quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Um Dia Esqueci a Lapiseira

Ela sentava na minha frente e tinha um estojo preto cheio de canetas e duas lapiseiras. Eu toquei com os dedos o ombro dela. Você pode... Não acabei de perguntar. Sem se virar, ela tirou a lapiseira rosa do estojo e me deu. Quando a aula terminou, agradeci. Saímos juntos da escola pela primeira vez. Ela, abraçada com os livros, não parou de falar até nos separarmos. No dia seguinte, esqueci a lapiseira de novo. Pedi a roxa. Ela disse que não e me passou a rosa, de novo, sem se virar. Saímos juntos da escola pela segunda vez. Um mês depois, já era hábito sairmos juntos. Eu não precisava mais esquecer a lapiseira e ela parava de falar quando eu olhava nos olhos dela. Eu falava então. Abobrinhas. Começamos a estudar juntos. Eram duas vezes por semana – um dia na casa dela, o outro na minha. No meu quarto tinha um quadro de cortiça. Depois de estudarmos, brincávamos de corte e colagem. Pegávamos fotos antigas em revistas, recortávamos palavras nas manchetes do jornal, às vezes de um livro da escola, ou da agenda dela, tudo para enfeitar o quadro até o próximo encontro. Na casa dela, escrevíamos histórias num caderno. Ela escolhia o título, eu escrevia o primeiro parágrafo e ela continuava. Voltei a esquecer a lapiseira. Pedia sempre a roxa. Ela ria, esticava a rosa e eu pegava a lapiseira junto com a mão dela. Um dia ela perdeu o estojo. Emprestei a minha até o dia seguinte, quando ela levou um novo estojo preto quase vazio: uma lapiseira dourada e uma caneta. Quando voltei do banheiro, coloquei uma lapiseira rosa no estojo dela. Ela riu quando eu disse que era a minha, para o caso de eu voltar a esquecer.

Continuávamos estudando juntos em casa, sempre de portas abertas. Às vezes eu tinha vontade de fechar, mas sempre havia alguém por lá, vigiando. Na escola, também havia curiosos. As insinuações eram freqüentes. Negávamos. Éramos amigos, apenas isso. Mas eu continuava querendo fechar a porta. Acho que queria privacidade. Não falava isso nem para ela. Quando as provas finais se aproximaram, esquecemos o quadro de cortiça e o caderno de histórias. Passamos em todas, comemoramos com um abraço. Foi o primeiro abraço e o último, porque as férias tinham chegado. Viajei para a casa dos meus avós para passar as festas de fim de ano. Lá, senti falta da lapiseira rosa. Comprei uma e meu primo achou esquisito. Lá senti falta do caderno e comecei a escrever sozinho na agenda que ganhei de presente. No dia em que voltei, deixei a mala na sala e fui logo para a casa dela. Acho que queria dizer alguma coisa. Ela me abraçou quando me viu. Foi o segundo abraço e o primeiro, pensei, porque as férias ainda estavam começando. Daquele jeito, abraçados, ela disse que estava feliz. Ela iria para Disney com a tia naquele mesmo dia. Tinha que terminar de arrumar as malas, etc. Eu emudeci. Voltei para casa cabisbaixo, não mexi na mala que continuava na sala e, sob protestos, deitei na minha cama de olhos fechados. Adormeci.

Quando abri os olhos, notei algo diferente, que não tinha reparado antes. O quadro de cortiça não estava vazio. Tinha uma foto minha recortada no canto. Reconheci quando me aproximei: era da festa de aniversário dela, quando disse que eu estava bonito e quem estava por perto não escondeu o sorriso. Do lado da minha, tinha uma foto dela, também recortada, sorrindo com um gorro de Papai Noel. De um jornal, ela tinha retirado a palavra Natal. De uma revista, Feliz. Na minha escrivaninha, tinha um livro embrulhado e, do lado dele, a lapiseira rosa. Agora eu tenho duas. Olhei o relógio e saí correndo de casa, de novo, sob protestos. Estavam com saudades... Quando cheguei, era tarde. Ela tinha acabado de sair para o aeroporto. Perguntei se podia entrar e a mãe dela disse que sim. Procurei o nosso caderno por todo o quarto. Encontrei debaixo do travesseiro. Eu tinha esquecido que não havia uma folha sequer em branco, só restava uma linha na última página. Escrevi: Boas Férias. Escrevi de novo: Atrás do espelho. Foi lá, na parede branca mesmo que escrevi com uma lapiseira rosa, claro, que um dia esqueci a lapiseira.

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