sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Circular

Senhores passageiros, desculpem-me por interromper a sua viagem. Pausa. O camelô traz hoje na promoção três barrinhas de cereal por um real. Nova pausa. Tem de coco, de castanha e de banana. Mais uma. E o prazo de validade... Paro de ouvir. A mesma ladainha se repete há tempos. Não sei dizer há quantas horas porque não tenho relógio. E meu celular não funciona. Meço o tempo pela frequencia com que eles entram no ônibus, que, aliás, parece comum, apesar dos vidros escuros. Os passageiros também, apesar das olheiras e da falta dos fones de ouvido. O camelô da vez é enorme! Um ogro. A camisa é vermelha, meio alaranjada, quase amarela nas mangas. Parece um ogro pegando fogo. Mas os passageiros não ligam pra ele, que parece falar pra si mesmo. Não há venda. Não houve venda das outras vezes. Resolvo então experimentar. Procuro a carteira nos bolsos e nada; reviro a pasta e, enfim, encontro algum trocado. O ogro olha nos meus olhos, agradece com os próprios olhos e sai. A camisa vermelha carrega um número nas costas. É do time dos infernos, penso.

A parada seguinte dura o tempo de mastigação das três barrinhas. Mais uma vez, ninguém sai. Entra um fauno. Ele tem as unhas pintadas, vende canetas. Senhores passageiros, desculpem-me perturbar a sua paz. Pausa. O moço tem caneta de ponta fina a um real. Segunda pausa. Se comprar duas canetas, paga dois reais e recebe de brinde uma caneta com calendário. Ainda tenho trocados. Acho que só eu presto atenção. Ele continua, olhando nos meus olhos. Trago também uma caneta iluminosa a um real e cinquenta. Pausa. Para marcar textos. Faço sinal com os olhos. O fauno se aproxima com as canetas na mão, inclusive a de brinde. O dinheiro é suficiente. Como ainda não sei o que faço aqui, compro todas para perturbar o tédio, já que os outros passageiros não o fazem. O fauno me cumprimenta com os olhos e sai. Ele tem cascos no lugar dos pés.

Na falta do que fazer, eu picho. Escrevo meu nome umas tantas vezes. Marco o tempo como um presidiário que conta os dias, até que o ônibus para mais uma vez. Entra um senhor de barba preta, que parece um rabino, veste-se como um padre. Ele começa a falar. É um sermão que não entendo, parece árabe. Ele fala como um pastor, mas ninguém se incomoda, ou se levanta, ergue os braços e começa a cantar. Ninguém reza, ninguém parece ouvir. Só eu. Ele também olha fundo nos meus olhos. Espero que não veja mais que minhas pupilas. Tenho medo, quase. Quando se aproxima, oferece um santinho. Não temerás o terror da noite, nem a flecha que voa de dia (Salmos 90, 5). Eu aceito, marco de azul com a caneta iluminosa as duas primeiras palavras. Ele oferece a mão direita e diz: Eles te levarão em suas mãos, para que seus pés não tropecem numa pedra. Versículo 12. Lembro-me das aulas de religião na escola. Saímos de mãos dadas no ponto.

Estamos num túnel mal iluminado e mal vemos o ônibus partir. Ele diz que vai aguardar o próximo e mostra-me uma escadaria onde há apenas uma placa: Nível 1. Subo devagar. Chego ao Nível 2: também um túnel mal iluminado, com um ponto de ônibus ou um banco de plástico que deduzo ser o ponto. O Nível 2 tem música ambiente. Ignoro. It´s the end of the world as we know it, canto. O ônibus chega: Circular, diz o letreiro. Sem opção melhor, entro assim que a porta abre.

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Um Dia Esqueci a Lapiseira

Ela sentava na minha frente e tinha um estojo preto cheio de canetas e duas lapiseiras. Eu toquei com os dedos o ombro dela. Você pode... Não acabei de perguntar. Sem se virar, ela tirou a lapiseira rosa do estojo e me deu. Quando a aula terminou, agradeci. Saímos juntos da escola pela primeira vez. Ela, abraçada com os livros, não parou de falar até nos separarmos. No dia seguinte, esqueci a lapiseira de novo. Pedi a roxa. Ela disse que não e me passou a rosa, de novo, sem se virar. Saímos juntos da escola pela segunda vez. Um mês depois, já era hábito sairmos juntos. Eu não precisava mais esquecer a lapiseira e ela parava de falar quando eu olhava nos olhos dela. Eu falava então. Abobrinhas. Começamos a estudar juntos. Eram duas vezes por semana – um dia na casa dela, o outro na minha. No meu quarto tinha um quadro de cortiça. Depois de estudarmos, brincávamos de corte e colagem. Pegávamos fotos antigas em revistas, recortávamos palavras nas manchetes do jornal, às vezes de um livro da escola, ou da agenda dela, tudo para enfeitar o quadro até o próximo encontro. Na casa dela, escrevíamos histórias num caderno. Ela escolhia o título, eu escrevia o primeiro parágrafo e ela continuava. Voltei a esquecer a lapiseira. Pedia sempre a roxa. Ela ria, esticava a rosa e eu pegava a lapiseira junto com a mão dela. Um dia ela perdeu o estojo. Emprestei a minha até o dia seguinte, quando ela levou um novo estojo preto quase vazio: uma lapiseira dourada e uma caneta. Quando voltei do banheiro, coloquei uma lapiseira rosa no estojo dela. Ela riu quando eu disse que era a minha, para o caso de eu voltar a esquecer.

Continuávamos estudando juntos em casa, sempre de portas abertas. Às vezes eu tinha vontade de fechar, mas sempre havia alguém por lá, vigiando. Na escola, também havia curiosos. As insinuações eram freqüentes. Negávamos. Éramos amigos, apenas isso. Mas eu continuava querendo fechar a porta. Acho que queria privacidade. Não falava isso nem para ela. Quando as provas finais se aproximaram, esquecemos o quadro de cortiça e o caderno de histórias. Passamos em todas, comemoramos com um abraço. Foi o primeiro abraço e o último, porque as férias tinham chegado. Viajei para a casa dos meus avós para passar as festas de fim de ano. Lá, senti falta da lapiseira rosa. Comprei uma e meu primo achou esquisito. Lá senti falta do caderno e comecei a escrever sozinho na agenda que ganhei de presente. No dia em que voltei, deixei a mala na sala e fui logo para a casa dela. Acho que queria dizer alguma coisa. Ela me abraçou quando me viu. Foi o segundo abraço e o primeiro, pensei, porque as férias ainda estavam começando. Daquele jeito, abraçados, ela disse que estava feliz. Ela iria para Disney com a tia naquele mesmo dia. Tinha que terminar de arrumar as malas, etc. Eu emudeci. Voltei para casa cabisbaixo, não mexi na mala que continuava na sala e, sob protestos, deitei na minha cama de olhos fechados. Adormeci.

Quando abri os olhos, notei algo diferente, que não tinha reparado antes. O quadro de cortiça não estava vazio. Tinha uma foto minha recortada no canto. Reconheci quando me aproximei: era da festa de aniversário dela, quando disse que eu estava bonito e quem estava por perto não escondeu o sorriso. Do lado da minha, tinha uma foto dela, também recortada, sorrindo com um gorro de Papai Noel. De um jornal, ela tinha retirado a palavra Natal. De uma revista, Feliz. Na minha escrivaninha, tinha um livro embrulhado e, do lado dele, a lapiseira rosa. Agora eu tenho duas. Olhei o relógio e saí correndo de casa, de novo, sob protestos. Estavam com saudades... Quando cheguei, era tarde. Ela tinha acabado de sair para o aeroporto. Perguntei se podia entrar e a mãe dela disse que sim. Procurei o nosso caderno por todo o quarto. Encontrei debaixo do travesseiro. Eu tinha esquecido que não havia uma folha sequer em branco, só restava uma linha na última página. Escrevi: Boas Férias. Escrevi de novo: Atrás do espelho. Foi lá, na parede branca mesmo que escrevi com uma lapiseira rosa, claro, que um dia esqueci a lapiseira.

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Memórias de Pai e Filha

Uma vez por semana, após certa embromação para escolher o maiô e os chinelos, saíamos de mãos dadas, a minha cobrindo a sua. Duas mochilas nas costas, eu dava a direção; fazíamos o caminho da mamãe: Real Grandeza abaixo, Caravelas à direita. E logo atravessávamos para o outro lado, onde a passagem era obrigatória entre o muro e a árvore de raízes robustas que levantavam a calçada. Travessia a que dávamos o nome de aventura. Pouco papo, alguma cantoria, prosseguíamos. Algumas casas adiante, o amigo nos aguardava sem latido ou festa. Apenas se aproximava da grade e observava. Nós também. À esquerda, o Conde nos acompanhava até a piscina, na rua do Pinheiro, onde os golfinhos nadavam.

Sentados em cadeiras de plástico, assistíamos a tudo – eu, as babás e, ao menos, uma mãe de fato. Você sempre sorria dentro d’água. Eram trinta minutos; ou menos, já que a embromação e a aventura eram feitas para durar. O atraso, portanto, quase inevitável. A aula, por sua vez, era apenas um exercício saudável, porém efêmero e repetitivo: dedão na borda para mergulhar, música da baleia para cantar, até que a peixinha saísse para eu secar. A roupa da capoeira substituía a de banho e o cabelo, de embaraçar... Tarefas difíceis, com alguma pirraça.

Dali para a escola. Antes, na mercearia, você matava a fome com uma barrinha de cereal. O passo era da eternidade. A casa do papai do céu era chance para um descanso, o prédio da melhor amiga era motivo de conversa. As perninhas cansadas pediam colinho e eu resistia. Então corria, dizendo: minha princesinha; você respondia rindo: meu princesão. O teatro passava e, mais uma vez, o Conde nos deixava. Ali, logo em frente, recordações da minha infância se revelavam. Eu me distraía, lembrava-me de uma festa, de outra, de gel no cabelo, de Legião. A poucos metros do seu destino, de novo, você pedia. Eu cedia. No colo, você se distraía. Eu ganhava um beijo. Você, tantos quantos eu conseguisse dar. O muro rosa nos separava.

O tempo, por fim, acelerava.