quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Em Queda Livre

Como ainda não me acostumei às asas, pouso sobre uma lápide para ajeitá-las.

Não guardo muitas lembranças, mesmo as mais recentes, mas acho que nasci em queda livre.

Olho para minha sombra para confirmar a hora: não é meio-dia, mas o calor já é insuportável. Ao fundo vem um cortejo: umas vinte pessoas e o defunto.

Noto que um louva-a-deus me espreita.

Saio dali para me proteger e sigo em direção àquela gente em fila, de cabeça baixa, braços cruzados, as mãos guardadas. Aproximo-me para distinguir os rostos, mas descubro que é impossível. Paro então, sem ser ameaçado, sobre a fita vermelha que prende a maior cabeleira do grupo.

Deixo a carona para retornar à mesma lápide, onde fico para assistir à despedida. Faço voos curtos para escutar o que dizem, mas os lábios se mexem quase em silêncio. E não parece o caso de cantar a música preferida daquele que parte.

O louva-a-deus esfrega as patas enquanto reza.

Ignoro o predador para matar um desejo: eu sempre quis ser uma mosca para saber o que os outros diziam na minha ausência, o que tramavam. Para meu azar, aqui todos se calam.

As pétalas de rosa acompanham a descida do caixão. O vento as faz perderem o rumo e uma delas quase me atinge. Mas eu insisto: circulo por narizes e sobrancelhas. Ouço de perto os soluços que se repetem sob os óculos escuros que se debruçam sobre o túmulo. Chego tão perto que vejo alguma ameaça nas lágrimas que brotam da armação. Para fugir de um banho, eu me afasto e atravesso o estreito espaço de indiscrição entre um bigode e uma orelha:

– Suicidou-se. Jogou-se do décimo andar.

Quando volto, sobre o caixão, entrego-me ao louva-a-deus.

Nenhum comentário:

Postar um comentário