a entrevista com a câmera do celular à mesa do almoço.

Comecei pela pergunta óbvia: qual o seu nome? A audição já não funciona como antes, tive que repetir: qual o seu nome? É Mamiiiiii. Foi assim, com a vogal mais prolongada que o normal. E quantos anos você tem? A primeira resposta foi uma gargalhada, entre sarcástica e incrédula. Depois, veio a sentença: Que desaforo! Ele quer saber a minha idade, disse ainda inconformada. Mami continuou rindo até que eu perguntei do namorado. Ela fechou a cara: eu não tenho namorado.

Mudei o foco das perguntas: Qual o nome da sua bisneta? Ah! Deve ser a meninota. Qual o nome dela? Mimi. Ela chamava a minha irmã de Mimi. Eu corrigi: é Alice. E ela repetiu, separando as sílabas: A-li-ce.

Meu pai insistiu com assuntos aleatórios, gracejos que fazemos na intimidade da família. Mais uma vez, ela reagiu: Que horror! Você está me confundindo. Naquele momento, a sobremesa chegou à mesa e meu pai deixou as bobagens de lado. Entre os doces de coco e de manga, ela preferiu o segundo.

A entrevista já durava mais de três minutos, parecia suficientemente extensa para a lucidez dela e para a memória do meu celular. Por isso, resolvi voltar ao desafio e às perguntas relevantes: O que estamos comemorando hoje? A resposta foi imediata e parecia óbvia: o aniversário de seu pai. E o que mais? E da França também. Vencido o 14 de julho, mais um, interrompi a gravação.

domingo, 15 de julho de 2012

Bigode e Barriga

11 de dezembro de 1983

Mais de quarenta minutos do segundo tempo de um jogo sem gols. Estávamos sentados nas cadeiras azuis, atrás da baliza que fica à direita das cabines de rádio. Era dali que assistíamos à maioria das partidas. Eu tinha nove anos, as aulas do terceiro ano primário já haviam terminado, e futebol era uma brincadeira quase solitária, de pai e filho – meus amigos não eram tricolores. Restava pouco tempo para que o placar se alterasse. Por isso, eu tinha certeza de que era hora de ir embora. Era sempre assim: em jogos de duas torcidas, clássicos cariocas, saíamos antes do fim porque meu pai temia cruzar com os adversários em torno do estádio. Mas naquele dia, foi diferente quando trocamos os olhares e perguntei: Vamos? Não sei se era a companhia do amigo rubro-negro, não sei se era a esperança ignorando o medo... Ele decidiu ficar.

Dali, daquelas cadeiras azuis que o Maracanã não tem mais, era impossível distinguir as linhas divisórias do campo. Dali, não tínhamos qualquer noção de profundidade. Vimos, entretanto, aos quarenta e tantos minutos, o mulato de uniforme branco correr em nossa direção. A bola subiu e desceu para encontrar seus pés. Não percebemos quando ele chutou porque o goleiro encobria nossa visão. Vimos apenas a rede estufar de leve. Não guardo outras imagens que as da televisão: um Assis incrédulo, com o bigode sorrindo, tão feliz quanto qualquer um de nós.

25 de junho de 1995

Estávamos de novo sentados nas cadeiras azuis, mais próximos à bandeirinha de escanteio; como sempre, à direita das cabines. O futebol não era mais uma brincadeira restrita ao pai e ao filho. No estádio, minha irmã e meu irmão nos faziam companhia. Na faculdade, o Fla x Flu dos churrascos era um grande barato. Mas o tempo cruel tinha deixado os tricolores quase dez anos sem título. E, naquele ano, o adversário comemorava o centenário, tinha técnico e elenco, mas não tinha ainda nos vencido. Abrimos dois gols de vantagem no primeiro tempo, eles empataram no segundo. Logo depois do segundo gol, uma expulsão me fez reviver a hora de partir. Daquela vez, eram três filhos para cuidar, não havia amigo rubro-negro ao lado, não havia esperança que ignorasse o medo. Ele concordou quando perguntei: Vamos? Saímos.

Andamos lentamente em direção ao carro, que estava estacionado a algumas quadras do Maracanã. Assim que atravessamos a rua Conde de Bonfim, ouvimos o burburinho de comemoração que vinha do estádio. Trocamos olhares até encontrar a certeza: um tricolor, com radinho de pilha na mão, pulava sozinho no meio da rua deserta. Sofremos os minutos finais tentando escutar outros radinhos pelo caminho, nas portarias e nos bares. Quando chegamos ao carro, o jogo tinha acabado. Meu irmão chorava. Colocamos as bandeiras nas janelas e ouvimos uma dezena de vezes o gol de barriga que não vimos. E a festa continuou assim, repetitiva, nas Laranjeiras.

14 de julho de 2012

Recordar é viver. Saudações tricolores e um feliz aniversário, pai.

domingo, 8 de julho de 2012

Champignons Não Falam Inglês

Em meio à peregrinação pelos maravilhosos castelos do Vale do Loire, arrumamos tempo para um passeio gastronômico bem diferente. Eram quase quatro horas da tarde quando chegamos a Bourré. Vínhamos de um encontro com Tintim e Milou em Moulinsart, ou melhor, no Castelo de Chéverny. Embora estivesse nos planos, a visita àquelas cavernas geladas, onde ainda se cultiva cogumelos manualmente, dependia muito dos tempos gastos nos castelos e nos deslocamentos.

Os casais de ingleses chegaram depois, em quatro bicicletas, e estacionaram na sombra, entre as árvores e o carro que alugamos para toda a viagem. Sentaram-se nas cadeiras de plástico do restaurante que funcionava apenas para o almoço e, como nós, ficaram esperando pela guia. Quando ela apareceu, eles perguntaram em inglês onde ficava a bilheteria. Nane rompeu o silêncio para responder e mostrar onde havíamos comprado os ingressos. Eles agradeceram, pagaram pelos seus e logo retornaram para acompanhar a pequena expedição.

Quando tiveram certeza de que a guia só falava francês, os ingleses ficaram bastante decepcionados. Acabamos nos oferecendo para tentar ajudar, o que não foi tarefa das mais fáceis. A cada espécie de cogumelo, a guia discursava sem interrupção, trazendo informações que não conseguíamos absorver integralmente: sobre o sabor do Shii Také e a textura do Pleurote, sobre a mistura orgânica compactada em troncos que era utilizada para o cultivo do Champignon de Paris, e também sobre a principal atração daquela Cave Champignonnière – o Pied Bleu, espécie pela qual são responsáveis por 45% da produção mundial. Enquanto eu me preocupava em registrar o que era possível, Nane já se adiantava e matava saudades de falar inglês.

Mas a primeira parte da visita não se limitava aos cogumelos. As rochas utilizadas na construção dos castelos da região, inclusive Chambord, tinham sido retiradas das frias cavernas que visitávamos. Havia ali uma pequena exposição de instrumentos e explicações sobre métodos medievais para a extração do tuffeau, além de outras relacionadas às condições de trabalho na época. Seguimos tentando explicar o que era possível aos nossos amigos. Nane chegou a dizer para eles não acreditarem em tudo que dizíamos. Eles acharam graça, e acabamos dando muitas risadas juntos até o fim do passeio.

As informações sobre aquelas rochas calcáreas serviram de introdução à segunda parte do passeio – a cidadela subterrânea. É obra de um artista plástico, que levou quase três anos para ser concluída e pretende preservar as condições originais das construções da região do Vale do Loire. Rica em detalhes, as esculturas incluem, por exemplo, um gato pulando janela e mãos abrindo portas.

Terminada a visita, enfrentamos o risco de um choque térmico na saída das cavernas. Trocamos a temperatura de 13ºC pelos quase 30ºC de uma primavera francesa com jeito de verão. Compramos um vidro de mousseline de Pied Bleu na loja e nos despedimos da agradável companhia dos amigos ingleses, os únicos que fizemos em toda a viagem. De lá fomos para a deliciosa cidade de Amboise em busca de alternativas para o lanche da noite que faríamos no quarto do hotel.

domingo, 1 de julho de 2012

Retirantes

As crianças fazem fila. Carregam trouxinhas sobre o ombro direito e usam lenços vermelhos presos com caixas de fósforo em torno do pescoço. Os meninos vêm com chapéus de cangaceiros, camisas brancas e jeans remendados. As meninas, por sua vez, têm enfeites no cabelo, usam saias multicoloridas e repetem a simplicidade do branco em suas blusas. 

As crianças caminham pelo pátio para formar um círculo antes de se sentarem. Ainda em silêncio, uma a uma, deixam as trouxas no centro da roda fazendo um amontoado delas. E, quando a música começa, elas soltam a voz. Fazem dos lenços uma fogueira igual à de São João, cantam o sofrimento da seca e o adeus à Rosinha. Desenham corações com os dedos, que batem em seguida as asas brancas do sertão.

É a penúltima apresentação daquela turma em uma festa junina da creche Palmo e Meio.

Não tiramos os olhos de Alice, que já nos dizia durante a semana que aquele seria o dia mais feliz da vida dela. Quando falava da festa, reclamava dos cansativos ensaios e caprichava nos olhares de sabichona para falar de Luiz Gonzaga, agora amigo íntimo das cantorias no banheiro. Bastante irrequieta, não escondia a ansiedade.

Não tiramos os olhos de Alice porque ela não se limita agora a cantar. A interpretação da música está em gestos, caras e bocas. A judiação em seus braços é tão sofrida quanto a seca. Seus olhos tristes morrem de sede junto com o alazão. Sua mão bate forte no peito a promessa de voltar para o sertão. E nós não escondemos as lágrimas.

Na apresentação derradeira as crianças dançam forró. De cabo a rabo, com muita animação. Vixe, como eu estou feliz! São três vezes, porque na primeira os pais dançam também. E nós dançamos sem jeito e, claro, sem tirar os olhos de Alice.

Ao seu modo, aquelas crianças são retirantes também. Aos poucos, dão adeus a Rosário. No fim deste ano, quando estiverem prontas, vão bater suas asinhas brancas e partir. Enquanto isso, elas escrevem cartinhas para o correio do amor, leem frases no microfone, correm de um lado a outro, pedem água, tiram os sapatos, jogam a bola na boca do palhaço, trazem um brinde, correm um pouco mais.

Faltam ainda alguns meses de muito aprendizado, mas as crianças já batem no peito e prometem voltar.

E nós fazemos coro, agradecendo com os dedos adultos que também aprenderam a desenhar corações.