segunda-feira, 4 de outubro de 2010

O Otrrrrro Lado

Minha irmã blogueira tem razão: quando eu ainda morava com meus pais, se você telefonasse para mim pela primeira vez, surtaria com a notícia. Com o sotaque francês que, dizem, nunca foi corrigido porque meu avô achava charmoso, Mami diria: ele está do otrrrrro lado. O lado de lá é o apartamento dela até hoje. No lado que era o de cá, ainda moram meus pais. E são os únicos apartamentos do andar.

Mami passava a maior parte do dia conosco. O apartamento ao lado era pouco frequentado, mesmo por ela, que somente retornava para dormir. Nele, eu fazia algumas incursões no quarto da biblioteca, que guarda os remanescentes da Livraria Sauret. Às vezes, na sala de jantar, usava a cadeira de balanço para ler. Por isso, se você ligasse, eu poderia estar do otrrrrro lado. Na mesma sala, entre candelabros de prata e um enorme espelho, minha mãe dava aulas particulares, em busca de sossego. Meu pai procurava revistas antigas na bibilioteca, principalmente as que traziam informações sobre política ou futebol. Meu irmão era muito pequeno ainda, mas hoje toma conta do computador que fica num dos três quartos. Só minha irmã ousava perturbar os mistérios que rondam a casa até hoje.

Mami veio antes da guerra; aliou ao sotaque francês vícios do espanhol que trouxe de terras do cone sul; casou-se no Brasil com o avô que tinha o meu nome; defendeu a França dos nazistas aqui mesmo no Rio – tinha até codinome; e falava muito pouco sobre tudo. O otrrrrro lado ainda é uma espécie de santuário, onde se respeita a história e o silêncio.

À noite, quando queríamos comer gelatina, eu e minha irmã entrávamos no apartamento dela de forma cautelosa, um passo de cada vez. Já que não havia movimento, não havia também motivos para desperdício e, assim, apenas um abajur ficava aceso. A escuridão restante era uma aventura para duas crianças com muita imaginação. No corredor, em posição privilegiada, de frente para sala (a do espelho enorme), ao lado da cozinha e a caminho dos quartos, ficava o pequeno quadro de uma moça que tinha um olhar talvez hipnotizante. Domi dizia que ela nos vigiava. Queria me assustar e me assustava. Mas tanto fez que também passou a ter medo ou acreditar no que dizia. Com os potes de gelatina, saíamos dali correndo, ela gritando, até fecharmos todas as portas no caminho até a nossa casa. Geralmente deixávamos a luz da cozinha acesa para poder voltar mais tarde, atrás de outra guloseima qualquer ou de um pouco mais de adrenalina.

Há muito tempo não frequento o otrrrrro lado à noite. Na verdade, não faço muita questão, porque as melhores lembranças são diurnas, dos livros e dos cafés da manhã que reuniam a família aos domingos. Domi se mudou pra Curitiba e para lá levou o quadro. No quarto de hóspedes do apartamento dela, onde sempre dormimos, um dia reencontrei a moça. Nada assustadora, coitada. Suspeito que ela e minha irmã tenham se acertado, mas nunca conversamos sobre isso.

2 comentários:

  1. gente, não acredito que o Domi levou o quadro da moça!! ela REALMENTE olhava pra gente!!
    e também já roubei gelatina do OTRRRO LADO qnd ia dormir do lado de cá!!! lembranças doces e assustadoras!!!

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  2. Meu filho,
    Acabei de ler seu blog. Aproveitei um raro momento em que a Mami estava do "Outrrro Lado", para que, com ela, nos deliciássemos com as lembranças armazenadas em sua mente e no seu coração.
    Demos boas risadas!
    Beijossssssssss

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