terça-feira, 12 de outubro de 2010

Saudades de Bequinha

Ela tinha aparência frágil e medo de que o vento a levasse, mas não havia resfriado capaz de pegá-la. Contudo, o início de 2008 a trouxe sangrando. O diagnóstico deu pouquíssimas esperanças e a primeira operação... abriu, fechou, não dá! Passei duas noites com ela. Terríveis, a segunda pior que a primeira. Em ambas, o sono do começo da noite foi tranquilo. Depois da meia-noite, porém, começaram os pedidos pelo cafezinho que não vinha. Que indelicadeza! Só o soro a alimentava e apenas às vezes molhávamos com água a boca que insistia com o café. Nem um cafezinho sequer! Na segunda das madrugadas, ela pediu banho: Rodolphinho, fala com a enfermeira, por favor. Elas não a tratavam bem, imagina. Eu procurei a enfermeira, que explicou que o banho seria dado depois da troca de turno, pela manhã. Ela ouviu, mas voltou a pedir, e eu saí do quarto tantas vezes quanto pude para fingir que perguntava de novo e de novo; para fazer o tempo passar, o meu e o dela. Não sei com que forças minha mãe e minha tia dividiram outras incontáveis noites. E, para mim, ela morreu quando entrou em coma pouco tempo depois.

Para ela, porém, ainda não havia terminado. Acordou de forma inesperada. Eu não acreditei, demorei a visitá-la, até que resolvi aparecer num domingo. Ninguém garantia que ela poderia reconhecer os filhos ou os netos. Quando entrei no quarto, minha mãe estava sentada numa poltrona, segurando a mão dela. Elas se olhavam e eu parei na porta. Quando ela me viu, registrei uma das imagens que passarão no filme da minha vida, se um dia acontecer assim. Mais magrinha que sempre, minha avó abriu um enorme sorriso banguela, fechou ainda mais os olhos já apertados e estremeceu visivelmente dos pés a cabeça. Você! Era eu mesmo.

Passou o aniversário no hospital conosco, quando os dedos lambuzados de bolo das filhas davam os últimos presentes aos seus lábios, bem escondidos das “vizinhas” enfermeiras que vinham cumprimentá-la pelos 88 anos em seu micro-apartamento. Ainda ficou pouco mais de um mês na casa da minha tia até retornar à sua casa de então. Para Alice, era assim: ali era a casa da bisa, onde deixávamos vovó nas tardes de sábado. Lá ficou então, repetindo de longe que tudo ficaria bem, até se despedir de vez, sete meses depois de sua primeira internação.

Era 12 de outubro e a professora não esperou pelo seu dia. Escolheu as crianças para nos dizer que a vida continua sim. Assim, sem ela. Escolheu o dia das crianças para que, no filme de nossas vidas, lembrássemos o cheiro do pastel, o gosto do nhoque, o calor da canja; para que o nosso último retrato com ela tivesse pipoca, jujubas e uma risadinha pontuada por “i”s. Escolheu mostrar aos alunos que devemos continuar acompanhando o giro do globo terrestre e marcar nossos passos na geografia que ela ensinou, enfrentando os reveses da vida com coragem.

3 comentários:

  1. Lindo! Tô chorando... De onde estiver sua avó estará feliz com a homenagem...

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  2. Meu filhão!!!!
    Quanta saudade...
    Vamos continuar recordando momentos alegres e felizes!
    Saudade que dói no corpo e na alma...
    Esperança de um reencontro!!!!

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  3. Muito emocionante e lindo. Momentos com a tia Esbelta serão sempre inesquecíveis p/ mim! Parabéns!

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