segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Caçadas de Zezinho

Há onças e jaguatiricas por toda parte. Elas sobreviveram e se multiplicaram. Por isso, nós vivemos no abrigo. Era um cinema, dizem os mais velhos. Aqui existem quatro salas: a primeira e a segunda servem de dormitório; na terceira, fazemos as refeições e os adultos se reúnem; a última é a sala de livros, que o guardião chama de biblioteca. Eu conheço o guardião. Às vezes ele me deixa entrar para ver os livros, às vezes ele me conta o que dizem os livros. Além dele, apenas Mãe Dalva sabe ler. Foi naquela sala que, um dia, eu encontrei os cartazes de alguns filmes que passavam nessas telas enormes que hoje não servem de nada. Fiquei com um deles, guardei debaixo do meu colchão. Nele, em primeiro plano, há um homem sentado, e no fundo, um mundo parecido com o que vemos do lado de fora. O nome do homem é Denzel. Gosto dele. Por isso, as outras crianças me chamam de Zéu, Zé ou Zezinho.

Outro dia eu perguntei para o guardião sobre as onças. Para sair do abrigo, precisamos conhecê-las muito bem. Ele disse que tinha um livro interessante para me mostrar, mas só depois que todo mundo fosse dormir. Porque os livros estão proibidos desde que Mãe Dalva adoeceu e Paizinho morreu. Ele sabia o que fazer com os livros. Mãezinha diz também que o guardião é um tonto, não sabe interpretar o que lê. Ainda assim, dele eu também gosto. Ele me mostrou as “Caçadas de Pedrinho” há uma semana. De lá tiramos muitas informações sobre como as crianças podem matar as onças. Crianças e bonecas que falam. Nunca vi uma dessas, as bonecas daqui não falam. Eu contei os meus planos para ele: de sair do abrigo e descobrir o que havia lá fora, ir mais longe que qualquer adulto já tenha ido. Ele me preveniu também sobre os homens brancos, disse que no livro nós éramos tratados como negrinhos de estimação por eles. Contei essa parte para Mãe Dalva e quase me arrependi, tantas foram as perguntas que ela me fez. Quase no fim do sermão ela se lembrou de um dos textos que Paizinho tinha guardado. Peguei para ela.

O texto dizia: “Era talvez meu hábito “profissional” de colocar-me no lugar, ou na pele, dos outros. Isso não significa que sempre justifico esses outros, mas que tenho a capacidade de enxergar seus pontos de vista.” Logo abaixo, Paizinho tinha anotado o nome do autor: Amós Oz. Ela disse que ele era israelense e isso não me disse nada. Ela falou de guerras e tolerância, de economia e religião. Eu comecei a entender, mas não muito. Por fim, informou que podíamos reabrir a biblioteca, mas antes precisávamos encontrar um professor. Ela estava muito velha, não podia mais andar para procurá-lo e a voz dela, enfraquecida, não servia mais para ensinar. E o guardião era um ignorante, apenas conhecia as letras e sabia juntar as sílabas para formar palavras. Como se já conhecesse meus planos, ela me desejou sorte mais de uma vez.

Por enquanto, somos quatro. Sabemos o que fazer com as onças: pólvora nos olhos costuma ser infalível. Mãe Dalva nos advertiu sobre maltratar os bichos, mas reconhece que precisamos de facões e todas as armas de fogo que encontrarmos. E ela não precisa saber, mas o guardião vai continuar nos ajudando. Ontem ele me trouxe outro livro, que ele chamou de livro de guerra para crianças, chamado “Senhor das Moscas”. Vamos nos pintar antes de partir. Não temos medo da natureza selvagem das outras crianças que encontraremos por aí, não temos medo de nada, só da nossa própria ignorância. Ah! Mãezinha vai ficar orgulhosa. E sabemos o que procuramos: um professor. Estamos no fim da primeira reunião... Como é nome daquele filme do pôster dos meninos que estão agarrados uns aos outros, como uma corda no precipício? Isso!... da primeira reunião dos Goonies!

Um comentário: