Como ainda não me acostumei às asas, pouso sobre uma lápide para ajeitá-las.
Não guardo muitas lembranças, mesmo as mais recentes, mas acho que nasci em queda livre.
Olho para minha sombra para confirmar a hora: não é meio-dia, mas o calor já
é insuportável. Ao fundo vem um cortejo: umas vinte pessoas e o defunto.
Noto que um louva-a-deus me espreita.
Saio dali para me proteger e sigo em direção àquela gente em fila, de cabeça
baixa, braços cruzados, as mãos guardadas. Aproximo-me para distinguir os
rostos, mas descubro que é impossível. Paro então, sem ser ameaçado, sobre a fita
vermelha que prende a maior cabeleira do grupo.
Deixo a carona para retornar à mesma lápide, onde fico para assistir à
despedida. Faço voos curtos para escutar o que dizem, mas os lábios se mexem
quase em silêncio. E não parece o caso de cantar a música preferida daquele que
parte.
O louva-a-deus esfrega as patas enquanto reza.
Ignoro o predador para matar um desejo: eu sempre quis ser uma mosca para saber
o que os outros diziam na minha ausência, o que tramavam. Para meu azar, aqui
todos se calam.
As pétalas de rosa acompanham a descida do caixão. O vento as faz perderem o
rumo e uma delas quase me atinge. Mas eu insisto: circulo por narizes e
sobrancelhas. Ouço de perto os soluços que se repetem sob os óculos escuros que
se debruçam sobre o túmulo. Chego tão perto que vejo alguma ameaça nas lágrimas
que brotam da armação. Para fugir de um banho, eu me afasto e atravesso o
estreito espaço de indiscrição entre um bigode e uma orelha:
– Suicidou-se. Jogou-se do décimo andar.
Quando volto, sobre o caixão, entrego-me ao
louva-a-deus.
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