quinta-feira, 12 de novembro de 2020

Tragam o vinho

Umas das minhas maiores privações atuais é a cozinha.

A importância dela ficou muito evidente durante a pandemia e, talvez por isso, faça ainda mais falta agora. O trabalho obrigatório em casa tornou quase diária a necessidade de eu parar um pouco antes do meio-dia para preparar o almoço. Quase porque havia sempre um dia da semana em que bastava cortar a salada para acompanhar o que sobrava das refeições anteriores. Era um pouco cansativo, mas prazeroso. Servia como terapia, para quebrar o ritmo e atenuar a ansiedade provocada pelo trabalho. Era um desafio que envolvia alguma criatividade para não repetir sabores e algum jogo de cintura para não perder muito tempo no preparo. E, mais importante, era um momento de doação.

O carinho começava no uso da faca para preparar os legumes em cubinhos e os vegetais para caberem em uma garfada. Continuava no cuidado em não misturar aquilo que poderia desagradar a um dos paladares. Terminava na vontade de acertar, o que nem sempre acontecia. Ao longo de todo esse processo, eu me sentia útil, eu me sentia feliz na tentativa de oferecer o meu melhor para quem sempre mais me importou. Comíamos em torno de uma mesinha dobrável, sentados no sofá e no chão, como acampados na própria sala, há muito tempo transformada em escritório. Esperava, apreensivo, a aprovação das alterações nos molhos ou de qualquer novidade que envolvesse risco.

Pouco antes de ver a minha vida transformada, tive uma experiência maravilhosa na cozinha. Num domingo de setembro, meu sobrinho chegou muito animado, vestido de avental, para cumprir com a função de sous-chef da cozinha do titio. Abracei muito forte aquela brincadeira, desejei que ela fosse uma experiência inesquecível para nós. E eu mal sabia que, ao menos naquela cozinha, ela jamais se repetiria. De chapéu e avental, deixei o mise en place em dois níveis: o da pia, que era o meu, e o da mesinha dobrável, aquela mesma dos almoços, para ele. Eric misturou a salada, moeu a pimenta e deu nome ao prato principal: frango com iogurte de morango. Era tomate, mas a fantasia funcionou.

Perdi quase tudo o que me era essencial no último mês, inclusive o acesso àquele espaço tão importante, que me fazia também reviver como protagonista momentos de doçura passados com as minhas duas avós.

Por enquanto, o melhor que posso fazer está aqui: usar as teclas como meus instrumentos, as palavras como ingredientes e a pontuação como tempero. Os parágrafos devem corresponder às etapas do preparo; e este texto, sem dúvidas, é o prato principal.

O que vocês estão esperando? Tragam o vinho!

A toalha é de papel, mas a inspiração está na mesa, meus amigos.

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