domingo, 28 de outubro de 2012

Oficinas e Confissões

Desde o início de agosto estou frequentando uma oficina de romance. Para quem acompanha meu blog, pode parecer estranho: minhas publicações costumam ser concisas, crônicas em sua maior parte. Porém, tenho um rascunho de um livro que poucos leram. O texto é autobiográfico, foi construído durante outra oficina que fiz no ano passado. Quero agora descobrir se o que então escrevi é só um exercício de autoficção, uma experiência de autoconhecimento. Pode ser, ou não. A oficina de romance me ajudou a pensar no projeto. Até então eu tinha deixado a coisa fluir e, de fato, não tenho muito problema com a escrita criativa. As ideias vêm e colam no papel. O blog me ajuda muito com isso. O blog é o meu laboratório; por isso, não penso em publicar o que está lá. Depois do fim da oficina de autoficção, revisei o meu rascunho umas três vezes, investindo mais na coerência da história e no cuidado com a linguagem. Agora tento dar corpo à história, trabalhar os personagens, falar mais deles ou fazê-los falar. O caminho é muito longo porque o tempo é curto. E não bastam as brechas que tenho durante o dia. Essas só servem para o blog, para os devaneios diminutos. O que eu guardo comigo é algo maior, que exige algum sacrifício, compreensão de quem está ao meu lado. Faço contas também (os números não me largam): talvez seja um romance do tamanho de um conto, uma novela, algo indefinido. Mas isso é o que menos importa. O que vale é tentar, ainda que o tempo seja limitado pela própria oficina, que propõe a leitura de clássicos. Li a metade do primeiro livro de Dom Quixote em agosto e me diverti muito; mergulhei no crime de Raskolnikov no mês seguinte e não consegui largar; e agora sigo os passos de Josef K. em seu processo. Logo no início do curso eu me dei conta que li poucos romances e muitos contos dos autores clássicos, inclusive Kafka. Durante o segundo mês, tive certeza de que Dostoievski é essencial, obrigatório. E acabei demorando dois meses para recomeçar a escrever. Assim, tudo o que a professora Carola Saavedra leu até agora foi o que Ana Letícia Leal tinha lido um ano atrás, com algumas revisões, mas um esboço ainda. E não é só o tempo que limita meus passos. Há outra grande questão envolvendo o meu livro – gosto de tratá-lo assim, embora não saiba ainda onde pode chegar: é mais fácil, em um primeiro momento, escrever sobre personagens conhecidos, usando seus nomes verdadeiros e boa parte de suas características, de seus trejeitos. Entretanto, depois vem a dúvida, a culpa. Embora poucos tenham lido até agora, eu já escolhi expor a minha família. Por isso, pode ser, ou não, que seja apenas um exercício. De tolerância, com certeza: é uma oportunidade de me colocar no lugar de cada uma das pessoas que me importam tanto. Decidi que por enquanto vou em frente, vou enfrentar meus próprios pudores antes de recorrer à ficção, antes de trocar os nomes e revisar motivos se me parecer necessário. Daqui a alguns anos, quando você comprar o meu livro, é possível que leia uma história bem diferente da que tenho hoje, e que seja resultado de outra experiência, de ideias adormecidas. Porque eu quero que você leia um livro meu, voltei a investir no meu rascunho nos dois últimos fins de semana, trabalhei muito os capítulos iniciais. Mesmo que os detetives selvagens de Roberto Bolaño me absorvam no último mês, não vou deixar a oportunidade passar. Tenho que aproveitar o final do curso. É um compromisso. E agora você pode ser meu cúmplice ou fiscal, como preferir.

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

A Escolha da Vez

Nós nos sentamos na segunda fileira do auditório lotado. Como a maioria, éramos três: pais e filha. E tudo era novidade: aquele espaço enorme, aquela gente, o protocolo. Ali ouvimos o improviso da coordenadora, as perguntas dos outros pais e as respostas dadas em nome da escola. Nada muito diferente do primeiro encontro, semanas antes, sem as crianças. Por isso, até começarem a chamá-las, por nome e sobrenome, deixamo-nos levar pelo tempo com certa parcimônia.

Na vez dela, sentimos um aperto no coração, e os meus olhos chegaram a marejar. Ela estava nervosa, claro; apertava o estojo com a mão, mantinha o seu olhar conectado ao nosso. Premiada pela ordem alfabética, foi a primeira de seu grupo, um dos três que formavam a turma de candidatos ao segundo ano do ensino fundamental. Por isso, ganhou a companhia da professora que puxava a fila e lhe ofereceu a mão. E, parecendo mais calma, partiu sozinha, carregando nome, sobrenome e algo mais.

Embora a nossa decisão já estivesse tomada e não fosse ela por aquela escola, investimos na experiência: as provas duraram a manhã inteira. Um pequeno vestibular: antes do lanche, português; depois, matemática. Enquanto ela se virava com as questões postas no papel, nós esperávamos ansiosos no pátio, lembrando as primeiras conquistas, fazendo conjecturas sobre o futuro, querendo muito acertar de novo. Como daquela vez, seis anos atrás, quando escolhemos a Creche Palmo e Meio; como há um ano, quando insistimos que lá mesmo ela fosse alfabetizada.

Passados dez dias daquela aventura por um mundo muito maior do que aquele que ela conhece, estamos suficientemente seguros. Depois de descartar alternativas, levar duas quase até o fim, vimos a nossa pequena menina tirar de letra as avaliações, enfrentar a sua primeira relação candidato-vaga e, quanto orgulho, conquistar sua maior vitória: o direito de escolher. Entre uma escola e outra, ela nos confirmou que a vontade dela é também a nossa. Agora, resta comemorar com ela o fim de uma etapa, agradecer a todos que nos ajudaram, e aguardar o que vem por aí no ritmo que tem que ser: um degrau de cada vez, um palmo atrás do outro. 

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

O Mistério de Cosme e Damião

Estávamos apenas os dois em casa no domingo. Mamãe viajava. Pegamos o ônibus de manhã para irmos à Primavera dos Livros. E ela reconheceu o caminho que fizemos de outra vez, para o meu trabalho, nas férias de julho. Assim que chegamos, perguntou qual era o nome daquele lugar, o Museu da República. Durante todo o dia, repetimos algumas vezes a palavra república para que ela não caísse no esquecimento. Ali, no Museu da República, Alice se divertiu atravessando as pequenas pontes sobre o lago, indo até as pedras, para ver a tartaruga mais de perto. Brincou também no parquinho e andou pelos estandes procurando por amigos. Encontramos Marcelo autografando seu Palladinum; e eu encontrei os livros que queria.

Voltamos de metrô e almoçamos no shopping das escadas rolantes. A comida portuguesa me fez acreditar que ela fosse escolher bacalhau, mas Alice preferiu frango. Recusou os doces, e eu fiquei babando. Pediu sorvete de sobremesa, de iogurte rosa e branco, com granulados coloridos e marshmallows. Ela me ofereceu diversas colheradas quando sentamos em um banco nos corredores do primeiro piso: É, pai, esquecemos de pegar outra colher. Partimos antes de terminarmos o pote; desta vez, caminhando.

Resolvemos entrar na Casa de Rui Barbosa. E ela fez algumas perguntas enquanto passeávamos pelo jardim. Quem era? Eu mostrei o busto logo na entrada. Mas o que ele fazia? Tentei não explicar muito: era uma pessoa importante, que seu bisavô conhecia, o bisavô que tinha o nome igual ao meu. E ele nasceu muito antes de você? E do vovô? Continuou, e depois ela quis entrar na casa, para ver o banheiro e os sofás que havia na sala. Eu disse que achava melhor deixar para depois, quando aprendesse sobre ele na escola, nas aulas de história. Ela entendeu e, ainda no jardim, trouxe o assunto dos irmãos. Aqueles que morreram. Um deles se chamava... o nome dele se parecia com Daniel. Eram gêmeos. Era o Damião.

Depois de deixar a casa, passamos pela Igreja de Santo Inácio e pela vila onde mamãe tinha morado quando criança, antes de chegar ao Museu do Índio. Até lá, rendeu muito a história de Cosme e seu irmão. A professora não tinha dito como eles tinham morrido, e Alice estava curiosa. Eu respondi somente que eles tinham sido mortos por homens muito maus. Não bastou: disse que podíamos perguntar para a vovó, ou procurar na Internet. Só esqueceu o assunto quando avistou os painéis pendurados na grade do museu.

Sobre os índios, mais perguntas, todas orientadas pelas fotografias que contornavam a casa. Como eles tomam banho? No rio. Eles não usam xampu? Não. O que comem? Peixe, que pescam no rio. E de sobremesa? Ela mesma respondeu: Fruta, né, pai? Não terminou aí. Ficou muito intrigada com o nome da exposição: Presença Invisível. Por que invisível, se eu estou vendo? O que é invisível aqui? O ambiente escuro das salas e o segurança, que caminhava de um lado para outro, aparecia e desaparecia, só vieram a aumentar o mistério. Ele é da polícia, não vai deixar eu mexer nos carimbos, né? Foi difícil convencer, mas ela saiu com os braços tatuados com as pinturas indígenas. Chegou assim na loja, para conhecer um índio de verdade. Ele perguntou do que ela mais tinha gostado no museu, depois mostrou os anéis e os colares de açaí.

Saímos de lá um pouco antes das quatro da tarde, ela com um anel no dedo. Em casa, voltou a perguntar sobre a morte de Cosme e Damião. Procurei na Internet, li que existem algumas versões, talvez tenham sido afogados, queimados, não se sabe. Ela não se satisfez: Depois pergunta pra vovó, tá? Mais uma vez, insistiu: Estou muito curiosa, pai.