quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Circulando

O Nível 4 parece mais movimentado. A música é detestável, quase animada. No ponto de ônibus junto à escada tem mais que um banco: são duas cadeiras e uma placa com o número quatro. Uma delas está ocupada, a outra deve ser a minha. Não sei se é dia ou noite, então digo olá. O homem ignora. Olha para o nada, sem piscar. Ele é alto, barba por fazer, usa um sobretudo esfarrapado e está sentado assim: a cabeça apoiada no encosto, uma das mãos segurando o assento, as pernas apoiadas no calcanhar. Figura estranha, o que já deixou de ser novidade por aqui. Eu fico em pé. Teclo os quatro dedos no polegar para contar o tempo ou passar o tempo, não sei. Perco a conta, começo de novo; ele não muda de posição, sequer troca a mão que já deve estar formigando. O ônibus chega. Igual aos outros: circular, comum, com vidros escuros. Ele salta da cadeira com a ajuda de uma muleta que estava no chão. Fica evidente que quer ser o primeiro a entrar. Eu não só deixo, como mantenho distância. Quando os degraus acabam para ele, eu subo.

O sujeito senta antes de passar a roleta, ao lado de uma mulher loira, de cabelos quase brancos, meia-idade e corpo atlético. Ela se espreme contra a janela, mostra desagrado torcendo a boca. Ele parece o Fausto Fawcett, ela não é a Kátia Flávia. Eu passo a roleta e procuro lugar na parte de trás, onde haja dois assentos vazios e eu possa ficar sozinho. Esqueço que eles existem e encontro os objetos que venho colecionando no bolso. Pego uma caneta e picho. Escrevo o meu nome outras tantas vezes. Acho que é para eu não esquecer quem sou. Escrevo até que a tinta acaba. Levanto os olhos e vejo a mulher na mesma posição, espremida, com a muleta dele sobre o ombro. Ela afasta a muleta e levanta. Desistiu, penso, e vem sentar-se ao meu lado. Não. Depois que ela passa a roleta, o ônibus para. Enquanto ele vai para o assento da janela, ela sai. Entra uma morena de cabelos curtos e rosto angelical. Ela vai sentar ao meu lado, tenho certeza. Não, ela afasta a muleta e senta ao lado dele. É Kátia Flávia, embora pareça mesmo um anjo. Acho graça do que penso.

Neste nível não aparecem ambulantes ou mensageiros do Apocalipse. Os passageiros, porém, têm as mesmas olheiras profundas de sempre. Porque não dormem. Eu mesmo não me lembro de ter dormido desde o Nível 1. Sei que observo o tempo todo. E Kátia continua lá, impassível, ao lado do Fausto, desconjuntado, até que o ônibus para de novo. Não é a minha vez de descer. Já entendi que não preciso ser convidado, mas sinto que não devo sair agora. Ela, ao contrário, vai descer. Cumprimenta o Fausto, passa a roleta e, antes de chegar à porta, senta-se à minha frente. Aqui não adivinho nada: o ônibus parte. A morena de cabelos curtos também coleciona objetos. Tira do bolso um estojo de maquiagem. Através do espelho vejo seus olhos. São castanhos e olham para mim. Ou eu quero que olhem. Ela passa batom nos lábios e eu quero beijá-los. Depois que termina, olha para janela do lado oposto como se procurasse paisagem além dos vidros escuros. Mas estamos num túnel, lembra? Eu acho que os olhos dela procuram timidamente os meus. Quando ela olha para o lado, fico esperando que se vire de vez. Ela olha para o lado muitas vezes. Eu ainda espero. Quando o ônibus para pela terceira vez, decido ficar mais um pouco, circulando. O ônibus retoma a viagem, ela olha para o lado e sorri.

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