domingo, 27 de janeiro de 2013

Pílulas de Vida

– A gente pode começar, pai? – Aninha estava com os dedos sobre os dois botões do rádio toca-fitas para iniciar a gravação. Depois do jogo de mímica, as nossas mães tinham se retirado com as crianças menores: a irmã dela, Patrícia, e meu irmão, ainda um bebê, dormiam cedo. A farra da noite no sítio de Arcozelo começaria em seguida, com os sempre animados pais bigodudos, um carioca e o outro goiano.

Os bigodes, a fita BASF laranja e preta e um cometa que poucos conseguiam ver, mesmo no céu estrelado do interior do Rio de Janeiro, situam as minhas lembranças no tempo. Éramos pré-adolescentes, vivíamos os anos 80, ouvíamos Legião e Ultraje. Queríamos fazer um programa de rádio. Além de Aninha e eu, estavam minha irmã e, talvez, Melina ou Carol. Quem sabe uma delas não se lembra daquele dia?

Logo depois de autorizar o início da gravação, Maurício, o pai bigodudo da Aninha, introduziu o programa, deu um nome qualquer à rádio e anunciou a execução do hino nacional. Cantamos com tanto prazer que resolvemos continuar com os hinos e homenagear a pátria da minha avó marchando ao som da Marselhesa. Acho que foi naquela noite que o meu pai bigodudo deu ao goiano o apelido de Maurice Chevalier. Afinal, era o pai da Aninha dava o tom da nossa brincadeira, fazia-nos gargalhar em meio às representações de Vicente Celestino e às criativas propagandas que intercalavam as músicas que tocavam em nosso programa de rádio. Em portunhol invejável, ele dizia:

– Mientras los passaritos hacen piu piu, Melhoral demanda su dolor...

– A la puta que o pariu!!! – Éramos nós que completávamos, enchendo a boca para gritar um palavrão autorizado pelos pais.

Assim como Aninha escolheria minha mãe para ser madrinha de crisma, eu escolheria Maurice como meu padrinho alguns anos depois. Parecia natural. Era a maneira de formalizarmos a vontade de duas famílias estarem juntas para sempre e não nos esquecermos jamais dos jogos de mímicas e dos programas de rádio. Além disso, cercado pela aura complexa do pessimismo gaulês, eu também queria me deixar contagiar com aquela alegria descomplicada que vinha de Goiás Velho. E para falar a verdade, não tinha qualquer outra afinidade com ele, nem mesmo as futebolísticas.

Maurício, por exemplo, era médico, profissão que nunca passou pela minha cabeça. Por outro lado, acho que isso explicava suas preferências radiofônicas para os comerciais repetidos à exaustão com rimas imperfeitas:

– Pílulas de vida do Dr. Bode...

– Entram pela boca, saem por onde podem!

As minhas lembranças vêm assim: gota a gota, frase a frase, gargalhada a gargalhada. A saudade que sentimos, agora que Maurício nos deixou, vem como lição. Nós temos hoje a mesma responsabilidade que os nossos pais tinham quando fizemos aquela gravação, mas nada pode ser tão penoso que nos impeça de fazer graça, seja com frequentes referências jedi, como Aninha, ou vestindo uma fantasia do Harry Potter, como eu. Aliás, contra toda a minha timidez, há pouco mais de dois anos, num dia de muito calor, eu estava vestido assim (de sobretudo preto, cachecol vermelho e amarelo) quando o meu padrinho sorriu para mim pela última vez. Faz muito sentido, não faz?

2 comentários:

  1. Sim, faz. Algumas vezes a última cena é mesmo cheia de pistas de que é a última, nós é que nos damos conta depois. Beijo. Susana.

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  2. se isso não é amor, o que mais haverá de ser?

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