sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Círculos

Caminhamos por túneis estreitos há horas. Deixamos o último ônibus no Nível 7, quando Fausto já havia assumido a direção. Os passageiros, aquelas pessoas de olheiras profundas, não sobreviveram, tenho certeza. Ela tem um passo rápido, difícil de acompanhar. Eu a estou seguindo desde o Nível 4, quando nossos olhos se cruzaram no espelho do estojo de maquiagem que ela ainda guarda no bolso. Se é uma obsessão minha, ela parece não se importar. Passamos por diversos níveis sem trocar uma palavra. No máximo, novos olhares espelhados e alguns sorrisos. É tentação, ainda acho. Para mim, ela é Kátia Flávia, escondida aqui por motivos que desconheço, por ora. Pergunto pela primeira vez aonde vamos. Ela olha paro o lado e sorri. É sempre o mesmo meio sorriso, e eu ignoro o que acontece com a segunda metade dos lábios.

Chegamos a uma praça, ainda dentro de uma caverna, onde as luzes são débeis e o ar rarefeito. Ali vários túneis desembocam. Eu conto nove. Há um caminho de brita que a contorna e, no centro, bancos espalhados a esmo. Do lado oposto ao que chegam os túneis há uma porta. Ela se abre, um anão aparece, estica o braço para fazer o sinal que nos contém. Escolhemos um banco para sentar: virado para porta, junto ao caminho de brita. O anão ganha a companhia de uma mulher barbada. Eu estou no circo... Não seguro a gargalhada que Kátia reprova com o olhar. Enquanto tento me desculpar com a mulher, pessoas chegam pelos túneis; em sua maioria, crianças. A mulher pede que eu me afaste. Ela organiza uma fila. As crianças estão todas enlameadas, com as vestes rasgadas, com os olhares tristes. Assim que volto a me sentar, ouço latidos. Os cães chegam pelos mesmos túneis, também sujos de lama, cabisbaixos. Cada criança ganha um companheiro. Os adultos ficam no fim da fila e fazem companhia uns aos outros.

Kátia volta a sorrir e me dá o prazer de sua voz: Eles são todos inocentes. E daí? Vamos para o céu. Desta vez, nossos olhares se encontram sem desvios. Eu vejo o sorriso inteiro e acabo sorrindo também. Enquanto a fila caminha em direção à porta, eu desenho com o dedo na brita. Apago com o pé quando o anão nos chama.

A porta dá para um corredor comprido que tem luzes no chão. Há assentos de um lado e de outro. Demoro a entender que entramos em um avião onde se aceita que os cães se misturem às pessoas. Ali eles recebem coleiras e nomes. Sentamos lado a lado nos lugares que restam. Kátia me pergunta o que levo comigo. Eu ainda guardo uma das canetas que comprei no Nível 1. O que você quer fazer agora? Dormir. E depois? Tudo o que ainda não fiz. Kátia insiste, quer saber o que eu deixei de fazer. Eu quero escrever uma história. Nossa conversa é interrompida quando a decolagem é autorizada. O comandante dá boas vindas, e eu reconheço a voz do anão. Em seguida, é a mulher barbada que traz o serviço de bordo, inclusive para os cães. Lá fora, é sempre noite. Estamos no céu, mas eu tenho a nítida sensação de que voamos em círculos.

Para retomar a conversa, é minha vez de perguntar o que ela quer fazer. Ela diz que também quer dormir. Depois, pretende chegar a algum lugar. Eu pergunto se posso ir com ela. Ela sorri. Leve sua caneta, encontraremos papel. Qual o seu nome, afinal? É Esperança, Amarante.

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