domingo, 15 de abril de 2012

Vitrines da Livraria Sauret

Havia muitas fotos naquela gaveta da escrivaninha da minha avó. Levei todas comigo, depois devolvi. Estão agora digitalizadas e gravadas numa pasta do meu computador a que dei o nome óbvio de Livraria Sauret. São fotos em preto e branco da vitrine da loja no início da década de quarenta.

Curioso, analiso uma a uma. A porta de entrada envidraçada da livraria fica à esquerda, tem revistas e jornais pendurados do lado de dentro. Naquele canto recuado, meu pai e meu avô aparecem abraçados em duas fotos. Quando a foto não mostra a porta, concentro-me na vitrine, procuro por detalhes e acabo descobrindo uma silhueta sobre o vidro quando aproximo a imagem na tela. Deve ser coincidência, mas aquela sombra, que inclui a câmera, é visível apenas na ausência do meu avô.

Eu me pego investigando a fundo quando separo as fotos em dois conjuntos. São as roupas que meu pai veste que orientam a distribuição. Encontro no ombro de meu avô uma referência da passagem do tempo: entre as duas fotos em que eles aparecem lado a lado, é evidente que o menino cresceu. E não tenho dúvida de que os conjuntos marcam datas muito importantes; por isso, busco indícios na arrumação da vitrine que possam me ajudar a precisá-las.

No primeiro conjunto, meu pai está vestido com calças compridas escuras e camisa branca, enfeitada com uma enorme gravata borboleta também escura. Ele não sorri, mas é sapeca: em uma das fotos, esconde-se atrás da vitrine. Em outra, está do lado esquerdo, perto da porta, apontando para o quadro que fica logo abaixo do letreiro. Ali se vê o herói da minha avó: o General De Gaulle. Em torno, apesar do reflexo sobre o vidro, identifico vestígios da guerra: à direita, um pano quadrado de seda com o rosto do general centralizado sobre o mapa da França; mais abaixo, ladeado por quatro figuras simétricas sem nitidez, outro retrato me mostra soldados carregando um pavilhão. Entre este quadro e o do general, há uma flâmula triangular com a Cruz de Lorena – com suas duas barras horizontais, ela é o símbolo da Resistência Francesa.

Brinco de adivinhar as cores: o pano de seda e a flâmula são predominantemente vermelhos. Tenho vontade também de descobrir que livros são aqueles distribuídos no chão – sobre um deles, repousa uma cruz de madeira, outra Cruz de Lorena. Os livros em exposição também contornam a vitrine pelo lado direito até a altura do pano. A disposição das peças naquele espaço é quase uma obra de arte, cheia de detalhes trabalhados pelas mãos francesas da minha avó. Continuo a brincadeira de adivinhação: estamos em 1941, em plena guerra, no dia da inauguração da livraria.

No segundo conjunto, meu pai usa roupas menos formais: além de calças compridas, veste um pulôver de listras verticais que esconde uma camisa clara, da qual se vê apenas o colarinho. O visual da vitrine é mais sóbrio, também arrumada em detalhes por mãos apaixonadas. Desta vez, não há livros no chão ou em lugar algum. De Gaulle permanece no alto e uma fita tricolor envolve o mesmo quadro dos soldados patriotas, que permanece logo abaixo. De cada lado desse quadro, destacam-se duas delicadas pinturas: há flores de um lado e uma bailarina de outro. Não se vê mais a toalha, nem a flâmula. A ausência da cruz confirma que aquele não é mais um acampamento resistente, nem esconde mais a casamata dos franceses em Copacabana.

Insisto ainda em adivinhar as cores: abaixo do letreiro, por trás da foto do herói, o bandô cuidadosamente dobrado em semicírculos é azul, a cor preferida da minha avó. Elegante em todas as fotos, ela mantém o semblante sereno. Meu pai é o único que sorri. O dia especial se revela tanto na alegria dele quanto na falta de livros para vender. A vitrine posa orgulhosa para a foto porque estamos em 1944, Paris foi libertada e a guerra chegou ao fim.

2 comentários:

  1. Muito interessante, a marcação da passagem do tempo.
    Ana Maria

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  2. Lembro de mim, aluna da Aliança Francesa, comprando livros lá. Belos tempos!!!!!!!!!!! Neize

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