quarta-feira, 11 de novembro de 2015

Em Ruanda

Até chegar ao capítulo V de Os anéis de saturno, o meu interesse no livro se mantinha apenas na escolha das formas narrativas, nas relações que Sebald cria entre assuntos aparentemente desconexos e no uso das provas materiais (fotografias, diários, notícias de jornal). Naquele capítulo, o autor traz à tona a brutal colonização do Congo pelos belgas a partir das histórias vividas pelo escritor Joseph Conrad e pelo diplomata e ativista Roger Casement.

No início de maio, quando ainda me acostumava com a ausência da minha avó, com a perda do emprego e com a súbita disponibilidade de tempo para ler e escrever, foi com surpresa que recebi um convite para fazer um trabalho em Ruanda, pequeno país africano também colonizado pelos belgas e vizinho à República Democrática do Congo.

Com o tempo livre, logo passei a procurar informações sobre o país na internet com a curiosidade jornalística de um Tintim. Até então, a única referência que tinha do país era a do genocídio que matou cerca de 1 milhão de pessoas em 1994. Como já havia assistido ao filme Hotel Ruanda, que trata de episódio ocorrido durante o genocídio, e também ao documentário Virunga, sobre os gorilas da montanha do parque congolês, restou-me também aceitar a coincidência oferecida pela literatura e ler o Coração das trevas, de Conrad.

Um mês se passou até a confirmação do meu nome; outros tantos até a primeira missão, ocorrida em outubro. E, enfim, lá estava eu, diante do horror mais recente, contado em detalhes no Memorial do Genocídio, em Kigali, capital de Ruanda. Um horror que teve início com a divisão étnica estabelecida pelos colonizadores nas carteiras de identidade, que foi alimentada pelas alianças com a minoria Tutsi e acirrada após a independência, que trouxe o domínio político dos Hutus.

Os detalhes sórdidos do massacre (os vizinhos que se matavam, as mulheres estupradas e mutiladas, as crianças assassinadas, os homens enterrados vivos), por alguns instantes, levaram os meus pensamentos de volta às denúncias do relatório de Casement, à loucura do Sr. Kurtz original na Àfrica retratada por Conrad (embora seja difícil dissociá-lo da imagem do outro, vivido por Marlon Brando em Apocalipse now) e à melancolia dos textos de Sebald.

Na minha viagem, porém, encontrei um país bem diferente daquele destruído pela intolerância. Apesar de ainda muito pobre, predominantemente rural, onde pouco mais de 20% da população tem acesso à energia elétrica, Ruanda tem metas ambiciosas de crescimento. O presidente atual, Paul Kagame, conduz o país com pulso firme e parece ter a aprovação da grande maioria.

Nos deslocamentos de táxi pela capital, pude perceber ainda uma mistura de cenários urbanos e rurais: seja na paisagem cor de terra, dominada por construções horizontais, interrompidas pelos novos prédios espelhados do centro; seja nas ruas asfaltadas, com drenagens bem feitas e, vez por outra, ladeadas por pequenas plantações, pás e enxadas.

Com baixos índices de corrupção e violências, Ruanda vem reagindo à tragédia tendo como pilar um antigo costume: a Umuganda, trabalho comunitário obrigatório para cidadãos entre 18 e 65 anos e que se repete no último sábado de cada mês. Nestes dias, as comunidades se reúnem entre 8h e 11h da manhã, para limpar as ruas, discutir assuntos de interesse comum, construir escolas, fazer pequenas obras de infraestrutura, preparar as atividades do próximo encontro – uma realidade distante da que vemos por aqui.

As lições que aprendi em Kigali foram além daquelas relacionadas ao trabalho. Em nosso último dia de visita, tivemos uma longa conversa no restaurante que ficava em frente ao hotel com um queniano e um ruandês que havia morado durante muitos anos nos Estados Unidos. Enquanto aguardávamos o almoço ficar pronto, eles nos ofereceram suas visões de mundo, falaram de Deus, de racismo, de corrupção e dos problemas mais recentes daquela região da África; tudo isso sob o olhar atento de um Malcom X pintado na parede.

6 comentários:

  1. Una experiência para enriquecer a alma...
    Vou querer saber a impressão do mundo segundo eles. Boa conversa para acompanhar um vinho.

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  2. Encheu meu coração de esperanças, nestes tempos tão desanimadores do lado de cá do Atlântico. E também de gratidão, pelo menos não tivemos os horrores desta Guerra Civil! Obrigada, Luiz Rodolpho.

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  3. Rodolpho, alegro-me pela sua experiência em África, lá vivi por doze anos. Sei que um olhar atento, como o seu, pode descobrir coisas fascinantes, África e seus africanos (etnias) representam uma diversidade rica de costumes, conhecimentos e formas sociais de vida que nos surpreende. Dá um bom papo, do lado de cá.

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  4. Você precisa escrever com mais frequência Rodolpho.
    Excelente texto e linda experiência.

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  5. Rudolph, muito legal!!! Lindo texto e grande experiência! Bjss

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  6. Por coincidência tinha lido, há cerca de um mês, uma reportagem na National Geographic sobre o Rio Congo, e o caos em que está mergulhada a R.D.C., onde a democracia ainda não foi capaz de organizar as instituições. A reportagem me fez ver que o Brasil, a despeito de todos esses escândalos, está anos-luz na frente da África. Bom saber que existem exceções como essa. Parabéns pelo texto!

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