Os cabelos escassos já o incomodam, embora tenham volume suficiente para um disfarce que não pareça ridículo. Por outro lado, os fios brancos estão bem distribuídos, não alteram ainda a cor do conjunto. Entretanto, são bastante revoltados, resistem muito à escova. Amarante procura pela pinça e escolhe alguns para arrancar.
A barba é crise antiga – a pele é sensível demais às lâminas. Fica assim, por fazer, desde sempre, até que alguma dermatite se manifeste na pele oleosa. Adia o quanto pode, mas agora, além da vermelhidão e da coceira, há pelos brancos em quantidade. Eles se concentram à direita do queixo e marcam uma assimetria desagradável no rosto. Amarante decide se antecipar e raspá-los para as comemorações.
Para não perturbar o sono da mulher e da filha, Amarante deixa o barbeador elétrico na gaveta. Escolhe as lâminas, e a cada passagem delas, dá um passo para um reencontro inesperado com sua juventude. Quando restam pelos grudados na bochecha, alguma espuma nas orelhas e um pequeno ferimento no pescoço, a versão que surge no espelho puxa assunto:
– Quantos anos?
– Quase trinta e oito. Nasci às duas da manhã.
– São dezoito de diferença...
– O que você faz aqui?
– Queria saber aonde você chegou, depois de tanto tempo.
– Aonde a sua obediência me levou. Você, afinal, tem medo do quê?
– Não tenho medo, só não gosto de errar. Aliás, se esta fosse uma chance de interferir com o seu passado, o que você me diria?
– Perca o medo de errar! Mas não tente ir contra a sua natureza. Você daria um péssimo rebelde.
– O que mais?
– Afinal, é uma chance de mudar ou não? E quem vai mudar, eu ou você?
– Você não vai me responder?
– Use melhor as suas horas. Faça as suas escolhas e preencha o seu tempo. Pare de se lamentar.
– Não entendi. Eu já faço tanta coisa...
– Você acha que faz. Na verdade, você faz muito da mesma coisa e não é feliz. Não tenha medo de sentir prazer. O que você faria com prazer?
– Ler um livro. Escrever uma história.
– Escreva, então! É importante produzir. Também tem medo de se expor? Aliás, de onde vem esse medo? Por que você não quer errar?
– As pessoas parecem tão tristes, tão insatisfeitas. Eu me sinto como um fio de esperança. É uma espécie de missão, entende? Por isso, não quero decepcionar ninguém.
– E acha mesmo que a sua insatisfação vai torná-las mais felizes?
– Chega! Cansei desse papo. E você, fez alguma coisa para mudar?
– Não fiz até correr o risco de perder o que conquistei de mais importante. Desde então, eu me esforço para fazer tudo ao mesmo tempo: o que eu quero e o que eu preciso fazer. Sofro de excessos, mas não por excessos. É melhor assim.
– O que é tão importante para você?
– Aquilo que escolhi conquistar.
– Algo que eu possa ver?
– Não, estão dormindo.
– Ah! Mas, afinal, vamos chegar a algum lugar?
– Não sei. Falta tempo para escrever tudo o que você deixou de escrever. Além disso, tenho hoje responsabilidades que você não tem. Daqui a dois anos, aos quarenta, quando eu tiver menos cabelos e a barba estiver totalmente branca, podemos reescrever esta conversa. Combinado?
As referências às marcas do tempo desviam a atenção de Amarante para um quisto sob o olho esquerdo, e o jovem no espelho não tem tempo de responder, desaparece deixando os registros do diálogo para trás.
– O médico disse que não era tersol, que vai ficar assim – ele fala sozinho agora.
E pouco importa que ninguém perceba – Amarante não consegue tirar os olhos da pequena saliência que se destaca ao lado do canal lacrimal. Por isso, decide apagar a luz antes mesmo de limpar o rosto. Carrega todos os excessos para cama. Está cansado, mas não dá chance à insônia: hoje vive ansioso, mas dorme sereno.
– Você não vai me responder?
– Use melhor as suas horas. Faça as suas escolhas e preencha o seu tempo. Pare de se lamentar.
– Não entendi. Eu já faço tanta coisa...
– Você acha que faz. Na verdade, você faz muito da mesma coisa e não é feliz. Não tenha medo de sentir prazer. O que você faria com prazer?
– Ler um livro. Escrever uma história.
– Escreva, então! É importante produzir. Também tem medo de se expor? Aliás, de onde vem esse medo? Por que você não quer errar?
– As pessoas parecem tão tristes, tão insatisfeitas. Eu me sinto como um fio de esperança. É uma espécie de missão, entende? Por isso, não quero decepcionar ninguém.
– E acha mesmo que a sua insatisfação vai torná-las mais felizes?
– Chega! Cansei desse papo. E você, fez alguma coisa para mudar?
– Não fiz até correr o risco de perder o que conquistei de mais importante. Desde então, eu me esforço para fazer tudo ao mesmo tempo: o que eu quero e o que eu preciso fazer. Sofro de excessos, mas não por excessos. É melhor assim.
– O que é tão importante para você?
– Aquilo que escolhi conquistar.
– Algo que eu possa ver?
– Não, estão dormindo.
– Ah! Mas, afinal, vamos chegar a algum lugar?
– Não sei. Falta tempo para escrever tudo o que você deixou de escrever. Além disso, tenho hoje responsabilidades que você não tem. Daqui a dois anos, aos quarenta, quando eu tiver menos cabelos e a barba estiver totalmente branca, podemos reescrever esta conversa. Combinado?
As referências às marcas do tempo desviam a atenção de Amarante para um quisto sob o olho esquerdo, e o jovem no espelho não tem tempo de responder, desaparece deixando os registros do diálogo para trás.
– O médico disse que não era tersol, que vai ficar assim – ele fala sozinho agora.
E pouco importa que ninguém perceba – Amarante não consegue tirar os olhos da pequena saliência que se destaca ao lado do canal lacrimal. Por isso, decide apagar a luz antes mesmo de limpar o rosto. Carrega todos os excessos para cama. Está cansado, mas não dá chance à insônia: hoje vive ansioso, mas dorme sereno.
Show! Show! Show, Rhodes. Um ótimo retorno de Amarante, provando que o tempo passa, mas deixa: M A T U R I D A D E !!!
ResponderExcluirAbraços,
Richard - -
Criativo!!! Traduz bem a passagem para a maturidade.
ResponderExcluirAbraços,
Ana Maria
É, Amarante... autoficção na veia. Sua história, minha história. Creio que o maior mérito de um escritor seja conseguir empatia e identificação por parte do leitor. Logo... parabéns. :-)
ResponderExcluirFalta tempo pra escrever tudo o que vc deixou de escrever! Não perca mais tempo, meu amigo. Aquele de 18 anos atrás não sabia o quanto era necessário... Como sempre, maravilhoso!
ResponderExcluirMuito bonito e sensível essa reflexão em frente ao espelho. Sim...espelhos tem esse efeito. Nos caso dos homens que precisam se barbear e, conseuqentemente, se encarar com atenção, me causa a impressão que os questionamentos são inevitáveis.
ResponderExcluirEscrevi também um conto em que meu personagem está se barbeando em frente ao espelho...não publiquei, mas vou te mandar. O meu é mais puxado para o cômico, apesar da crise do homem. O seu é bem mais íntimo. Lindo. Abraço, Susana.