domingo, 12 de agosto de 2012

Dezenas

A caminho da escola, de mãos entrelaçadas, mal conversamos. Às vezes, sinto muito pelo desperdício de tempo, por não aproveitarmos o momento que temos sozinhos. Contudo, pela manhã, mais que em qualquer outra hora do dia, eu prefiro o silêncio; e ela também não quer muito papo, prefere cantar alguma música, já ensaia até assobiar, sempre arrastando a mochila com rodinhas.

Eu permaneço calado, tentando pensar em alguma coisa que talvez nos aproxime em momento tão improvável. Parece sempre muito cedo para raciocinar, mas encontro espaço para a obsessão da semana: as dezenas que teimam em entrar na cabeça de Alice.

A ideia de aproveitar a numeração dos prédios só funciona quando chegamos à esquina da rua onde fica a creche. Até ali, apenas os números centenários das portarias da Voluntários. O número da casa que fica na calçada oposta, um laboratório, é oitenta e oito. Ela diz que não vê, a árvore esconde; um cachorro late e distrai a menina. Para seguir em frente, eu garanto que vamos encontrar outros números.

Agora afobada, ela encontra a casa oitenta e nove. Eu confirmo a dezena: muito bem, é oitenta! Mas o número que vem depois não é o nove... Ela mesma se corrige: é oitenta e dois. Dali em diante, Alice interrompe o passeio diversas vezes. E eu ignoro a pressa habitual e espero, com muita paciência, que ela diga cada um dos números – quase todos certos. A hesitação aparece apenas quando ela confunde o sessenta com o setenta, e vice-versa.

Depois do beijo de despedida, fico com o sorriso banguela e as dezenas na cabeça. Não tenho certeza ainda de que o problema está resolvido. Retorno pelo mesmo caminho revivendo os números, satisfeito com o interesse dela e com o tempo que passamos juntos. Até chegar ao ponto de ônibus, curto uma ingênua sensação de dever cumprido. Quando encontro o meu assento, coloco os fones de ouvidos e tento adiar as lembranças dos compromissos que tenho pela frente.

Volto tarde para casa. Alice já está deitada, mas levanta assim que ouve a minha voz. Finge que não me vê, pergunta para Nane se vou demorar, diz que precisa falar comigo.  Quando dá as costas, ganha o meu abraço surpresa e sorri com a gengiva. Vamos juntos até a cama, onde deito com ela por alguns minutos. Ela pede algum carinho antes de eu ir embora.

À mesa, Nane tem novidades. Conversamos enquanto eu preparo um lanche e ela ainda trabalha. Diz que na agenda da escola veio um elogio para Alice – parece que ela foi muito bem no dever de matemática. Desta vez, aquela mesma ingênua sensação de dever cumprido toma conta de mim: será que foram as dezenas que encontramos pelo caminho? 

Nenhum comentário:

Postar um comentário