terça-feira, 2 de novembro de 2010

Um Braço Quebrado

Eram oito da noite, poucas horas antes do Bateau Mouche naufragar na baía de Guanabara. Eu estava assistindo à TV, aparelho de segunda mão trocado por outras carcaças eletrônicas pré-históricas, deitado no chão de tacos quase soltos da sala de estar. Com o dedão do pé direito, zapeava pelos canais disponíveis, que não passavam de uma meia dúzia naqueles tempos, esperando pela São Silvestre que em 1988 ainda acontecia à noite. Era o único dia do ano que me fazia desejar morar em outro lugar que Copacabana. Aquela espera pela virada, aquela multidão formigando pelas ruas, aquele treinamento forçado de renovação das esperanças, tudo aquilo me incomodava. Eu tentava me entreter com as poucas opções na televisão e com a perspectiva de ver o nascer do sol da varanda depois de passar a noite jogando Gemini ou lendo um bom livro. Naquele ano, a situação ficou ainda mais complicada pela falta convidados ou convidandos habituais. A casa costumava ficar lotada de gente, e a mesa, cheia da comida, que eu e meus irmãos passávamos a noite beliscando. A lotação ia para a praia pouco antes da meia-noite e nós, a família, ficávamos sozinhos por alguns minutos, enquanto os fogos explodiam, para nos abraçarmos e brindarmos com champanhe. Eu não entendia muito bem a emoção contida dos adultos naquela comemoração pelo novo ano, não via motivo para olhos tão marejados. Mas era assim e, naquele ano especialmente, os minutos da família se transformaram em horas ainda mais longas depois do que aconteceu.

Eram oito da noite, eu estava deitado com as costas no chão frio trocando os canais da TV com o ajuste grosso do meu dedão do pé. Eu falava e repetia, mas hoje sei que as crianças têm séria deficiência auditiva quando o assunto não interessa ou as contraria. Minha mãe reforçava: não pula, não pula... ou para de pular, para variar. Meu irmão tinha quatro anos, idade de não dar ouvidos. Teimoso também, eu não abandonei a posição esdrúxula em que me encontrava e tornei-me o obstáculo do treinamento para corrida de 10 metros com uma única barreira que ele fazia consigo mesmo. Você vai se machucar era outra frase sem efeito. E, na enésima tentativa, ele fracassou. Tropeçou no lado direito da minha barriga e caiu com os braços protegendo o rosto, com todo o peso do seu corpo sobre o cotovelo esquerdo. Não me lembro dele chorar, lembro-me apenas da minha mãe segurando o bracinho ao telefone, falando com Maurício. Pouco depois das oito, foram os três para Jacarepaguá – mãe, pai e irmão – encontrá-lo na clínica tirar radiografia. Ficamos eu, minha irmã e avó esperando, sem saber como seria a meia-noite daquele réveillon. De volta, eles entraram em casa às 23h58, com o braço do Tito enfaixado, pronto para operar às 13h do dia primeiro de janeiro de 1989. Felizmente, eles encontraram um guarda compreensivo na entrada do Túnel Velho e conseguiram passar pela multidão com as luzes internas do carro acesas. Encontrei meu pai chorando no quarto. Acho que ali o vi chorar de verdade pela primeira vez.

O ano novo estreava com uma tragédia na baía, e nós esparramados em colchonetes no mesmo chão da sala, paparicando a criança com uma fatura completa no braço, que insistia em não chorar. Ganhamos a companhia da noviça rebelde na madrugada. Eu assisti ao filme ao lado dele, mas não vi o sol nascer. Adormeci tentando entender o meu mundo de forma diferente.

Um comentário:

  1. caramba, a gente tem cada história!!! Lembrava do braço do Tito e da perna da Tiça (2 eventos com gesso super importantes), mas não lembrava que tinha sido no ano novo!!

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